Escrito por Herbert de Souza Cordeiro, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2021
“Não é bom que o homem esteja só”1. Essa é uma das primeiras declarações divinas feitas logo após a criação do primeiro ser humano. O ser humano não foi feito para estar só no mundo. O próprio Deus, que criou a humanidade à sua imagem e semelhança, vive um perfeito e harmonioso relacionamento trinitário e se relaciona com toda a sua criação. Entretanto, nos dias atuais, vemos uma sociedade cada vez mais individualista, onde o que importa é o “eu”, mesmo que em detrimento do “próximo”. A pressa, a liquidez dos relacionamentos e a busca pela satisfação pessoal são marcas dessa sociedade. Esse caminho tem levado o ser humano a uma grave crise global de confiança tanto no próximo quanto nas próprias estruturas sociais.
As três principais relações do ser humano em sua caminhada são: com Deus — seja em obediência, seja em apostasia (DOOYEWEERD, 2018) —, com ele mesmo, num sentido existencial, e com o próximo e a natureza, numa perspectiva situacional (FRAME, 2010). Segundo C. S. Lewis, para que o ser humano seja consciente de si, ele precisa estabelecer distinções entre o que é e o que não é o “eu”. Nesse sentido, ele aponta: “é em contraste com um ambiente […] de outros eus que a percepção de Mim Mesmo se destaca” (LEWIS, 2006). Para que atinga a autoconsciência, o ser humano precisa primeiramente se reconhecer como algo distinto de Deus. Consciente de si mesmo e de Deus, resta ao homem uma pergunta fundamental: “amar a Deus mais que a si mesmo, ou a si mesmo mais do que de Deus?” (LEWIS, 2006).
Mas não apenas isso, ele também precisa de um ambiente neutro que exista objetiva e distintamente de si, para que possa interagir com ele, sendo este ambiente a natureza. Por fim, ele precisa reconhecer, a partir das diferentes interações com a natureza, a existência de um outro “eu” que é seu semelhante. (LEWIS, 2006). Nesse sentido, pode-se fazer uma aproximação com a metáfora de Vanhoozer, de que todo ser humano atua no palco da história seguindo um roteiro que se desenvolve conforme se relaciona com o próprio roteiro, com o Autor do roteiro e com os outros atores (VANHOOZER, 2016). A necessidade relacional do homem é percebida de maneira clara no cotidiano. Vê-se, na pós-modernidade, uma sociedade cada vez mais individualista, com cada um colocando o “eu”, ou o self, acima das outras relações, tanto acima do próximo e da natureza quanto do próprio Deus. Num mundo de vários “eus” e poucos e frágeis “nós”, as forças que mantêm a sociedade conectada se afrouxam, e existe um grave problema.
Para o filósofo holandês Roel Kuiper, a causa da desconexão e da instabilidade na sociedade contemporânea se dá pela escassez de capital moral. Em seu livro Moreel Kapitaal, lançado em 2009 e traduzido em 2019 para português sob o título de Capital Moral, Kuiper reflete a respeito dos poderes de conexão da sociedade, traçando um diagnóstico histórico e sociológico da contemporaneidade e propondo soluções práticas para a busca por um mundo mais estável e bem conectado. Para sua análise, Kuiper parte do modelo de capitais proposto pelo sociólogo Pierre Bourdieu — que consistem em capital social, simbólico, cultural e econômico — sendo fontes de poder que capitalizam ativos importantes nas estruturas sociais. Esse conceito é expandido por Michele Lamont, aluna de Bourdieu, com a adição do capital moral. Esse último, embora careça de tratamento mais profundo e sistemático, foi interpretado por Kuiper como o responsável pelo poder de coesão da sociedade. A obra Capital Moral representa um esforço de Kuiper de operacionalizar o conceito de maneira científica, aproximando-o da filosofia social de Herman Dooyeweerd. (KUIPER, 2019).
Seguindo a análise de Kuiper, o processo de emancipação do indivíduo no ocidente, no seu estágio atual, tem subvertido “estruturas coletivas como classe, família, estado nacional, vizinhança, partido político, sindicato” (KUIPER, 2019). Fora destas estruturas, o indivíduo é responsabilizado inteiramente, a despeito dos contextos em que vive, por seu sucesso e fracasso, por administrar sua própria vida e tomar decisões por si e para si. Sistemas, que antes protegiam o indivíduo dentro da coletividade, agora parecem agir de maneira contrária às escolhas pessoais. “Não existem mais soluções ‘sistêmicas’ para as nossas escolhas individuais” (KUIPER, 2019). Disso temos o que Kuiper define como o paradoxo da individualização. Apesar de todo processo de autonomia do subjetivo, “o homem tem um eu que necessita do outro” (KUIPER, 2019), mesmo que esta relação se dê num nível instrumental e impessoal, é impossível ao homem ser autossuficiente e operar independente de outros “eus”.
Para Kuiper, “a autorreflexão moral que nos torna a realidade nas escolhas morais de outros tem uma base fundamental na conexão ontológica com o outro.” (KUIPER, 2019), recuperando, assim, o caráter de ordem criacional da necessidade do ser humano de se relacionar. Conforme este distancia-se daquilo que foi criado para fazer, as consequências podem ser catastróficas. Os capitais simbólico, econômico, social e cultural, apesar de sua grande importância para a estabilidade da sociedade, são incapazes de manter a sociedade coesa por si mesmos. Isto porque a conexão da sociedade depende substancialmente de uma preocupação genuína com o próximo expressa em valores centrais, como amor e lealdade, de confiança no próximo e nas estruturas sociais, e na responsabilidade social. Estes valores só podem ser nutridos pelo capital moral, que, segundo Kuiper, é “a capacidade (individual e coletiva) de estar junto ao próximo e ao mundo de uma forma preocupada” (KUIPER, 2019).
Contudo, nos dias de hoje, o ser humano é exposto de maneira agressiva e constante a uma visão de mundo voltada para si. Os seus desejos, seus objetivos, sua felicidade pessoal, suas crenças individuais, o “eu” como autor do próprio destino e das próprias verdades. Desde as estruturas mais básicas, como a educação e a família, as pessoas, vez após outra, são bombardeadas pela supervalorização do “eu”. Isto se tornou assustadoramente claro durante a pandemia da Covid-19, em que a esperança de um esforço coletivo pelo bem comum deu lugar a discursos individualistas, como o discurso antivacinas, ou que privilegiassem, de maneira exacerbada, direitos individuais, como o de não utilizar máscaras ou seguir as recomendações de organizações – alvos de desconfiança –, em detrimento do bem coletivo. “Eu estou no meu direito, sou um indivíduo livre” é, até hoje, o principal argumento. Estruturas sociais basilares que anteriormente possuíam um lugar e uma função bem definida, perdem essa função no processo de individualização. Não há mais salvação para essas coletividades” (KUIPER, 2019).
No paradoxo da individualização, a narrativa do “cada um por si” pode acabar uma narrativa do “isolamento”. Segundo Kuiper, a falta de padrões lineares torna as pessoas cada vez mais inseguras e tensas, pois a única certeza é a da mudança, sendo desconhecida sua direção. Não obstante, a individualização, e a globalização também afeta diretamente os valores de confiança no próximo e no mundo. Num mundo globalizado, a realidade parece tomar novos contornos. A ideia de Lewis de uma natureza objetiva, local e vivenciada, cede lugar a um “tempo e espaço imaginados” (KUIPER, 2019). O ser humano é desenraizado de seu contexto local para ser enraizado em comunidades globais possibilitadas pela mobilidade e tecnologias. Assim, tanto a confiança com o próximo, quanto a conexão com o contexto local são desintegrados para dar lugar a um novo mundo onde o indivíduo é autônomo e a localidade é insignificante.
Apesar do cenário desolador, Kuiper aponta para um caminho de esperança. Nem tudo está perdido e é possível que o capital moral seja produzido a fim de reverter o panorama atual e nutrir valores essenciais para a coesão e a estabilidade social. Segundo Kuiper,
“O capital moral está ancorado nas práticas sociais cotidianas como a da educação, mas também de atividade econômica e política, gestão do meio ambiente e o empenho por um time de futebol, por exemplo. Quando pessoas desenvolvem atividades orientadas em conjunto, falamos de práticas sociais. Práticas sociais são carregadas normativamente e são um convite ao comportamento moral. Este comportamento moral, por sua vez, desperta outros valores (não se limitando a estes): abertura, valorização, harmonia, cortesia, empatia, relativização, respeito. O ato moral atinge um número de valores, libera-os e os transforma num conjunto de valores vividos que conectam as pessoas. Os mais cardinais deles são os valores morais: amor e lealdade.” (KUIPER, 2019. p. 24-25)
Toda a Lei de Deus, conforme disse Jesus, pode ser resumida em dois mandamentos, amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Ao percorrer as Escrituras Sagradas, é possível encontrar, vez após outra, o ensino, tanto propositivo quanto narrativo, da centralidade de uma vida que segue estes mandamentos, com o coração voltado para o Deus e Pai de Jesus Cristo. O cumprimento desses mandamentos é o que possibilita a produção do capital moral. Como bem sugere Roel Kuiper, é com o fortalecimento das estruturas básicas, como a família, educação, estado nacional, comunidade de fé e vizinhança, mediante o cumprimento dos dois maiores mandamentos através de práticas cotidianas locais, que o capital moral é desenvolvido e os poderes de conexão da sociedade podem ser restabelecidos no decorrer do tempo. Apesar de uma realidade dura, nem tudo está perdido, existe esperança.
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1 Gn 2:18.
Referências Bibliográficas
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: Estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza Brasília: Monergismo, 2018.
VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.
LEWIS, C. S. O problema do sofrimento. Trad. Alípio de Franca Neto. São Paulo: Vida, 2006.
FRAME, John M. A doutrina do conhecimento de Deus. Trad. Odayr Olivetti. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.
KUIPER, Roel. Capital Moral: os poderes de conexão da sociedade. Trad. Francis Petra Janssen. Brasília: Monergismo, 2019.