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“Edaidade”: uma crítica aos debates sobre a existência de Deus

Escrito por Erlan Pereira Frade Tostes, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

INTRODUÇÃO

“Deus existe, ou existimos só nós?” [1]. Esta é a primeira questão que Giovanni Reale e Dario Antiseri escolheram para elencar sua lista de problemas filosóficos. A comprovação da existência divina é forte candidata a ser o maior deles. Ao longo da história, muitos se debruçaram buscando provas da existência de Deus. Não poucos foram os que pretenderam refutá-las. O debate está posto, mas questões devem ser levantadas quanto à sua validade e utilidade tanto para os partícipes, quanto para quem ouve seus discursos. Este ensaio propõe o desdém como método argumentativo no debate sobre a existência de Deus. 

1. QUANDO O DELÍRIO SE TORNA UM DEUS

O escritor tcheco Franz Kafka teorizou sobre a função dos livros. Segundo ele, livros felizes são inúteis. “Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente” [2].

Atrevo-me a dizer que um dos livros da modernidade que nos assolou profundamente, relacionado à existência ou não de uma divindade, foi Deus, um delírio, obra do biólogo Richard Dawkins. Nesse livro, o inglês afirma logo no prefácio que “se este livro funcionar do modo como pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem” [3]. O ateísmo como subcultura é um fenômeno recente. Não basta apenas negar a existência de Deus através de pressupostos (céticos, materialistas etc). O objetivo é a “conversão da alma” [4], para utilizarmos uma linguagem foucaultiana.

Ferreira, meu saudoso professor de matemática do ensino médio, falava com certa frequência que “a razão é tão importante, que já vem no grau aumentativo”. Em outra ocasião, dizia provocativamente que “Quem não tem razão na mente, tem a mente rasinha!“. É necessário avaliar qual o peso que a razão possui em um debate sobre o possível criador da razão. Uma forma interessante de se obter essa medida é identificar o irmão diametralmente oposto ao ceticismo racionalista: o fideísmo.

2. QUANDO A FÉ (NÃO) BUSCA O INTELECTO

O fideísmo é uma doutrina controversa. Afirma que não é possível assimilar verdades metafísicas através da razão, por serem inalcançáveis ad origine. Tal corrente torna-se alvo de simples refutações, pois para se desprezar a razão, é necessário utilizar da mesma razão desprezada. Talvez uma melhor resposta possa ser encontrada no movimento apologético, que defende o transcendente sem renunciar a razão, mas através dela.

Santo Anselmo de Aosta foi um dos maiores nomes do escolasticismo medieval. Junto a São Gregório Magno, Santo Ambrósio e São Jerônimo, goza do título de Doutor da Igreja. Foi um monge beneditino e filósofo. Tornou-se arcebispo de Cantuária (Canterbury) entre 1093 e 1109. Anselmo acreditava que as bases da fé eram comuns às da razão, e entendia que com a argumentação e a lógica, seria possível explicitar as verdades da fé. Em sua obra Proslogion, o filósofo constrói seu argumento sobre a necessidade da existência de Deus. Em suma, se um ser perfeito pode ser imaginado, não poder-lhe-ia faltar a propriedade da existência, já que este ser é perfeito. STREFLING (2009), ao comentar sobre a obra de Anselmo, afirma [5]: 

A fé é o ponto de partida que move a ação intelectual de Anselmo. Mas essa ação não é mera passividade. A fé exige esforço do homem. É o homem que crê e compreende. Anselmo parte da revelação, porque entende que o homem não poderia buscar aquilo que não lhe foi dado. A fé é um dom que inquieta o homem para que nela ele busque e compreenda. Anselmo distingue entre fé viva e fé morta. Essa distinção tem relação com a fides quaerens intellectum. Fé viva é crer em. Fé morta é crer apenas.

Ao longo da história, outros apologetas elaboraram outros argumentos que provariam a existência de Deus. Avicena e a necessidade divina, Santo Tomás de Aquino e suas cinco vias, Blaise Pascal e sua aposta, Plantinga e seus axiomas modais. Convenceram alguns, atraíram a ira de vários outros e suscitaram debates que se estendem até hoje. O que todos têm em comum é o entendimento de que a fé é um pressuposto que gera a necessidade da razão.

3. QUANDO A RETÓRICA É SOFISTICADA

Talvez não se possa resumir o objeto de discussão às alternativas cética (sola ratio), fideísta (sola fides) e apologética teísta (prima fides). Não é sempre que se pode apoiar inequivocamente nas conclusões advindas de um argumento. Os sofistas gregos nos mostram o porquê.

Górgias foi um filósofo grego da virada do século V a.C. para o IV a.C. Nascido em território Siciliano, na colônia grega de Leontios, foi um dos principais nomes da escola sofista, apesar de sempre ter preterido este título, tendo optado pelo epíteto de “retórico”. Poucas obras do filósofo chegaram aos nossos dias. Elogio de Helena é uma delas. Nessa obra, o grego propõe uma defesa à reputação de Helena de Tróia, personagem chave da Ilíada de Homero. Górgias argumenta que Helena não pode ser considerada culpada, por uma série de fatores que lhe fugiam ao controle. Curiosamente, após toda sua linha argumentativa, salvaguardando a rainha de Tróia, Górgias encerra sua defesa declarando que o recurso retórico não passava de um jogo. Segundo GÓRGIAS (2012) [6]:

Afastei pelo discurso a ignomínia da mulher, e permaneci fiel à regra que estabeleci no princípio do discurso: tentei, com palavras, destruir a injustiça da ignomínia e a ignorância da opinião; desejei apresentar por escrito o discurso de Helena como um elogio e, no que me concerne, como um jogo.

O termo παίγνιον, pode ser traduzido por jogo, ou brinquedo [7]. Górgias utiliza sua poderosa retórica como um joguete, no qual a realidade sobre um fato pôde ser moldada a seu bel prazer. No jogo da argumentação sofista, a finalidade deixa de ser o encontro da verdade e passa a ser o uso da técnica argumentativa em um ambiente amoral, onde tudo é permitido, quiçá incentivado. A dança da dialética erística schopenhaueriana está posta. Cabe aos debatedores escolher seu par de lentes pressuposicionais em sua cosmovisão.

4. QUANDO SURGE A “EDAIDADE”

O neologismo “edaidade” é, por natureza, um pensamento a posteriori. Etimologicamente, deriva da expressão “e daí?” e requer uma resposta sobre as implicações de determinada conclusão. A partir do momento que se tem uma convicção, cabe a questão: “O que vem depois?”. Quando o substrato resultante de um desdém a conclusões formuladas sobre bases obsoletas. Se Deus existe, de que importa a prova de sua existência? Se não existe, menos ainda importariam os argumentos contrários. A questão que paira sobre ambos os lados é a mesma: e daí? A edaidade não está sendo proposta como um capricho ou uma ode à anti-intelectualidade. Muito pelo contrário, o caminho é teleológico. Qual o propósito de um debate, de uma construção racional sobre algo supra racional?

É claro, há uma tentação forte de se criticar o presente pensamento, derivando-o em um ceticismo absoluto, que, se levado às últimas consequências, torná-lo-á auto refutável. Todavia é salutar ressaltar a natureza tanto anedótica da edaidade, quanto a pontualidade de sua crítica à razão.

Aparentemente, a existência da divindade deixou de ser o objeto do debate público há alguns séculos. Deus pouco interessa, importa mesmo são os argumentos sobre ele. A racionalidade, que destaca o homem dentre os demais seres vivos, pode ser uma pedra de tropeço no caminho até a verdade. KOYZIS (2014), argumentando sobre a latente idolatria presente nas ideologias, afirma [8]:

[…] o cristianismo não pode se transfrmar em mais uma idolatria, Se uma ideologia é baseada na deificação de um elemento da criação de Deus, o cristão, mais do que ninguém, deve ter condições de discernir corretamente a diferença entre a idolatria e uma estima moderada daquilo que é idolatrado.

Existe uma tentação muito grande de orientar a própria vida pelo racionalismo, ainda que se tenha o pressuposto da fé. A deificação da razão transforma em deus um dos aspectos da criação divina.

Há uma diferença crucial entre a natureza da razão e a natureza bíblica. Aquela é observacional. Esta é revelacional. A ideia de submeter a primeira à segunda, ou vice-versa, não parece eficiente, tampouco importante. Se o que o relato bíblico afirma é real, argumentos não geram fé e a crença não ratifica argumentos. Deus, o pressuposto da fé, escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios.

Platão, citando uma narração de Crítias, afirma: “vós, Gregos, sois todos umas crianças; não há um grego que seja velho. […] Quanto à alma, sois todos novos”. [9]. Crianças, quando aprendem a falar, são conhecidas por questionarem constantemente. Poucas respostas dão. Alguns séculos mais tarde, é Jesus quem afirma que quem não se tornasse como criança, não entraria no reino dos céus (Mt 18:3). Em nenhum momento, os autores bíblicos se dão ao trabalho de argumentar sobre a existência de Deus, pois este é pressuposto. “No princípio Deus”, “No princípio era o Verbo”, “o Senhor nosso Deus é o único Senhor.”. A ideia de um ateísmo é ridicularizada: “Diz o tolo em seu coração: Deus não existe!”.

Se Deus existe e porque Ele existe, o “e daí?” deve ser respondido única e exclusivamente com coerência. O amor deve guiar a tomada de decisões daquele que chega à conclusão da existência de um ser que se autodenomina amor. Em meio a escândalos envolvendo apologetas que viveram orientados a provar a existência de Deus na esfera pública, mas não aparentavam conhecê-lo na esfera privada, reitero as palavras de Wittgenstein (1980): “é difícil conhecer algo e agir como se não conhecesse.” [10]. Tal como Gonzaguinha, também fico com a pureza da resposta das crianças, pois a beleza da vida já lhes é suficiente.


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5. REFERÊNCIAS

[1] ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol I. Trad. José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017, p. 5.

[2] KAFKA, Franz. Letters to friends, family and editors. Trad. Richard and Clara Winston. Nova Iorque: Schocken Books, 1977, p. 16.

[3] DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 23.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 20.

[5] STREFLING, Sérgio Ricardo. A dialética do argumento único de Santo Anselmo. Revista Ágora Filosófica, Recife, ano 9, n 1, jan/jun 2009. Disponível em: <http://www.unicap.br/ojs/index.php/agora/article/download/77/75> Acesso em: 09 mai. 2021, p. 140.

[6] GÓRGIAS. Apresentação e Tradução do Elogio de Helena de Górgias de Leontinos. Trad. Aldo Dinucci. São Cristóvão: EdiUFS, 2012. Edição do Kindle.

[7] παίγνιον. In: DICIO, The Liddell, Scott, Jones Ancient Greek Lexicon (LSJ). Disponível em <https://lsj.gr/wiki/%CF%80%CE%B1%CE%AF%CE%B3%CE%BD%CE%B9%CE%BF%CE%BD>. Acesso em 09 mai. 2021.

[8] KOYZIS, David. Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. Trad. Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 229.

[9] PLATÃO. Timeu-Crítias. Trad. Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2011, p. 83.

[10] WITTGENSTEIN, Ludwig. Cultura e Valor. Trad. Jorge Mendes. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 156.