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Da idolatria à Reforma

Escrito por Daniel Ponick Botke, estudante do Programa de Tutoria Filosófico de 2021

Há mais de dois mil anos Jesus Cristo de Nazaré veio a este mundo, o Filho de Deus nascido de ventre humano deu início ao reino de Deus na terra. A sua mensagem era clara: “Arrependei-vos, porque o reino do céu chegou.” Mt 4.17b, reino este que encontrou resistência tanto dos principados e potestades, como de muitos homens daquela época, homens cuja religião do coração foi confrontada pelo reino de Deus, homens que não puderam aceitar a afronta a suas crenças mais profundas, homens que crucificaram o Cristo na busca por proteger o seu deus pessoal. E esta tem sido a realidade da Igreja de Cristo desde sempre, desde a igreja primitiva de Atos, a patrística, na idade média, escolástica, tempos modernos e pós-modernos. Em todo tempo o reino de Deus tem que enfrentar “filosofias e sutilezas vazias, segundo a tradição dos homens, conforme os espíritos elementares do mundo, e não de acordo com Cristo”, Cl 2.8. Algumas vezes a Igreja de Cristo sai vencedora deste embate pela graça de Deus, mas algumas outras vezes desliza em seu pecado de idolatria, e sincretiza a sã doutrina com vã filosofia.

1. A IDOLATRIA DO HOMEM

Timothy Keller em seu livro Deuses Falsos nos esclarece que toda e qualquer cultura possui seu conjunto de ídolos, mesmo que estes não sejam ídolos religiosos como santos ou deuses. Os ídolos podem ser pessoas famosas, dinheiro, status, fama, beleza etc. Cada um destes ídolos tem o seu sacerdote, uma pessoa ou instituição que nos ajuda a chegarmos até nosso ídolo, e seus totens sagrados que nos fazem lembrar de nossos ídolos para estarmos constantemente adorando-os. Cada ídolo possui também o seu santuário aonde vamos para prestar nosso culto, seguindo os rituais específicos, e lhe prestando nossos sacrifícios como tempo, dinheiro, saúde, e até nossas famílias (Keller, 2018).

Por mais radical e absurdo que possa parecer para algumas pessoas a afirmação acima, não é difícil de encontrarmos provas destas afirmações à nossa volta, em nosso dia a dia, e porque não dizer até em nós mesmos. Uma breve olhada ao nosso redor ou no espelho confirmará que todos adoramos alguma coisa, mesmo que não seja o caso de alguma religião propriamente dita, mesmo assim, todo homem é um adorador de algo (Keller, 2018).

A Bíblia chama esta adoração voltada para as coisas criadas de idolatria, assim como a adoração a outros deuses. A idolatria é quando o coração do homem pega coisas criadas boas por Deus, e as transforma em essenciais e absolutas (Rm 1.18-32). Idolatria é voltar-se para a própria sabedoria, ou outra coisa criada, a fim de alcançar o poder, a aprovação, o consolo e a segurança que só Deus pode dar. O primeiro dos dez mandamentos condena a idolatria (Keller, 2018).

Ex 20.2-5: “Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem embaixo na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te curvarás diante delas, nem as cultuarás, pois eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso. Eu castigo o pecado dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me rejeitam;” (Bíblia, 2013)

Um ídolo, portanto, é qualquer coisa tornada mais importante do que Deus para nós, que domina seu coração e sua imaginação. Qualquer coisa que se busque a fim de receber o que só Deus pode dar. Qualquer valor não absoluto, que se torna absoluto em nossas vidas e exija o centro dela é idolatria.

A idolatria resume bem o pecado, ela destaca nossa aversão por Deus, nossa absolutização de algo criado, e nosso obscurecimento do entendimento, nos tornando como nossos ídolos (Sl 5.4-8). Por isso podemos dizer que a idolatria é a natureza religiosa do pecado, é um adultério, é a adição de uma terceira parte ao nosso relacionamento com Deus. O pecado é tomar algo que pertence a Deus e usar contra Ele, é um parasita que usa a estrutura boa da criação de Deus e as perverte em ídolos.

Keller continua dizendo que podemos classificar os ídolos em algumas categorias, como ídolos pessoais: amor, família, dinheiro, poder, conquista, relacionamentos, saúde, preparo físico, beleza. Ídolos culturais: poder militar, progresso tecnológico e a prosperidade econômica. Ídolos da sociedade: família, trabalho duro, obrigações e virtudes morais, liberdade individual, autoconhecimento, riqueza pessoal e realizações. E ídolos intelectuais: as ideologias (Keller, 2018).

2. AS IDEOLOGIAS NO INÍCIO DA ESCOLÁSTICA

Esta última categoria de ídolo, as ideologias, parecem ser as mais perversas e difíceis de se combater. Talvez por não serem visíveis, ou talvez por serem habilmente distorcidas e maquiadas, sendo vendidas como verdades, quando na verdade são mentiras; vende-se latão por ouro.

Este foi o problema enfrentado pela igreja no período escolástico, problema este que teve origem muito tempo antes. Nestório 380-451, monge de Antioquia, defendia em sua teologia a distinção entre as naturezas divina e humana de Cristo, o que consequentemente negava a maternidade divina de Maria. Em oposição ao nestorianismo que defendia que Cristo teria duas naturezas (divina e humana) vagamente unidas, surgiu o monofisismo que defendia que Cristo teria apenas uma natureza, a humana absorvida por sua divindade. Ambas as doutrinas foram condenadas como heresias no primeiro concílio de Éfeso, e também no concílio de Calcedônia em 451 d.C. (Kenny, 2012).

Os seguidores dessas doutrinas, no entanto, não mudaram de ideia por conta dos concílios. Eles não pararam de existir, nem mesmo de desenvolver suas ideias. Grande parte deles se mudou para o oriente, onde continuaram seus estudos teológicos e filosóficos, traduzindo os escritos de Aristóteles para a língua persa. Depois, com o avanço do Islã no oriente, foram convidados para ir a Bagdá, onde continuaram seus estudos dos escritos aristotélicos e pseudo aristotélicos, traduzindo-os para o árabe. Em continuidade a estes estudos, temos na história alguns filósofos islâmicos importantes, como al-Farabi e Avicena por exemplo (Kenny, 2012).

Avicena defendia, dentre outras coisas, que o ente necessário, o altíssimo, no seu caso Ala, não poderia sob qualquer aspecto ser dois, uma vez que se poderia dizer que este ser é essencial enquanto aquele é acidental (diferente). “Se houver, para cada um dos dois, uma essência que o distinga do outro, então, cada um dos dois é composto; o composto é causado e, assim, nenhum dos dois será necessário”. (Avicena, 1014). Em uma clara referência ao uno imutável de Aristóteles, Avicena desenvolve uma filosofia que, caso aplicada ao cristianismo tornar-se-ia estranha ao Deus trino.

Vemos também a clara influência dos escritos de Aristóteles, Platão e Neoplatônicos nos filósofos árabes quando estes fazem a separação entre ente e essência, em uma clara referência a filosofia da matéria e forma. Da mesma forma eles elevaram a racionalidade e o intelecto ao mesmo nível da fé religiosa, colocando as leis procedentes da razão humana em pé de igualdade a lei divina, uma clara influência do ser supremo aristotélico que é puro pensamento.

Este amálgama de cristianismo herege, com aristotelismo, platonismo, neoplatonismo e islamismo é o que chega de volta ao ocidente como filosofia aristotélica no período da Escolástica. É esta filosofia “segundo a tradição dos homens, conforme os espíritos elementares do mundo, e não de acordo com Cristo” (Cl 2.8) que influenciou a Igreja Católica no período escolástico com grandes nomes como Tomás de Aquino e Anselmo de Cantuária. O que esperar nesta síntese? O que esperar desta fusão? Mais uma vez o homem deixou-se seduzir pela sua idolatria a ideologias e se afastou da sã doutrina, sendo necessário uma Reforma (ad fontes) para que se pudesse novamente encontrar as verdades eternas na fonte verdadeira, as Sagradas Escrituras.

3. A NECESSIDADE DA REFORMA

Lutero, em sua defesa de que não era necessário conhecer Aristóteles para conhecer a Bíblia, foi uma oposição a este trabalho escolástico de síntese entre filosofia grega que passou pelo árabe e chegou ao ocidente em latim, passando-se por uma verdadeira observação das Escrituras. A tradução da Bíblia na língua do povo combateu a ideia de intelectuais iluminados que poderiam ter acesso às palavras da verdade, e colocou a palavra de Cristo na mão e na boca dos humildes de coração.

A Reforma foi necessária, pois aqueles que deveriam zelar pela sã doutrina se deixaram contaminar pelas ideologias e filosofias de homens, tomando “O Filósofo” no lugar do Cristo, tomando “A metafísica” no lugar das sagradas Escrituras. Não estamos livres de tais erros, e não estamos livres ainda hoje de tais seduções. Cabe a nós, portanto, aprender com os reformadores de que, se há uma filosofia que seja proveitosa desenvolver, não é uma filosofia baseada nos pensamentos humanos, mas uma filosofia que tem como ponto de partida, e condição de possibilidade, as Sagradas Escrituras. Só assim identificaremos as idolatrias de nossos corações, e nosso pecado de não adorar unicamente aquele que é digno de ser adorado. Só assim poderemos reformar nossas vidas, nossa teologia e nossas igrejas, e estar sempre se reformando.

Que Deus nos ajude, amém.


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BIBLIOGRAFIA

AVICENA. Epístola do trono: Sobre a unicidade e seus atributos. Trad. Jamil Ibrahim Iskandar. 1014.

Bíblia Almeida Século 21. São Paulo: Vida Nova, 2013.

KELLER, Timothy. Deuses Falsos: as promessas vazias do dinheiro, sexo e poder, e a única esperança que realmente importa. Trad. Jurandy Bravo. São Paulo: Vida Nova, 2018.

KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia – volume II: filosofia medieval. Trad. Carlos Bárbaro. São Paulo : Loyola, 2012.