Escrito por João Paulo Albuquerque Coutinho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
Introdução
A controvérsia a respeito da relação entre fé e razão tem sido um componente fundamental na história do desenvolvimento do pensamento. Essa dialética remonta aos primórdios da sabedoria grega, passando pela Patrística e pela Escolástica, até chegar aos contornos da Modernidade. No entanto, na filosofia secular, essa dinâmica sempre foi marcada por uma subordinação da fé à razão, uma vez que valorizavam a razão como princípio básico da epistemologia e que a fé deveria estar conciliada com a primazia da razão, ou até mesmo alheia ao debate.
Mesmo na tradição cristã, a relação entre fé e razão apresenta suas controvérsias e particularidades. Como exemplo, tem-se a Patrística, que destacava a primazia da fé em relação à razão, uma vez que considerava a fé como elemento necessário para conceber corretamente o raciocínio. Já a Escolástica passou a perceber a importância da conversação entre essas faculdades, fazendo com que uma fortaleça a outra.
Ainda assim, a secularização advinda pelo ceticismo moderno lançou bases para declarar que o debate a respeito da relação entre fé e razão havia sido superado. Nesse sentido, é possível notar que a leitura Iluminista da história fez com que os períodos supostamente religiosos fossem retratados como obscuros ou irracionais. A própria delimitação da Idade Média como sendo uma “idade das trevas” confirma esse estereótipo estabelecido.
Nesse sentido, o papel da fé na produção do conhecimento tem sido visto como uma atitude retrógrada e inimiga da busca pela verdade. No entanto, é válido questionar se essa postura retrata corretamente a ordenação das faculdades mentais na produção do conhecimento. Será mesmo que a fé deveria ser excluída da reflexão do pensamento? Ou seria ela um departamento alheio ao da razão?
A busca por uma resposta cristã para essa indagação deve possuir como pressuposto a estrutura de pensamento apresentado nas Escrituras. Sendo assim, é possível averiguar as lacunas promovidas pela exclusão da fé do pensamento, bem como reconhecer os desdobramentos da sua incorporação em uma epistemologia bíblica.
A fé enquanto fator necessário para o conhecimento
Um primeiro aspecto destacado pela fé cristã é que o elemento religioso é uma faculdade inata do ser humano, sendo impossível afastá-lo de suas realizações. Conforme descrito por Filipe Fontes (2018, n.p.), “costumamos definir religião como a crença e devoção a um objeto transcendente […]. No entanto, […] também objetos imanentes têm sido alvo de crença e devoção religiosas”. Nesse sentido, até mesmo aspectos tidos como mais comuns da experiência do conhecimento são obrigatoriamente avaliados por princípios religiosos que regem a investigação humana.
Michael Polanyi (1969), cientista e filósofo húngaro, delimita essa questão destacando que “a concepção popular de um cientista colecionar pacientemente observações, sem preceitos ditados por qualquer teoria, até que finalmente consiga estabelecer uma nova generalização, é completamente falsa” (POLANYI, 1969, n.p.). Dessa forma, o autor destaca que a produção de conhecimento não é guiada por uma espécie de razão autônoma e independente de pressupostos aceitos previamente. Na verdade, “os pressupostos que guiaram essas descobertas foram as premissas da ciência, ou seja, as conjecturas fundamentais da ciência acerca da natureza das coisas” (POLANYI, 1969, n.p.).
Portanto, fica claro que evidenciar uma suposta neutralidade religiosa em meio à investigação filosófica se configura um erro crasso. Basta mencionar a reflexão de que a maioria dos evolucionistas jamais realizou uma pesquisa em biologia e paleontologia para averiguar se realmente estavam corretos em suas análises. Boa parte desse grupo sequer leu as obras de Charles Darwin. Na verdade, houve uma deposição de fé, por parte deles, nesses pressupostos, o que os faz crerem no evolucionismo sem tê-lo visto ou experimentado.
Ora, se o cristianismo tem sido criticado por delimitar conceitos oriundos da fé em sua investigação da realidade, por que essa mesma crítica não pode ser feita aos demais grupos (a exemplo, os evolucionistas)? Esse questionamento revela que a academia não está disposta a reconhecer que todo o tipo de conhecimento racional requer o envolvimento de pressupostos anteriores à investigação. Além disso, só há disposição em criticar aspectos fiduciários quando lhes são convenientes para fazê-lo. Do contrário, todas as outras articulações de fé que levam à secularização parecem ser bem recebidas.
A sabedoria bíblica enquanto melhor explicação da realidade
Em meio a essa celeuma de compromissos religiosos não reconhecidos, há mais honestidade na investigação intelectual por parte daqueles que declaradamente expõem os seus pressupostos no trabalho intelectual. Nesse sentido, o cristianismo se configura como uma proposta de conhecimento que apresenta pressupostos autoritativos e revelacionais para essa busca. Dessa forma, a fé cristã não se estrutura em aspectos determinados pelo sujeito investigador, tais quais a razão ou a experiência, mas principalmente pelo conhecimento revelado.
Um fator fundamental nessa dinâmica é a percepção de que esse conhecimento dado por revelação é mais superior às outras formas de compreensão da realidade. Conforme destacado por Cornelius Van Til (2012, n.p.): “Nenhum ser humano pode explicar tudo, no sentido de ver através de todas as coisas, mas aquele que crê em Deus tem o direito de afirmar que existe uma explicação final”. Portanto, o conhecimento revelado apresenta autoridade para avaliar a realidade de forma mais holística e abrangente.
Semelhantemente, Herman Dooyeweerd destaca haver uma idolatria do conhecimento na qual se absolutiza um aspecto da realidade em detrimento dos demais (DOOYEWEERD, 2019, n.p.). Nesse sentido, fica claro que optar entre a racionalidade, a experiência ou quaisquer outros fatores da realidade evidencia uma busca idólatra de conhecimento. Logo, é necessário que uma proposta de conhecimento coerente com o espectro abrangente da realidade não favoreça algum critério em detrimento dos demais.
Nesse sentido, a busca de um conhecimento que parte da revelação bíblica se consolida como uma proposta epistemológica baseada numa autoridade última sobre todas as coisas. A sabedoria bíblica clama para si um fundamento para o conhecimento que não é pautado em idolatria reducionistas, mas na própria compreensão universal da realidade revelada pelo seu Autor. Portanto, a busca por pressupostos racionalistas, empiristas ou quaisquer outros não conseguem responder, unicamente, à busca por conhecimento. Já a sabedoria bíblica se qualifica enquanto proposta que traz o valor adequado à razão, à experiência e às demais faculdades a partir da revelação de Deus. Essa perspectiva é atestada por C. S. Lewis (2008, n.p.), que destaca: “Acredito no Cristianismo como acredito que o Sol nasceu, não apenas porque eu o vejo, mas porque por meio dele eu vejo todo o resto”.
Conclusão
Apesar de intensas controvérsias a respeito da relação entre fé e razão, fica estabelecida a impossibilidade de efetuar uma investigação científica honesta sem implementá-las conjuntamente. Todo aquele que, supostamente, busca uma investigação do conhecimento sem reconhecer os seus pressupostos religiosos termina por trair-se em sua própria metodologia.
No entanto, não basta somente reconhecer que os aspectos religiosos estão presentes em toda a pesquisa; é necessário reconhecer quais são esses princípios que irão satisfazer completamente as perguntas mais fundamentais da experiência humana. Deus testemunha de si mesmo através da Escritura, clamando para si a autoridade de revelar a verdadeira interpretação da realidade, a qual foi por Ele mesmo criada.
Assim, o convite de uma sabedoria bíblica está no reconhecimento de que o conhecimento revelado é superior a qualquer conhecimento autocentrado, tendo em vista que nenhuma vã filosofia pode contemplar a investigação da realidade de forma mais consistente. Certamente, nem todos estarão dispostos a avaliar os seus pressupostos e considerar a sua real validade interpretativa, mas uma constatação é certa: no mundo de Deus não há como construir nenhum conhecimento verdadeiro sem considerar o seu Criador em alguma instância. Nesse sentido, a perspectiva cristã não deve ser considerada uma alternativa irracional, mas sim uma estrutura de pensamento que reconhece a limitação da razão para investigar a totalidade da natureza.
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Referências Bibliográficas
FONTES, F. C. Você educa de acordo com o que adora: educação tem tudo a ver com religião. 1. ed. São José dos Campos: Editora Fiel, 2018. 48 p.
DOOYEWEERD, H. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. 1. ed. Tradução: Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. 256 p.
LEWIS, C. S. O peso de glória. Trad. 1. ed. Guarulhos: Editora Vida, 2008. 184 p.
POLANYI, M. Knowing and being. 3. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1969. 264 p.
VAN TIL, C. Por que creio em Deus. Tradução: Wadislau Martins Gomes. Brasília: Editora Monergismo, 2012. 59 p.