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Mulheres aos pés de Cristo

Artigo escrito por Anne Calland, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


No evangelho de Lucas (Lc 10:38-42), é descrita a visita que Jesus faz à casa de Marta e Maria. Enquanto Marta está ocupada com os afazeres domésticos, Maria se senta aos pés de Jesus, ouvindo atentamente suas palavras. Até que Marta, agitada e sentindo-se sobrecarregada, expressa sua indignação não apenas com a irmã que não a ajuda, mas também com o próprio Cristo, porque permite que Maria permaneça quieta. Jesus, então, surpreende e a responde com palavras de repreensão: “Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10:41-42).

Essa passagem bíblica é muito conhecida e sempre pregada de forma elogiosa à Maria, que escolheu a boa parte, a única coisa necessária, que é estar aos pés de Cristo para ouvir seus ensinamentos e ter comunhão com Ele, enquanto a postura de Marta é censurada por ser ansiosa e cheia de preocupações com o serviço, em detrimento da intimidade prioritária com Cristo. Apesar disso, na prática, em alguns contextos eclesiásticos, as mulheres têm sido marginalizadas no ensino e aprendizado teológico, sob o argumento de que a elas cabe, tão somente, os encargos domésticos.

Se, nos encontros de mulheres na igreja, são abordadas exclusivamente questões relacionadas ao aprimoramento de suas inúmeras responsabilidades e preocupações como esposas e mães, não estamos, de certa forma, encorajando-as a adotarem uma postura semelhante à de Marta? É necessário refletir que “adorar ao Senhor e ouvi-lo falar sempre supera quaisquer outros papéis e esforços” (MCCULLEY, 2017, p. 341).

Francine Walsh, em seu livro Ela à imagem dele, lamenta como quase todos os livros e materiais criados para o público feminino se restringem à temática do papel da mulher dentro do lar:

As passagens bíblicas específicas sobre mulheres, como Provérbios 31 ou Tito 2, acabaram se tornando um padrão exaustivo de ensino e, então, criou-se uma geração de mulheres profundamente versadas no papel feminino, mas praticamente analfabetas em quaisquer outras doutrinas bíblicas. Cabe ressaltar que não proponho como solução a fuga de certos textos bíblicos, mas, sim, um ensino holístico das Escrituras às mulheres. Não há nada de errado com Provérbios 31 ou Tito 2; o errado reside na ideia de que essas são as únicas passagens válidas para as filhas de Deus (WALSH, 2022, p. 66).

No entanto, não se pretende aqui, de forma alguma, reduzir a importância da domesticidade ou a relevância de textos como os mencionados acima por Francine Walsh, mas ressaltar a necessidade do estudo bíblico-teológico de toda a Bíblia para as mulheres cristãs.

Em Tito 2, por exemplo, vê-se que o apóstolo Paulo focaliza a atenção de Tito na vida familiar e individual. Ele dá mandamentos relativos à conduta correta de cinco classes de indivíduos: anciãos, anciãs, jovens casadas, jovens e servos (HENDRIKSEN, 2011, p. 442). Quanto às mulheres idosas, ele afirma que devem ser semelhantemente reverentes em sua maneira de viver, não caluniadoras e não escravizadas a muito vinho; sejam mestras daquilo que é excelente, de modo que orientem as mulheres mais jovens a amarem seus maridos e filhos, a serem autocontroladas, castas, obreiras domésticas, bondosas, submissas a seus próprios maridos para que a Palavra de Deus não seja difamada (Tt 2:3-5).

Na versão bíblica Almeida Revista e Atualizada do texto acima, lê-se que as mulheres mais velhas precisam ser “mestras do bem”. A Confissão de Fé de Westminster, ao definir boas obras, no Capítulo XVI, I, declara que “são somente aquelas que Deus ordena em sua santa Palavra, não as que, sem autoridade dela, são aconselhadas pelos homens movidos de um zelo cego ou sob qualquer outro pretexto de boa intenção”. Assim, é preciso primeiro beber da fonte de todo bem, que é Cristo, para, então, transbordar fé e conhecimento para orientar os demais irmãos:

Essas boas obras, feitas em obediência aos mandamentos de Deus, são o fruto e as evidências de uma fé viva e verdadeira. Por elas, os crentes manifestam a sua gratidão, robustecem a sua confiança, edificam os seus irmãos, adornam a profissão do Evangelho, tapam a boca dos adversários e glorificam a Deus, de quem são feitura, criados em Jesus Cristo para isso mesmo, a fim de que, tendo o seu fruto em santificação, tenham no fim a vida eterna (CFW, Capítulo XVI, II).

R. C. Sproul explica que a teologia é inevitável para todo cristão, pois é a tentativa de entender a verdade que Deus nos revelou. “Portanto, a questão não é se vamos nos engajar em teologia, mas se a nossa teologia é correta ou incorreta” (SPROUL, 2017, p. 28-29).

Desse modo, “junto com todos os membros da igreja, as mulheres devem ser encorajadas a se envolver conscientemente na reflexão teológica, a fortalecer sua musculatura bíblico-teológica e a desenvolver sua perspicácia teológica” (NORRIS, 2020, p. 194). Laurie Norris afirma que pesa sobre homens e mulheres um imperativo teológico, sendo ainda uma ordenança criacional. As mulheres devem formalmente participar do discurso teológico porque refletem metade da imagem de Deus:

Juntos, homem e mulher, Deus os criou à sua imagem (Gn 1.27). Uma vez que são portadoras da mesma imagem, excluir as mulheres da contribuição formal no discurso teológico (seja abertamente ou por negligência) sobre o próprio Deus cuja imagem elas refletem é o mesmo que investigar o histórico genético de uma criança e excluir sua mãe (NORRIS, 2020, p. 195).

Embora o chamado de Deus para liderar seu povo seja direcionado especificamente aos homens, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, encontramos mulheres sendo poderosamente utilizadas para glorificar a Deus (WALSH, 2022, p. 91). Quando Cristo permitiu que uma mulher se sentasse aos seus pés para ouvi-lo ensinar, ele desafiou algumas das normas e práticas da cultura judaica (MCCULLEY, 2017, p. 341, 342). Enquanto as mulheres eram completamente excluídas das conversas teológicas, Jesus declarou à Maria que ela era bem-vinda aos seus pés na condição de discípula.

Jesus manteve o claro ensino da Escritura sobre papéis no casamento e na liderança espiritual. Ao mesmo tempo em que conviveu, curou e ensinou mulheres, recebeu sustento físico e financeiro delas, também discutiu assuntos teológicos, como em João 11.21-27, com Marta, e com a mulher samaritana, em João 4, além de aparecer primeiro para Maria Madalena e enviá-la para anunciar a sua ressurreição, em uma época em que elas não podiam sequer testemunhar nas cortes judaicas (MCCULLEY, 2017, p. 342).

Ao corrigir falsos padrões de comportamentos religiosos de seu tempo, Cristo destrói a inimizade causada pela maldição do pecado e reúne grupos opostos em um só. Como escreve o apóstolo Paulo em Gálatas 3.28, não pode haver judeu, nem grego; nem escravo, nem liberto; nem homem, nem mulher; porque todos são um em Cristo Jesus. Assim, as distinções, raciais ou religiosas, sociais, ou sexuais, devem ser completamente — e para sempre — erradicadas, uma vez que em Cristo todos são iguais em valor (HENDRIKSEN, 2009, p. 182).

O apóstolo Paulo também reconhece o papel das mulheres como colaboradoras do Evangelho: Febe foi necessária à igreja primitiva (Rm 16:1-2), Priscila foi chamada de cooperadora em Cristo Jesus (Rm 16:3), Síntique e Evódia esforçaram-se pelo Evangelho (Fp. 4:2-3) e Trifena e Trifosa trabalhavam no Senhor (Rm 16:12). 

Kathy Keller ressalta que “é preciso que ambos, homens e mulheres, vivam seus papéis de gênero na segurança do lar e da igreja, para revelar ao mundo a plenitude da pessoa de Jesus” (KELLER, 2019, p. 68). A necessidade da boa teologia no dia a dia do lar é inquestionável. Deus requer e presenteia a mãe com o trabalho de ajudar os filhos a conhecê-lo e amá-lo de todo coração e alma, mente e força, enquanto os ensina diligentemente os caminhos da Palavra de Deus, que é, apenas outro modo de dizer, teologia (DODDS, 2019, n.p.). 

Impõe-se ressaltar a importância de as mulheres se dedicarem à reflexão teológica na igreja local e em benefício dela. Não se pode apagar os diversos dons que o próprio Espírito Santo concede às irmãs no campo de discipulado, exortação, aconselhamento, educação, pesquisa acadêmica e muitos outros. É preciso ter obediência criativa aos mandamentos divinos e permitir que as filhas de Deus sirvam nos ministérios eclesiásticos, sem que para isso reivindiquem para si autoridade de ensino própria de pastores e presbíteros ordenados.

Assim sendo, é fundamental encorajar as mulheres a participarem na reflexão teológica. Como portadoras da imagem de Deus e participantes da imagem renovada em Cristo, elas devem, em submissão e movidas pela graça, dedicar seus dons e esforços para colaborar efetivamente no Evangelho de Cristo, seguindo o exemplo de santas mulheres das Escrituras.

No último dia, as mulheres prestarão contas ao Senhor. É Ele quem sonda os corações e percebe o trabalho de cada uma, ainda que os holofotes não estejam direcionados a elas. Que cada serva de Cristo não se deixe influenciar por tradições humanas, mas se dedique ao aprendizado de Deus e de sua Palavra, enquanto serve o Reino com excelência. Assim, poderá, por fim, ouvir de Cristo: “Muito bem, serva boa e fiel, escolheste a melhor parte, entra no gozo do teu Senhor!”.


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Referências Bibliográficas

BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 2018. 2240p.

Confissão de Fé de Westminster: Disponível em: https://www.executivaipb.com.br/arquivos/confissao_de_westminster.pdf. Acesso em: 31 dez. 2023.

DODDS, Abigail. A apologética de ser mãe: por que as mães devem ser teólogas. TUPORÉM. 7 mai. 2019. Disponível em: https://tuporem.com.br/a-apolog%C3%A9tica-de-ser-m%C3%A3e-por-que-as-m%C3%A3es-devem-ser-te%C3%B3logas-1aea4188d328. Acesso em: 31 dez. 2023.

HENDRIKSEN, William. 1 e 2 Timóteo e Tito: Comentário do Novo Testamento. Tradução: Valter Graciano Martins. 2  ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011. 496 p.

HENDRIKSEN, William. Gálatas: Comentário do Novo Testamento. Tradução: Valter Graciano Martins. 2  ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2009. 304 p.

KELLER, Kathy. Jesus, justiça e papéis de gênero: mulheres no ministério. Tradução: João Guilherme Anjos. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil. 2019. 80 p.

LOPES, Hernandes Dias. Lucas: Jesus, o Homem Perfeito. 1 ed. São Paulo, SP: Hagnos, 2017. 710 p.

MCCULLEY, Carolyn. Feminilidade Radical: Fé Feminina em um Mundo Feminista Tradução: D&D Traduções. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017. Edição do Kindle.

NORRIS, Laurie. “A Teóloga Eclesiástica” In: Wilson, Todd; Hiestand, Gerald (Org.). Tornando-se um Pastor Teólogo: Identidade e Possibilidades para a Liderança da Igreja. Tradução: Valéria Lamim Delgado Fernandes. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2020. p. 193-203. Edição do Kindle.

SPROUL, R. C.. Somos todos teólogos: uma introdução à teologia sistemática. Tradução: Francisco Wellington Ferreira. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017. Edição do Kindle. 
WALSH, Francine Veríssimo. Ela à imagem dele: a identidade feminina à luz do caráter de Deus. 1 ed. Fortaleza, CE: Dois Dedos de Teologia, 2022. 240 p.