Ensaio escrito por Lorena Rodrigues, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
A modernidade dá grande ênfase ao ser humano e à sua capacidade intelectual para desvendar e desenvolver o mundo ao seu redor. Sua marca principal foi uma separação muito distinta entre fé e razão, que influencia a sociedade e as ciências até a contemporaneidade. Os acontecimentos históricos e culturais da época, como abusos do poder politico pela Igreja Católica Romana e a redescoberta dos textos antigos dos filósofos gregos, alimentaram um novo ímpeto de busca pelo conhecimento tendo como ponto de partida a liberdade humana.
Grandes nomes da filosofia moderna se destacam nesse período, como René Descartes, John Locke, David Hume e outros. O fio condutor comum a eles, no entanto, continua sendo uma crença exacerbada nas capacidades humanas para não apenas descobrir a verdade, mas estabelecê-la. Para alcançar esse objetivo e autonomia, eles tiveram que reestabelecer as relações entre o transcendente e o imanente. Esse novo olhar, juntamente com várias descobertas científicas da época, mudaram a forma de se enxergar o ser humano, o conhecimento e o lugar da religião na vida humana. Esses filósofos estabeleceram uma distinção muito dura entre a mente e o corpo e, consequentemente, com o mundo objetivo, gerando o problema das representações das imagens mentais e o ceticismo, a dúvida se aquilo que eu vejo em minha mente realmente existe ou é real.
Em contraste com esse ceticismo moderno, existe um modelo epistemológico nas Escrituras Hebraicas que se vale do uso de imagens para comunicar um tipo específico de conhecimento. Nas Escrituras, Deus utiliza visões extraordinárias para se comunicar com seu povo. Essas visões, apesar de terem elementos de difícil descrição, são comunicadas relacionando seu conteúdo com objetos reais de senso comum. Diante disso, o objetivo do presente ensaio é estabelecer uma relação entre o modelo epistemológico hebraico e o moderno, demonstrando a confiabilidade dos pressupostos do senso comum de realidade como algo revelado e objetivo. Para isso, usaremos a filosofia do senso comum introduzida por Thomas Reid em resposta ao labirinto de representações gerado pelas ideias de Descartes e Hume.
O dualismo corpo e mente em Descartes e Hume
Os novos desenvolvimentos da modernidade trouxeram consigo um novo olhar para a humanidade. Uma crença muito grande na capacidade do ser humano de, por meio de seus próprios esforços intelectuais, desvendar o mundo ao seu redor. Esses desenvolvimentos filosóficos encontraram um marco importante na figura de René Descartes, que por meio de seu “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), deposita na razão humana a capacidade de estabelecer a verdade. Em suas palavras: “verdade é aquilo que eu percebo com meu eu pensante, independente de nada objetivo” (DESCARTES apud KENNY, 2014, p. 343). Descartes coloca sobre a mente humana a capacidade de determinar as ideias e a existências das coisas, inclusive de Deus. Em Descartes, encontra-se um marco de dualidade entre mente e corpo, ideias e objetos reais que prevalece até a contemporaneidade.
Utilizando o pensamento de Descartes, o também filósofo David Hume dá um passo mais adiante. Hume estabelece que a percepção da realidade é completamente subjetiva e se encontra na mente. Para ele, não há nada objetivo no mundo e vivemos em um labirinto de percepções. O sujeito percebe o sentimento produzido nele e não a coisa em si (KENNY, 2014 p. 270). Essa ideia trouxe consequências sérias para a humanidade, dando origem a uma epistemologia que parte da dúvida cética e rejeita qualquer pressuposto religioso. Afinal, como é possível conhecer algo se tudo o que se tem são percepções subjetivas das coisas?
Hume nos apresenta uma antropologia humana que explica o funcionamento da mente no processo de conhecimento não como uma transação entre um percebedor e um objeto no mundo externo, mas como uma percepção particular pela mente de alguma percepção, impressão ou ideia interior (KENNY, 2014, p. 270). O sujeito percebe o sentimento produzido nele e não a coisa em si. As imagens mentais produzidas pela percepção não têm correspondência com nenhuma realidade objetiva. São absolutamente relativas ao sujeito percebedor.
Nem mesmo Hume conseguiu levar seu modelo filosófico às últimas consequências. Para sair de seu próprio labirinto de ideias, teve que aceitar que um pensador não é um solitário percebedor interior, mas uma pessoa encarnada vivendo em um mundo público (KENNY, 2014, p. 271). Seu sistema tenta vencer o ceticismo indo da razão ao hábito e distinguindo as sensações (sentidos) das ideias (pensar). As associações racionais não possuem valor epistêmico em si mesmas, mas são afirmadas pelo hábito. Para fugir desse perigoso labirinto de representações e ceticismo, a natureza surge como resposta, pois a mesma não permite que duvidemos de tudo.
Thomas Reid e a filosofia do senso comum
Em resposta a essa visão dualista de mente e o corpo (Res Cogitans e Res Extensa), operando de forma independente e distinta ou por meio de um véu de percepção, nessa mesma época, surge o filósofo Thomas Reid com sua filosofia do senso comum. Reid, em contraste com Descartes e Hume, afirma que a matéria-prima da mente não são ideias desconexas, mas juízos originais e naturais não racionalizados e partilhados pela espécie humana em comum (KENNY, 2014, p. 112).
Para Reid, os blocos básicos do conhecimento não são as concepções, mas as proposições. “Em vez de dizer que uma crença ou o conhecimento é apreendido ao juntar e comparar as simples apreensões, deveríamos ao contrário dizer que a apreensão simples é operada ao resolver e analisar um juízo natural e original” (REID apud KENNY, 2014, p. 112). Ou seja, ele concorda com a tradição cristã de que a crença precede o conhecimento. Ao contrário dos filósofos racionais que depositam na razão a responsabilidade de desenvolver uma crença verdadeira, Reid afirma que o senso comum é um repositório de princípios não racionalizados e partilhados em comum que fornecem à espécie humana a capacidade de conhecer. Para ele, ainda que seja um dom comum a todos os seres humanos, ele é um dom dos céus (KENNY, 2014, p. 112).
A força da filosofia de Reid repousa no fato de que sua definição de senso comum não repousava sobre crendices populares, mas, antes, em princípios autoevidentes que outros filósofos apresentaram como intuições da razão. Seu argumento é que não se pode construir proposições a partir do nada. O ser humano não é uma página branca que ao longo do tempo recebe conteúdo (seja ele uma construção objetiva ou social); assim como as ideias não são um objeto do pensamento que faz mediação entre a realidade e a mente, mas, sim, uma operação da mente. As ideias como operação mental se dividem entre memória e imaginação e têm relação direta com os sentidos.
Visões proféticas e o modelo epistemológico hebraico
Nas Escrituras, o Antigo Testamento é caracterizado pela língua e cultura hebraica antiga. Dru Johnson, em sua obra Filosofia Hebraica, apresenta sua tese de que existe uma filosofia de cunho eminentemente hebraico nas páginas das Escrituras. Essa filosofia tem pontos de contato, mas também distinções, com a filosofia ocidental. Em especial, a epistemologia hebraica difere em estrutura e processo: a observação hábil, que requer comunidade, tradição, indivíduo e corpo social atuando em coordenação para conhecer, está no centro de seu mundo epistêmico (JOHNSON, 2022, p. 416).
O conhecimento verdadeiro para um hebreu do mundo antigo estava diretamente ligado aos dados experimentais observados e interpretados por pequenos grupos por meio de repetição. Mas, acima de tudo, o conhecimento para ser verdadeiro depende de uma voz de autoridade e uma relação de confiança com essa voz.
No caso dos profetas do período bíblico, essa confiança se dava em dois aspectos: na autoridade de Yahweh que transmitia a mensagem e conhecimento aos profetas por meio da fala-escuta e da visão, e a confiança do povo no meio pelo qual essa mensagem era transmitida a eles. De forma mais específica, as visões recebidas da parte de Deus pelos profetas, eram muitas vezes espetaculares e cheias de imagens que os mesmos tinham dificuldade em comunicar.
Geerhardus Vos, em sua obra Teologia Bíblica, explica que as visões desses profetas podem ter sido percebidas pelos olhos naturais ou por uma visão interior (VOS, 2019, p.271). O mais importante, no entanto, é que havia neles uma crença na autoridade de Deus como aquele que gera a visão. Yahweh “abre o olho”; mas ele igualmente, “desperta o ouvido” [Is 50.4] (VOS, 2019, p. 267).
A confiança em um Deus que revela era a base da epistemologia hebraica, seguida da experiência provada no tempo e circunstância. Desse modo, as visões recebidas pelos profetas hebreus eram uma fonte de verdade e conhecimento tanto para o profeta como para seu povo. Apesar de essas experiências serem envolvidas por um campo de mistério, é importante observar o uso de linguagem baseada no senso comum para comunicar as verdades reveladas.
O uso predominante de elementos de comparação com noções de senso comum fez com que as visões dos profetas pudessem ser compreendidas pelos seus ouvintes. Diferentemente do conceito de imagens mentais de Hume, que não possui nenhum elemento objetivo de conexão com a realidade, as visões proféticas se apoiam não apenas nos sentidos dos profetas, mas também na autoridade divina e no senso comum de seus ouvintes. A revelação de Deus se manifesta ao seu povo por meio dessas visões instigando a memória e a imaginação.
O conhecimento derivado dessas experiências não é justificado logicamente apenas por operações mentais. Em vez disso, a justificação deriva de uma memória historicamente justificada dos resultados do experimento. Às vezes, os resultados virão da memória de um indivíduo e outras vezes, de uma comunidade. (JOHNSON, 2022, p. 435). Isso fica bastante evidente especialmente no livro de Ezequiel onde, repetidamente após cada visão ou mensagem profética, observa-se a frase “então saberão que eu sou o Senhor”. O objetivo epistêmico da mensagem comunicada é o conhecimento de Yahweh, e o método se baseia na confiança na autoridade da revelação dada por Ele ao profeta por meio dos sentidos e comunicada ao seu povo por meio de linguagem do senso comum. Essa linguagem não se limita somente às analogias, mas vai além, convidando o ouvinte a trazer à memória dados inegáveis da realidade para construir um imaginário submisso ao conhecimento proposto.
Conclusão
Um dos marcos da modernidade foi o dualismo mente e corpo proposto por Descartes em sua filosofia da mente. Essa ideia foi desenvolvida por outros filósofos posteriores. Um deles foi David Hume, que levou o conceito de ideias a um patamar que colocava a humanidade e sua relação com a realidade em um labirinto de representações infinito. Para fugir do ceticismo completo, Hume apelou para os hábitos e a natureza como pontes com a realidade. Suas tentativas, no entanto, são incoerentes e problemáticas, não trazendo respostas eficientes para o problema criado: a dúvida.
No mesmo período, outro filósofo propõe um caminho diferente para fugir do ceticismo. Thomas Reid introduz sua filosofia do senso comum desafiando as proposições anteriores. Segundo ele, é simplesmente uma loucura duvidar de tudo. Ele afirma: “Estou decidido a confiar na minha própria existência e na existência de outras coisas; e acreditar que a neve é fria e o mel doce, independentemente do que digam o contrário. Ele deve ser um tolo ou querer me fazer de bobo, isso me desviaria da razão e dos sentidos.” (REID, ano, p. 29) Ele propõe que o conhecimento não é produzido em nós como se escreve em uma folha em branco, mas que existe na humanidade um conhecimento inato, algo dado, um dom divino.
Em contraponto à filosofia moderna e com pontos de contato com o senso comum de Reid, enxergamos nas páginas das Escrituras um modelo epistemológico diferente. É possível observar nas Escrituras um método de conhecimento que considera as diferenças entre mente e corpo, porém sem as separar. As visões e mensagens proféticas são um exemplo de como Deus utiliza os sentidos humanos para transmitir conhecimento de si mesmo, usando a realidade e figuras do senso comum para comunicar verdade ao seu povo por meio da confiança e na tradição de uma comunidade.
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Referências Bibliográficas
KENNY, Anthony. O despertar da filosofia moderna: Uma nova história da filosofia ocidental, volume 3. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro. 2a edição. São Paulo-SP: Edições Loyola, 2014. 403 p.
JOHNSON, Dru. Filosofia Bíblica: a origem e os aspectos distintivos da abordagem filosófica hebraica. Trad. Igor Sabino. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Editora Thomas Nelson Brasil, 2022. 543 p. E-book Kindle.
REID, Thomas. An inquiry into the human mind: On the principles of common sense. E-artnow. EAN 4066339563605, 2023. 286 p. E-book Kindle.
VOS, Geerhardus. Teologia bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Trad. Alberto Almeida de Paula. 2a edição. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2019, 496 p.