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Novas tecnologias e o cuidado pastoral: sobre a necessidade de discernimento digital

O professor de ciências da computação da Redeemer University College, Derek Schuurman, é bastante preciso em sua análise quando nos diz o seguinte:

Parece que virou moda em tempos pós-modernos ver a tecnologia com uma certa dose de desespero. Futuristas pintam um quadro sombrio de um novo mundo no qual as poderosas e sinistras tecnologias são onipresentes e invadem toda a vida, e muitos filmes recentes retratam cenários de como a tecnologia irá se virar contra nós e, finalmente, tornar-se uma ameaça para a humanidade. […] Há muitas preocupações legítimas sobre a tecnologia da computação (não obstante as revoltas de robôs). Neil Postman, por exemplo, argumentou que a tecnologia não é neutra e de fato muda as coisas. Ele observa que os designers de tecnologia incorporam seus valores pessoais ou corporativos em artefatos técnicos e, como resultado, os objetos tecnológicos são inclinados para determinados usos, que por sua vez influenciam o usuário a usá-los de uma determinada maneira. A tecnologia tem uma maneira de mudar as coisas. ¹

Schuurman nos chama atenção para um fator muito presente no cotidiano das pessoas que, justamente por isso, torna-se uma questão importante para pastores e todo cristão que é um conselheiro bíblico. Trata-se do que está no cerne das discussões sobre a influência da tecnologia em nosso dia a dia. É inegável sua presença, influência e conseqeências na vida prática de qualquer habitante do século 21. Entretanto, o que ainda está em discussão é o que realmente é atingido no ser humano. No trecho acima, Derek Schuurman mostra como a ficção científica aponta para cenários sombrios, em que a tecnologia sobrepuja e domina o ser humano – em uma inversão pecaminosa do mandato original dado no Éden (Gn 2.15-18) para o ser humano guardar e cultivar a terra. 

Nesse sentido, fica explícito que todo cristão que busca cumprir o mandamento bíblico de aconselhar uns aos outros e, em especial, pastores e estudantes de teologia, não podem ignorar os efeitos da tecnologia na vida das pessoas. Contudo, ainda é necessário fazer um trabalho mais rigoroso para sairmos de um nível superficial de discussão sobre como um conselheiro bíblico pode perceber níveis comprometedores do uso de novas tecnologias. Derek Schuurman continua argumentando o seguinte:

Não acho que o maior perigo da tecnologia virá na forma de uma revolta de robôs ou tendo máquinas descontentes escravizando a humanidade. Acredito que o maior perigo da tecnologia é muito mais sutil: é a forma como algumas destas mudanças arrastam-se em nossas vidas e afetam a forma como nos relacionamos, a maneira que nós gastamos nosso tempo e a maneira que definimos as nossas prioridades. A tecnologia trouxe alterações à forma como trabalhamos, à nossa educação, à nossa vida pessoal e até mesmo à nossa adoração. Estas práticas formam hábitos, e hábitos têm uma maneira de moldar nossos corações. Talvez não precisemos precaver-nos contra uma possível revolta de robôs, mas precisamos guardar nosso coração, pois é a “fonte da vida” (ver Provérbios 4.23). ¹

A argumentação de Schuurman vai ao ponto central de todo cuidado pastoral com os seres humanos. Nada é preocupante, quando estamos falando de seres humanos, quando ainda não atinge seu coração – o núcleo espiritual da personalidade de um indivíduo, onde a imagem e semelhança com o próprio Deus faz o se assento. Qualquer pensamento, discurso ou prática pessoal que não é uma expressão genuína do mais profundo âmago do ser humano, não tem condições de comprometer a personalidade desse indivíduo. É isso que significa o profeta dizer que o povo de Deus às vezes tem o louvor nos lábios, mas o coração longe do Senhor. Ou seja, não existe genuína expressão de entrega pessoal, pois o que há de mais central no ser humano ainda está indiferente a Deus. 

Consequentemente, quando Schuurman aponta a modificação que as novas tecnologias estão fazendo em nosso coração, o problema assume proporções perigosas. Quando nossos hábitos são autoritariamente ditados pelas exigências tecnológicas em nossas vidas – velocidade para responder mensagens, vertigem frente ao acumulo de novas informações, incapacidade de manter-se atualizado ou até o mal estar de permanecer longe de um smartphone – significa que algo mais profundo está modificando-se. Seguindo de maneira próxima uma perspectiva que foi popularizada recentemente pelo filósofo canadense James K. A. Smith, no livro Você é o que você ama (2016), Schuurman deixa claro que hábitos são formativos e deformativos para as certezas fundamentais de nosso coração. A tecnologia pode, de maneira muito sutil, fazer com que passemos a encontrar certeza e estabilidade absoluta em artefatos tecnológicos relativos. ²

Diante dessa situação, faz-se necessário que pastores, conselheiros bíblicos e todo discípulo de Cristo, desenvolvam um discernimento digital capaz de observar tais mudanças profundas em nosso coração. Em outra ocasião, Schuurman argumenta que:

Precisamos discernir que há uma necessidade em limitarmos o uso das nossas ferramentas digitais, e que a verdadeira comunicação face-a-face é essencial ao ser humano. E talvez em um mundo digital agitado, aclamando por nossa contínua desatenção, precisemos re-aprender a separar tempo para reflexão e devoção. Como na história de Maria e Marta, muitos de nós precisam se esforçar para por de lado nossas muitas distrações digitais e ter tempo para se assentar aos pés do Mestre e ouvi-lo. ³

A questão imediata que os leitores podem se colocar, frente à necessidade de um discernimento digital é: quais são os critérios para discernirmos os efeitos maléficos da tecnologia? Como desenvolver uma sabedoria bíblica para as novas tecnologias? E agora, como viveremos?

Ainda que a tentativa de encontrar instrução bíblica literal pra novas tecnologias seja um anacronismo contraproducente, não podemos dizer que as Escrituras não têm nada a dizer sobre o assunto. Além de procurarmos situações cotidianas análogas às experiências tecnológicas – como faz Schuurman no parágrafo acima com a narrativa bíblica sobre Marta e Maria – podemos também procurar os fundamentos bíblico-teológicos do substrato mais geral em que a tecnologia se encontra: o mandato cultural e seus desdobramentos para o trabalho e o desenvolvimento de ferramentas. Na orientação bíblica para cuidarmos e cultivarmos o jardim em que nossos pais foram colocados, escondem-se ordenanças criacionais gerais que podem ser aplicadas em casos específicos – como, por exemplo, as novas tecnologias. O equilíbrio entre uma posição conservadora (que utiliza-se de todas as oportunidades e habilidades para conservar) e outra progressista (que esforça-se em cultivar e desenvolver aspectos encapsulados da criação de Deus) precisa ser uma busca constante do cristão em todos os aspectos da sua vida. Quando aplicamos isso à tecnologia, torna-se claro que todo discípulo de Jesus precisa se afastar de posições ideológicas que afirmam apenas um desses pontos. Ou seja, uma abordagem cristã da tecnologia não pode recair nem no saudosismo quietista do conservadorismo tecnológico, muito menos no progressismo agressivo dos tecnocratas que querem desenvolver e produzir a qualquer custo. 

Outra possibilidade é também encarar como Deus forneceu materiais para os seres humanos desenvolver equipamentos para o seu trabalho dentro e fora do jardim – rumo à cidade-jardim chamada Nova Jerusalém. Nas palavras de Schuurman:

A menção a ouro e materiais preciosos em Gênesis 2 não é simplesmente um detalhe supérfluo do relato da criação. Estes são os materiais latentes na criação com a qual forjamos artefatos culturais, aqueles que podem ser dirigidos para longe de Deus ou em direção a ele. Podemos usar esses materiais para construir bezerros de ouro ou para construir templos que honram ao Senhor. Podemos usá-los como um presente para o Senhor ou para forjar nossos próprios ídolos. Colossenses 1.16 nos lembra que todas as coisas não só foram criadas por meio de Cristo, mas também para Ele. As implicações disso são significativas: todas as coisas na criação, incluindo as matérias-primas que forjamos, têm um significado e uma finalidade (telos), e que o propósito é encontrado em Cristo. Isso inclui a tecnologia, que também tem um significado, e o significado da tecnologia é encontrado no serviço a Deus. 4

Fica evidente, portanto, os mesmos materiais utilizados para construir bezerros de ouro idólatras, foram utilizados na construção do templo em Jerusalém – e estarão presentes na Nova Jerusalém. Em si mesmo, não existe nada pecaminoso no trabalho e desenvolvimento tecnológico. Mas a direção em que apontamos nossas expressões culturais são sempre duas: em rebeldia ou em obediência a Deus. Essa voltagem dupla é característica do coração humano. Desde Agostinho já é fato que só existem dois tipos de pessoas, pois nossos corações são alimentados por esses dois tipos de amor: a Deus ou aos ídolos. 

Uma posição equilibrada leva em consideração que a tecnologia é um desencadeamento lógico da ordem de cooperar com Deus em sua criação, fazendo com que todas as coisas sejam novamente reunidas aos pés de Cristo. Schuurman aponta para essa direção quando diz que:

Devido à forma como a tecnologia pode efetuar uma mudança, alguns a veem com desespero, como se de alguma forma fosse mais caída do que outras atividades humanas. Mas não há nada inerente à tecnologia que deva levar à rejeição ou ao desespero; embora caída, a tecnologia é outra parte do potencial latente na boa criação de Deus, na qual nós podemos nos deliciar. E, assim como em outros aspectos da criação, somos chamados a ser mordomos fiéis dos recursos, empregando a tecnologia de uma forma responsável que responde ao chamado de Deus para amarmos nosso próximo e para cuidarmos da terra e de suas criaturas. Em vez de contribuir para o medo ou desespero, a tecnologia deve contribuir para o Shalom. ¹


Referências Bibliográficas 

  1. Derek Schuurman.  Tecnologia, revolta de robôs e o coração. Disponível em: http://tuporem.org.br/tecnologia-revolta-de-robos-e-o-coracao/
  2. Herman Dooyeweerd. Raízes do Pensamento Ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. 
  3. Derek Schuurman. A internet e nossos cérebros. Disponível em: http://tuporem.org.br/a-internet-e-o-seu-cerebro/
  4. Derek Schuurman. O significado da Tecnologia. Disponível em: http://www.cristaosnaciencia.org.br/recursos/o-significado-da-tecnologia-por-derek-schuurman/