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Fides Quaerens Intellectum

Ensaio filosófico escrito por Yann da Silveira Vieira Lessa, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


Introdução

Anselmo de Cantuária foi um dos teólogos mais importantes da Idade Média. Seu labor teológico é conhecido pela argumentação sobre a encarnação do Deus Filho e pelo argumento em favor da existência de Deus, que ficaria posteriormente conhecido como argumento ontológico. Com efeito, duas questões se impõem: Seria possível ao teólogo manter unidas fé e razão? O cristão deveria apenas crer, sem buscar compreender o que crê? Anselmo, seguindo a tradição agostiniana sobre a relação entre fé e razão, responde com maestria a tais perguntas. Neste ensaio, veremos que Anselmo se esforça por fazer sua teologia em segunda pessoa, diante de Deus, permitindo que observemos em seus escritos o que é uma fé em busca de compreensão.

Humildade diante da revelação

Anselmo nasceu em Aosta, no norte da Itália, em 1033. Mais tarde, se mudou para a Normandia, região da França, onde ficaria conhecido por seu ensino e escreveria suas principais obras. No fim da vida, foi consagrado arcebispo de Canterbury, na Inglaterra. A influência de Agostinho na obra anselmiana é muito clara. Ele demonstra em suas obras uma reverência às Sagradas Escrituras e ao legado da Patrística, em especial, a Agostinho. Tal ortodoxia é percebida na sua recusa em ceder a uma visão positiva do homem. Como coloca Jonas Madureira:

Anselmo, tal como Agostinho, admitia que uma das implicações do estado do homem em desgraça, um dos efeitos mais terríveis do pecado original é a impossibilidade de o homem conhecer a Deus. Antes da Queda, o homem era livre para contemplar o Criador; depois da Queda, o homem tornou-se cego, prisioneiro de si mesmo e, portanto, impedido de encontrar a Deus pela luz da sua própria razão¹.

Fica aparente na leitura do Proslogion que Anselmo não crê numa razão que possa alcançar o divino. A dialética, por si, não poderia penetrar nas alturas do Criador. Percebe-se, então, a grande humildade com a qual Anselmo realiza seu labor acadêmico. No capítulo catorze da referida obra, Anselmo reconhece a limitação do homem diante de Deus, tanto por seus pecados quanto pela inalcançável sublimidade divina:

Porquê isto, Senhor, porquê isto? O seu olho está cheio de trevas pela sua enfermidade, ou cego pelo teu brilho? Mas, certamente, está cheio de trevas por si mesmo e cego por ti. De qualquer modo, é obscurecido pela sua brevidade e esmagado pela tua imensidão. É verdadeiramente apertado pela sua estreiteza e vencido pela tua amplitude. Quão grande é, efectivamente, esta luz donde jorra todo o verdadeiro que alumia a mente racional! Quão ampla é esta verdade, na qual está tudo o que de verdadeiro existe e fora dela apenas o falso e o nada! Quão imensa é [essa verdade] que, num único olhar, vê todas as coisas que foram feitas, de quem, por quem e de que modo foram elas feitas do nada! Que pureza, que simplicidade, que certeza e que esplendor aí existe! Certamente, [muito] mais do que a criatura é capaz de compreender².

Num contexto de constantes debates entre teólogos e dialéticos, onde estes eram racionalistas e aqueles tendiam a um fideísmo, Anselmo é um exemplo daqueles que não se deixaram levar pelos reducionismos de nenhum dos lados que se polarizavam. Ele escreveu a Roscelino uma carta, intitulada Epistola de incarnatione Verbi. Roscelino estava negando a doutrina da Trindade por não encontrar racionalidade nela. Anselmo foi severo em sua advertência:

Mas, antes de discutir esta questão, direi algo, a fim de conter a presunção daqueles que ousam, por uma temeridade ímpia, disputar contra um ponto qualquer da fé cristã, por não poder compreendê-la e julgam, por um néscio orgulho, que o que não podem compreender é impossível, em vez de admitir, por uma humilde sabedoria, que pode haver muitas coisas que lhes é impossível compreender³.

Portanto, uma pessoa sábia deveria permanecer humilde diante das verdades da Palavra de Deus, mesmo que não as compreenda, porque o conhecimento humano é limitado. Não há espaço para uma crítica racionalista sem fé. O cristão deve se aproximar do texto sagrado de maneira submissa e modesta.

A razão como complemento à fé

As verdades da revelação e da tradição devem ser recebidas, mesmo que contenham mistérios incompreensíveis. Não obstante, uma vez enraizada e fortificada, a fé deve buscar as suas razões. Como diz Vasconcellos:

Para Anselmo, entre fé e razão não há antagonia, mas uma hierarquia, onde a fé ocupa o primeiro posto, mas isto não significa, em momento algum, um enfraquecimento do esforço racional. É esta postura anselmiana que dá sentido ao mote identificador de seu pensamento: fides quaerens intellectum4.

Nessa perspectiva, Anselmo considera um grande erro o caso daquele que, possuindo a fé, não busca a razão da mesma. Ele considera uma grande negligência alguém ter recebido a fé, mas não buscar compreendê-la. As Escrituras e a tradição não eram limitadores do conhecimento racional, mas a base e o alicerce para a construção deste conhecimento5. Fé e razão, ou autoridade e razão, não se contradizem, mas podem se complementar. Para os monges próximos a Anselmo, esta era a grande questão. Eles se questionavam se os artigos de fé seriam irracionais ou se um método racional como o dialético poderia ser usado para comprová-los. Antiseri e Reale comentam como o programa de Anselmo foi o de utilizar a razão para provar o que já se possuía pela fé. Assim, é compreensível o seu esforço em pensar provas da existência de Deus, bem como avaliar a necessidade lógica de algumas crenças, como a união hipostática de Cristo. A razão teria a capacidade, portanto, de demonstrar a coerência dos mistérios da fé cristã6. Assim, já é possível compreender a passagem, talvez a mais famosa, do Proslogion:

Não me atrevo, Senhor, a penetrar na tua Altura, porque não Ihe comparo, de modo nenhum, a minha inteligência. Mas desejo reconhecer um pouco a tua Verdade, que o meu coração crê e ama. Na verdade, não procuro antes compreender para crer, mas creio para compreender. Porque, creio-o: «se não acreditar, não compreenderei» [Is 7, 9]7.

Anselmo não apenas aceita a revelação pela fé, mas também crê tão firmemente que não tem medo de engendrar uma busca racional dos objetos da fé. Ele não duvida que a revelação é verdadeira e provém de um Deus verdadeiro. Pensando desta forma, ele utilizou um procedimento chamado sola ratione, através do qual ele analisa os dogmas cristãos se utilizando estritamente do método dialético. Através deste método surgiu o famoso argumento ontológico. O seu bom uso da filosofia e da razão é exemplar. A dialética, ou seja, a razão, pode ser um maravilhoso instrumento para trazer mais luz às questões de fé, uma vez que esta já esteja bem estabelecida e firme.

Conclusão

Nem a soberba de alguns dialéticos, nem a negligência de alguns teólogos. Anselmo optou por uma fé que busca compreender e uma compreensão que se alicerça na fé. “Para Anselmo, a fé é o ponto de partida para a reflexão. A fé não aparece como algo que limita a razão, mas como a bússola que orienta o pensamento, a fim de que não se perca no mar revolto do procedimento dialético”8. O cristão deve ser, portanto, guiado pela fé, confiando na veracidade da revelação, buscando conhecer mais o objeto da fé através do conhecimento. Numa espécie de balanceamento, fé e razão funcionam como peso e contra-peso. “A vigilância crítica da fé impede que esta seja crédula ou, então, se transforme em fonte de fanatismo. A vigilância crítica da inteligência da fé, por sua vez, obsta à tentação de qualquer redução racionalista da fé […]”9. Anselmo, portanto, oferece um antídoto para reducionismos e exemplifica o que é uma fé em busca de compreensão.


1 MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 78.

2 ANSELMO. Proslogion. In: ROSA, J. S. e Pereira, M. H. R. Proslogion: texto integral, leitura orientada e propostas de trabalho. – 2ª edição – Lisboa: Texto Editora, 1997, 96p. p.24. Disponível em: http://hdl.handle.net/ 10400.6/6228.

3 ANSELMO. Epistola de incarnatione Verbi. I, 6, 5-10. Apud VASCONCELLOS, Manoel. Fides Ratio Auctoritas: O Esforço Dialético no ‘Monologion’ de Anselmo de Aosta: As relações entre fé, razão e autoridade. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003, 244 p. p. 197.

4 VASCONCELLOS, Manoel. Crítica de Anselmo a Roscelino na Epistola De Incarnatione Verbi. Dissertatio. Pelotas, n° 17-18, pp. 5-26, Inverno-verão/2003. p.13. Disponível em: https://www2.ufpel.edu.br/isp/ dissertatio/revistas/antigas/dissertatio17-18.pdf.

5 Cf. VASCONCELLOS, Manoel, Auctoritas, p. 25-26.

6 REALE, Giovanni; ANTISERI, Darío. História da Filosofia: patrística e escolástica, v.2. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p.153.

7 ANSELMO. Proslogion. In: ROSA e PEREIRA, Proslogion, p. 16.

8 VASCONCELLOS, Manoel, Roscelino, p. 24.

9 XAVIER, Maria L. O Nome Anselmiano de Deus. In: CORREIA, Carlos João (ed.). A mente, a religião e a ciência. Actas do Colóquio. CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, 2003, p. 269-278.


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Bibliografia

ANSELMO. Proslogion. In: ROSA, J. S. e PEREIRA, M. H. R. Proslogion: texto integral, leitura orientada e propostas de trabalho. 2ª edição. Lisboa: Texto Editora, 1997, 96 p. Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.6/6228.

MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017. 336p.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Darío. História da Filosofia: patrística e escolástica, v.2. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, 335p.

VASCONCELLOS, Manoel. Crítica de Anselmo a Roscelino na Epistola De Incarnatione Verbi. Dissertatio. Pelotas, n° 17-18, pp. 5-26, Inverno-verão/2003. Disponível em: https://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/antigas/dissertatio 17-18.pdf

VASCONCELLOS, Manoel. Fides Ratio Auctoritas: O Esforço Dialético no “Monologion” de Anselmo de Aosta: As relações entre fé, razão e autoridade. Tese (Doutorado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. 244 p.

XAVIER, Maria L. O Nome Anselmiano de Deus. In: CORREIA, Carlos João (ed.). A mente, a religião e a ciência. Actas do Colóquio. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, p. 269-278.