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Interioridade e fé cristã: como a redenção abrangeu a subjetividade

Artigo escrito por Aimeê Eduarda Vieira Borges, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


“‘Senhor, por que os acolhes?’ E ele dirá: ‘Se os acolho, homens sábios, se os acolho, homens prudentes, é porque nenhum deles foi jamais julgado digno’. E ele estenderá os seus braços, e cairemos a seus pés, e choraremos e soluçaremos, e então compreenderemos tudo, compreenderemos o evangelho da graça!”.

(Fiódor Dostoiévski)

Introdução

Teologia é a ciência concernente a Deus, baseada na autorrevelação divina, por meio das Escrituras Sagradas, possuindo seus próprios métodos e regras enquanto disciplina acadêmica (VOS, 2019, p. 13). Neste contexto, há duas disciplinas teológicas importantes, a Teologia Bíblica e Teologia Sistemática, cuja diferença entre elas reside na primeira ter um caráter histórico e a segunda, lógica (VOS, 2019, p. 24). 

Por meio da Teologia Bíblica, é possível ver a progressividade histórica da revelação, unida ao processo redentor estabelecido por Deus para a humanidade. A redenção, dentro deste ponto de vista, ultrapassa apenas o viés objetivo e central, expresso na encarnação, expiação e ressurreição de Cristo (VOS, 2019, p. 16), e passa a considerar também a condição subjetiva do ser humano, que precisa ser salvo através de um processamento interno e individual (VOS, 2019, p. 16). Tal apreço por este aspecto interior manifesta a presença de um Deus pessoal, que não subestima ou despreza a subjetividade humana, nem a sua história. Pelo contrário, a soma à narrativa maior, dando aos personagens deste drama, um significado e razão de ser.  

Já os seres humanos, diante deste prisma imaterial, procuram pela força do seu braço encontrar respostas às suas inquietações existenciais. Disto advém a maximização da subjetividade, fazendo com que haja a idolatria do Homos sentimentalis (CARVALHO, 2017). Diante deste impasse, um verdadeiro relacionamento com o Deus é a única alternativa para o reconhecimento e bom uso da subjetividade humana. 

Desenvolvimento

No livro Coração e Alma, Willem Ouweneel traça uma antropologia bíblica a fim de responder à questão de quem é e como diferenciar o ser humano das demais criaturas. Segundo o autor, a humanidade é o ápice da obra divina e, assim como o Cosmos e a criação se relacionam com Deus, também o fazem com o ser humano (OUWENEEL, 2014, p. 25). Este possui estruturas física, biótica, perceptiva e sensível que estão sob a influência do aspecto espiritivo, responsável pelas deliberações, imaginações e decisões humanas (OUWENEEL, 2014, p. 27). Já os animais, não as possuem, por isso suas ações são pautadas em seus instintos perceptivelmente determinados, impulsos e ímpetos (OUWENEEL, 2014, p. 29). Portanto, os atos humanos, por serem compostos de camadas complexas, não podem ser justificados meramente por condicionamentos instintivos ou reflexos como nos animais. Antes, sofrem influências advindas de três dimensões da vida espiritiva: a dimensão cognitiva, o pensamento; a dimensão criativa, a imaginação; e a dimensão volitiva, o desejo, a escolha e a decisão (OUWENEEL, 2014, p. 29-30). 

Considerando estes aspectos, pode-se perceber que no período pré-redentivo todas estas características humanas funcionavam perfeitamente, pois elas estavam em contato direto com o criador e ordenador de todas as coisas, Deus (Gn. 1-2). Porém, quando o ser humano se distancia Dele, no período probatório, escolhendo deliberadamente comer do fruto a qual o Senhor havia proibido, aquilo que era material e o imaterial sofrem com as consequências do pecado (Gn. 3). Dessa forma, a subjetividade humana, formada pela cognição, volição e afeição, foi diretamente afetada pelo pecado e passou a necessitar da redenção. Assim como o corpo e a terra que para produzirem frutos foram penalizados pelos espinhos, suor e dor (Gn. 3:17-19), a mente e os comportamentos humanos passaram a ter um funcionamento corrompido por distorções. 

Deus, poderia ter se limitado, a partir da Queda, a trabalhar distante dos homens, e apenas pela natureza revelar a grandeza de sua glória. Mas a misericórdia e a graça divina envolveram os maltrapilhos e os revestiu com sua bondade, restaurando o relacionamento destes com Deus, por meio da objetiva entrega de Cristo, através de sua vida, morte e ressurreição (MANNING, 2005, p. 21). Dessa forma, Ele revelou a sua multiforme graça, a partir do seu querer:

Deus deseja glorificar ele mesmo. Isso significa que ele não está contente em ser o que ele é nele mesmo; ele deseja manifestar a si mesmo como tal. Ele deseja ser revelado, conhecido e reconhecido como ele é fora do círculo de sua própria existência. E para este propósito, ele criou a nós homens e nos colocou neste mundo. Deus deve ser glorificado no homem (BARTH apud JOHNSON, 2021, p. 260). 

Ou seja, Ele compartilhou seu processo revelacional e redentivo com uma frágil criatura, marcada por um aparato cognitivo limitado, uma vontade escrava do pecado e afeições desordenadas, para explicitar o caráter eterno e leal da aliança que Ele firmou com a sua criação (ANDREW; WALTON, 2006). A aliança que Deus estabeleceu com a humanidade determinou suas ações e foi o meio pelo qual Ele estava disposto a se revelar (ANDREW; WALTON, 2006). Deus, em seu caráter comunitário, escolheu um povo, deu a ele uma terra, fez promessas, entregou-lhe uma legislatura e estabeleceu um relacionamento baseado em um pacto íntimo que resultasse em um entrelaçamento entre a divindade e a criatura, a fim de que ela formasse um conceito correto e integrado de Deus, condição de possibilidade para a sua cosmovisão (ANDREW; WALTON, 2006). 

Um Deus pessoal e relacional, como Yahweh, demonstrou, por meio de alguns dos elementos sacramentais exteriores da aliança firmada com Israel, a sombra de um movimento radical e mobilizador da subjetividade do ser. Uma espécie de metáfora da transformação interior, que o entrelaçar-se com Deus proporcionava. Uma destas, pode-se dizer, foi a circuncisão, a qual, após o seu cumprimento em Cristo, deixou de ser exterior e foi interiorizada, no coração (Rm. 2:29), representando dogmaticamente a justificação, regeneração e santificação (VOS, 2019, p. 98), elementos de uma transformação intrínseca, chamada de redenção subjetiva (VOS, 2019, p. 16). 

Portanto, a redenção abrangendo o coração — “a profundidade mais íntima do homem, o ponto central ou fundamental em que tudo aquilo que é humano conflui e encontra unidade” (OUWENEEL, 2014, p. 10) — possibilitou a entrada dos personagens humanos no drama divino pela superabundante graça. Deus, ao escrever a sua história, convidou cada ente humano para ser co-criador com Ele. De acordo com Geerhardus Vos (2019), grande paradigma no estudo da Teologia Bíblica, também houve um processo revelacional subjetivo, no qual a “atividade interna do Espírito sobre as profundezas da subconsciência humana fazia que certos pensamentos intencionados por Deus viessem a aflorar” (VOS, 2019, p. 22). Tais atos são evidenciados, por exemplo, na vida e obra dos profetas, que internalizavam e até mesmo interpretavam o estado do povo, a fim de dramaticamente sentirem e expressarem a situação. Nestes atos históricos, o âmago daquele povo estava sendo marcado, seu imaginário era formado, a expectativa pela chegada do Messias era elaborada e o ápice da revelação divina — Jesus Cristo — estava sendo prescrito em uma congruência incrível que perpassa cada livro da Escritura Sagrada. 

Ao mesmo tempo, o cristianismo recebia as suas características que lhe são tão caras e que ao longo da História da Igreja tiveram que ser defendidas e conservadas. Um dos expoentes defensores da relação entre a subjetividade e o cristianismo foi o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, que, diante da profissão de fé do seu tempo, marcada por um cristianismo histórico e institucionalizado, discursou acerca de uma felicidade eterna, pautada na relação do sujeito com a verdade do cristianismo. Para isso, sua máxima — “O cristianismo é espírito; espírito é interioridade; interioridade é subjetividade; subjetividade é essencialmente paixão e, em seu máximo, uma paixão infinita e pessoalmente interessada na felicidade eterna (KIERKEGAARD, 2013, p. 38)” — expressa como é impossível dissociar este aspecto humano do cristianismo, da salvação e da vida eterna. Afinal, um fenômeno está tão intrincado ao outro que é a partir da conquista da fé que o homem consegue revelar plenamente o seu eu (KIERKEGAARD, 2010, p. 16), isto é, ao estar diante de Deus, em um relacionamento real com Ele, o homem ressignifica a sua existência e encontra a sua pequena história, na grande narrativa de Deus. 

Considerações finais 

Portanto, pôde-se perceber como Deus manteve conservada a sua estrutura criacional mesmo depois da Queda e, por sua benevolência, Ele fez uso da subjetividade na sua revelação e redenção, entregando ao homem uma identidade. Algo almejado pela contemporaneidade, mas por ser presa de sua afetividade, faz do self e do homem psicológico seu hiper bem e narrativa, mesmo que isto signifique reduzir-se a isso (CARVALHO, 2017). Assim, cabe ao homem compreender que a sua subjetividade só pode ser verdadeiramente redimida e valorizada por Cristo.


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Referências

ANDREW, E. Hill; WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. Tradução: Lailah de Noronha . Editora Vida Nova, 2006. 684 p.

BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia King James 1611. BV Books. Niterói, RJ: Editora

BV Films, 2017. 1120 p.

CARVALHO, Guilherme. Cura Gay: um caso de conflito entre fé e ciência?. In: Guilherme de Carvalho. Guilherme de carvalho: Teologia Pública| Espiritualidade Contemporânea. 2017 Disponível em:  https://guilhermedecarvalho.com.br/2021/07/20/cura-gay-um-caso-de-conflito-entre-fe-e-ciencia/

DOSTOIÉVISK, Fiodór. Crime e Castigo. Tradução: Oleg Almeida. São Paulo. Editora Martin Claret, 2020. 778 p.

JOHNSON, Eric L. Fundamentos para o cuidado da alma: uma proposta de psicologia cristã. Tradução: Rebeca Hubert Kroker Andrade. São Paulo. Shedd Publicações, 2021. 688 p.

KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. Tradução:Adolfo Casais Monteiro. Editora Unesp, 2010. 166 p.

KIERKEGAARD, Søren. Pós-escritos às migalhas filosóficas: Volume 1. Tradução: Álvaro Luiz e Marília Murta. Editora Vozes Limitada, 2013. 314 p. 

MANNING, Brennan. O evangelho maltrapilho. Tradução: Paulo Purim. São Paulo. Editora Mundo Cristão, 2005. 222 p.

OUWENEEL, Willem. Coração e alma: uma perspectiva cristã da psicologia. Tradução: Afonso Teixeira Filho. São Paulo. Editora Cultura Cristã, 2014. 144 p.

VOS, Geerhardus. Teologia bíblica do Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. Editora Cultura Cristã, 2019. 415 p. Edição do Kindle.