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Crer para entender e a dinâmica entre teologia e apologética

Artigo escrito por Aimeê Eduarda Vieira, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024

Ensina-me a buscar-te, mostra-te a quem te busca, porque não posso buscar-te se não me ensinas o caminho. Não posso encontrar-te se não te mostras a mim. Que eu te busque desejando-te, que eu te deseje buscando-te, que eu te encontre amando-te, que eu te ame encontrando-te”.

(Anselmo da Cantuária)

Introdução

Estar preparado para responder à razão da esperança (1 Pe 3.15) é um imperativo comum a todo cristão. Simples palavras que, ao serem examinadas nas meditações e vivenciadas na concretude da realidade, revelam um desafio capaz de transformar o olhar e o coração de todo estudante de teologia. Apologética, matéria que trata sobre o assunto, diz respeito à defesa da razoabilidade da fé e pode ser constatada, desde o Novo Testamento, em sua ênfase na defesa da sã doutrina e no combate aos falsos mestres. Diante disso, ela pode ser aplicada em diversos contextos eclesiásticos, como a evangelização, aconselhamento bíblico e pregação. Como todo conhecimento sobre Deus, a apologética precisa ser utilizada de maneira cuidadosa, a fim de que os preceitos bíblicos não se percam em performances individuais. 

Por isso, ter consciência da história da Igreja e do desenrolar do estudo teológico é tão necessário para a construção de um saber robusto e uma presença fiel. Compreender a apologética e suas implicações filosóficas, teológicas e práticas é algo essencial para um ministro do evangelho. 

Anselmo da Cantuária e a formulação do pressuposicionalismo

Primeiramente, é preciso entender as origens e desdobramentos do pressuposicionalismo na teologia. A Idade Média, período marcado pela intelectualidade, cuja tradição judaico-cristã possuía um papel singular (COPLESTON, 2017, p. 14), se tornou devido às demais influências, árabes e gregas, um período marcado por distorções no interior do cristianismo, fruto da profunda e extensa tentativa de sintetização dos fundamentos cristãos a estes pensamentos, principalmente o grego (DOOYEWEERD, 2010, p. 135-136). Todos os desdobramentos dessa atitude, ao longo do tempo, resultaram naquilo que o filósofo holandês Herman Dooyeweerd nomeou de motivo básico religioso escolástico, natureza e graça. Segundo o autor, um motivo básico religioso se trata da força motriz que guia o pensamento e a ação, dando conteúdo e direcionamento ao impulso religioso que procura sua origem (PAZ, 2022, p. 28). Assim, concepções pagãs da antiguidade grega, com seu motivo básico matéria e forma, principalmente as ideias aristotélicas sobre a natureza, acomodadas ao cristianismo, formaram, na história, o motivo básico religioso natureza e graça (DOOYEWEERD, 2010, p. 136). A questão central, no tocante a toda essa efusão, revela-se no modo ao qual essas ideias foram incorporadas à cristandade, reverberando consequências ainda atuais. Como exemplo disto, existem as figuras de Pseudo-Dionísio Areopagita e João Escoto Erígena, cujas assimilações neoplatônicas denotaram-se em heresias das mais diversas, a saber: uma divindade incompreensível pelo ser humano; leituras alegóricas de Gênesis; tratamento de forma panteísta do pecado; e a descaracterização da Trindade (COPLESTON, 2017, p. 30; BOEHNER; GILSON, 2012, p. 116; RUSSELL, 2016, p. 131). 

Neste cenário de apreensões corrompidas do evangelho, surge Anselmo da Cantuária, que, nas palavras de Alain de Libera, “foi o teólogo mais importante do século XI” (LIBERA, 1998, p. 294), esteve, desde o início envolvido em relacionar aspectos lógicos à ciência sagrada, inaugurando princípios analíticos e filosóficos ao estudo das Escrituras (LIBERA, 1998, p. 294). Embora, não se possa negar as influências platônicas que existem em seu pensamento, o arcebispo da Cantuária, de fato, foi mais ortodoxo que seus contemporâneos. Aproximando-se de Agostinho de Hipona, ele traz a postulação principal de seu pensamento: “fé em busca de entendimento” (Fides Quaerens Intellectum) e o “creio para compreender” (Credo Ut Intelligam) (FRAME, 2015, p. 129). Essas concepções originam o pressuposicionalismo, ideia de que as verdades pressupostas não resultam da racionalidade humana, mas são fruto da fé, que é o ponto de partida de toda construção racional (ANTISERI; REALE, 2013, p. 515). Esta sujeição ao divino pontua que o pensamento humano não consegue ser neutro, emancipado ou autossuficiente, demonstrando que, para o cristão, a verdade absoluta é o próprio Deus e que a fé é a base de todo conhecimento (FRAME, 2015, p. 129).

Em sua célebre obra Proslogion (1078), Anselmo faz teologia e filosofia de joelhos, agradecendo a Deus pela revelação da verdade e pedindo que esta lhe seja sempre anunciada, reconhecendo que, em sua ausência, não há entendimento, por ela ser o pressuposto de toda a compreensão (TOMATIS, 2003, p. 15). Nas palavras do autor, sua máxima sintetiza perfeitamente seu pensamento: “Não busco entender para crer, mas creio para entender. Creio, com efeito, pois, se não crer, não entenderei” (SANTO,  1973, p. 45). Atualmente, este credo sobre a dependência do homem em relação a Deus continua encorajando os cristãos de todas as partes, fazendo com que a referida proposição se expanda a toda obra de suas mãos. Do trabalho manual ao intelectual, é possível pressupor Deus e glorificá-lo nas suas produções, sendo essa também uma forma de perpetuar a verdade do evangelho e combater as heresias dos tempos modernos. Ou seja, trata-se de manter uma postura verdadeiramente apologética, com palavras e ações. Este princípio, para além do pressuposicionalismo, marcou boa parte do desenvolvimento da filosofia cristã, sendo representado por nomes como Blaise Pascal, Herman Dooyeweerd e Alvin Plantinga.

Construções teológicas para uma apologética fiel

A apologética está intrinsecamente ligada ao cristianismo, desde o princípio. O relato bíblico revela isso ao evidenciar o papel central dos profetas, de Cristo e dos apóstolos na história da revelação. Diante das mais diversas circunstâncias, eles agiram como pregadores da verdade, defensores da fé e expositores do pecado e de práticas heréticas. Combateram na milícia da fé, legitimamente, garantindo aos seus contemporâneos o evangelho genuíno, mesmo que este fosse rechaçado pela sociedade. 

De igual modo, os Pais da Igreja buscaram, com seus instrumentos, mesmo falhos, resguardar a verdade. Eles escreveram documentos importantes, como as confissões e os credos, debateram ideias em concílios e criaram argumentos para lidar com as inverdades a respeito das doutrinas fundamentais da crença cristã. Neste primeiro momento, a apologética clássica era a mais utilizada, apresentando argumentos teístas acerca da existência de Deus. Alguns dos teólogos que faziam uso deles, como Tomás de Aquino, acreditavam que uma pessoa poderia sair da incredulidade à fé, por meio de premissas, sem necessariamente precisar das Escrituras (FRAME, 2010, p. 192). Tal afirmação é um problema, pois pressupõe neutralidade, deixando de considerar os efeitos noéticos da Queda, como a pecaminosidade dos raciocínios humanos (TIL, 2022, p. 9). Apenas no século XX, um professor e pastor holândes decidiu contribuir com uma nova abordagem apologética. Cornelius Van Til, em sua originalidade, faz a proposta de uma defesa da fé, que a pressupõe, em primeiro lugar, devolvendo a Deus a centralidade no processo da salvação. 

A teologia enquanto ciência, continua evoluindo, e John Frame, continuador dos estudos de Van Til, deu sequência à sua contribuição na defesa da fé. Com um sistema filosófico triperspectivista, o autor explora como o cristianismo se organiza. Com uma metafísica, epistemologia e ética próprias, a crença cristã possui uma cosmovisão sobre todas as coisas (FRAME, 2010, p. 33). Dentro deste sistema, Deus se declara para a humanidade em três perspectivas: na estrutura normativa, sob a perspectiva existencial e na circunstância situacional. Diante disso, o homem é indesculpável, pois perante ele há o céu declarando a glória e a majestade do Senhor; o senso divino gravado em seu coração, embora este esteja abafado pelo pecado; e a Palavra de Deus, revelação especial, ao qual qualquer ser humano pode acessar. No entanto, faz-se necessário evidenciar que os incrédulos não enxergam a realidade de forma verossímil, é preciso que o apologéta, trabalhe limpando o terreno e convide-o a retirar seus óculos, para ver o universo, da perspectiva Deus (TIL, 2022, p. 10). Sendo assim, o trabalho a ser feito é menos argumentativo e mais exploratório, pois aquele que prega o evangelho deve procurar os pressupostos do coração do descrente, aquilo que o mantém preso às amarras do pecado. Tendo sido feito isso, os três vieses apologéticos podem ser aplicados, a saber: a apologética como prova, demonstrando a veracidade do cristianismo; enquanto defesa, respondendo às contestações das pessoas; e como ofensiva, atacando todo conteúdo que falso (FRAME, 2010, p. 13-14). No entanto, o cristão nunca deve se esquecer que somente o Espírito Santo tem o poder de dar um novo coração ao descrente, regenerando-o, salvando-o e fazendo deste um fiel filho do Deus altíssimo (TIL, 2022, p. 65). 

Conclusão 

Portanto, diante do exposto, é possível notar como a teologia é indissociável da apologética. Por isso, o estudo das doutrinas fundamentais e da história da igreja precisa ser inegociável, a fim de evitar erros passados e reconhecer as atuais falhas. Ao mesmo tempo, é imprescindível abraçar contribuições tão brilhantes e inspiradoras, para que a prática cotidiana da fé seja vivenciada sem que se perca de vista a Trindade Santa, e seu trabalho perene na realidade.

Referências 

BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia King James 1611. BV Books. Niterói, RJ: Editora BV Films, 2017. 1120 p.

COPLESTON, Frederick. Filosofia Medieval: uma introdução. Paraná: Danúbio Editora, 2017.

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Hagnos, 2010.

FRAME, John. Apologética para a glória de Deus. Tradução Wadislau Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.

FRAME, John M. A history of Western philosophy and theology. Phillipsburg, NJ: P & R Publishing, 2015.

GILSON, Étienne; BOEHNER, Philotheus. História da filosofia cristã. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

LIBERA, Alain de. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.

PAZ, Anderson Barbosa. Motivos básicos religiosos na filosofia de Herman Dooyeweerd.2022. 

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média: volume I. Paulus, 2003.

RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental-Livro 1. Nova Fronteira, 2016.

SANTO, Anselmo. Proslógio. Tradutor: Angelo Ricci. 1 Ed. São Paulo. Editora Abril cultural, 1973. 278 p. 

TOMATIS, Francesco et al. O argumento ontologico. A existência de Deus de Anselmo a Schelling. 2003.

TIL, Cornelius. Apologética cristã. Editora Cultura Cristã, 2022.