Resenha escrita por Andrei Mantesso Coimbra, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023
SCHUURMAN, Egbert. Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Tradução de Thaís Semionato. 1ª ed. Viçosa, MG: Ultimato, 2016. 270 p.
Fé, esperança e tecnologia, livro que chega agora em português, do engenheiro e filósofo Egbert Schuurman, se trata de uma obra seminal na tradição filosófica reformacional sobre tecnologia. Publicada originalmente em inglês em 2003, a obra se mostra ainda atual e trata de temas relevantes para nossos tempos.
Schuurman se insere na tradição filosófica reformacional que tem como referência a filosofia de Herman Dooyeweerd, o qual enfatizava haver um motivo-base religioso que moldou o pensamento ocidental, sendo que o motivo-base da modernidade é a dualidade natureza e liberdade, visto que “desde o princípio da era moderna, a filosofia ocidental foi controlada pelo ideal de uma liberdade absoluta da pessoa, por meio do domínio científico de toda realidade” (p. 83). Essa visão é chamada de cientificismo. Schuurman amplia essa visão, denominando o ideal da modernidade de “controle técnico-científico” (p. 84).
O autor define este ideal como uma cultura tecnicista. Neste momento, vale destacar a diferença entre uma cultura cientificista e uma tecnicista para Schuurman. Enquanto o pensamento cientificista é a extrapolação do método científico com o intuito de explicar a totalidade da realidade, o pensamento tecnicista seria a “pretensão dos seremos humanos, como senhores e mestres autodeclarados, de utilizar métodos técnicos-científicos de controle para submeter toda realidade à sua vontade, a fim de resolver todos os tipos de problemas” (p. 79). Na visão tecnicista, a ciência se reduz a um nível instrumental, utilizado na tentativa de controle da realidade.
Assim, ao longo do livro, Schuurman demonstra a diferença entre a visão científica e a tecnicista para mostrar como o desenvolvimento tecnológico moldou não apenas as rotinas da sociedade, mas também o pensamento moderno. Para deixar isso claro, o autor desenvolveu um capítulo com vários exemplos sobre a arrogância do pensamento tecnicista e suas consequências. Um dos primeiros problemas apresentados sobre a cultura tecnológica é que a prosperidade material gerada sem uma justa distribuição dos recursos levou ao “rompimento dos laços sociais, resultando no conhecido fenômeno da desintegração social e em diversos tipos de alienação” (p. 109), visto que as pessoas estão cada vez mais independentes do próximo. Na cultura tecnicista, “os laços comunitários são cortados e substituídos por relações de cunho técnico e organizacional. O amor morre; a empatia, a simpatia e o contato com o outro desaparecem” (p. 116).
Além desses traços sociais, Schuurman enfatiza a tirania do ideal de controle técnico-científico no uso inconsequente de técnicas de controle de plantas e animais. Sobre a tecnicização das plantas, Schuurman alerta para a manipulação genética que pode levar a uma uniformidade de culturas prejudicial a longo prazo, bem como à incerteza quanto ao que o consumo de culturas transgênicas pode gerar a longo prazo. Sobre a tecnicização de animais, ele alerta que a “sexualidade e a reprodução são desvinculadas dos animais por meios técnicos” (p. 126). A vontade do homem de ter total controle sobre a produção de animais “dotados das mesmas características genéticas ótimas” (p. 127) também pode levar uma uniformidade genética que pode ser prejudicial a longo prazo. O fato é que ainda não se sabe as consequências de tais atos a longo prazo. Além desses temas, Schuurman toca em assuntos como fertilização in vitro, clonagem, fontes de energias e uso de computadores.
Após discorrer sobre como o ideal de controle técnico-científico possui um caráter totalitário, Schuurman apresenta uma alternativa cristã do uso da ciência e da tecnologia. É necessário entender a realidade como criação de Deus e, partindo dessa premissa, colocar “um freio ao desenvolvimento técnico, pois tememos maltratar a criação de Deus” (p. 247). Schuurman usa a imagem do jardim que deve ser cuidado e cultivado pelos seres humanos, em contraste à ideia de uma “construção técnica autogerada” (p. 248) criada pelo ideal de controle técnico-científico. Assim, a ciência e a tecnologia devem ser reconduzidas a uma posição de serviço e não de controle.
O livro apresenta de forma consistente como o tecnicismo tomou um caráter totalitário em nossa sociedade, mostrando em diversas áreas como o ideal de controle se manifesta. Sobre as suas contribuições para uma reorientação do uso da ciência e da tecnologia, o autor não apresenta uma receita de bolo como se a solução para o problema fosse simples, mas apresenta insights interessantes para o desenvolvimento tecnológico e científico que favoreça o florescimento humano vendo a realidade com criação de Deus.
Como o próprio autor escreve no prefácio, o livro possui uma natureza autobiográfica e muitos dos temas abordados são frutos de seu trabalho como pesquisador professor ao lidar com diversos problemas, o que fez com que o autor não fosse exaustivo na apresentação das referências bibliográficas ao longo do texto, o que pode incomodar aqueles que querem se aprofundar em alguma discussão. Entretanto, o livro é uma ótima introdução ao pensamento de Schuurman, que possui outros livros que tratam da tecnologia em uma perspectiva cristã.