Artigo escrito por Rita de Cássia Peres Braga, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
Sócrates é tido por muitos como o santo patrono da filosofia. É certo que suas reflexões levaram a filosofia a um lugar nunca antes navegado, e de onde viriam muitas ondas até os dias de hoje. A introspecção pleiteada pelo filósofo levou o mundo a olhar com outros olhos o homem. Porém, paradoxalmente, esse olhar para o interior não trouxe à humanidade o encontro dessa verdade tão almejada. O que teria faltado? Aliás, o que ainda falta para que homens e mulheres descansem suas almas dessa busca pela verdade que não falha?
A filosofia socrática e seus desdobramentos atuais
Sócrates foi um ponto fundamental na história da filosofia. Iniciou uma tradição que tem frutos e desprendimentos até os dias de hoje. Foi ele quem deu o giro filosófico respondendo ao problema: “o que é a essência do homem?” Ao responde-lo, foi incisivo em afirmar que a essência do homem é sua alma. O objeto de sua filosofia era tanto o autoconhecimento como a dialética. Considerou o estado da alma humana o que importava para a felicidade (DULCI, 2024, n.p.). Ele ensinava que para haver a cura da alma e seu subsequente florescimento, esta precisava estar desapegada de tudo que é corporal e externo, “os valores verdadeiros não são ligados a coisas externas como a riqueza, o poder… e sequer os ligados ao corpo, como o vigor, a saúde física, a beleza.” (REALE, 2017, pg. 87). O “Conhece-te a ti mesmo” levaria o homem ao encontro da virtude nele próprio, e essa virtude para Sócrates era o conhecimento. Mas qual seria esse conhecimento, — indaga John Frame em sua História da Filosofia e Teologia Ocidental (FRAME, 2023). Por meio de seus diálogos, reflexões e questionamentos, Sócrates declarava que “uma vida que não é examinada não vale a pena ser vivida”. Outro ponto fundamental dos estudos socráticos fala sobre a enkrateia, onde o indivíduo consegue ter domínio de si, sendo que esse domínio está ligado a luz do conhecimento; assim como a akrasia, que é a falta de domínio por parte do indivíduo que sabe o que deve fazer mas não o faz por falta de conhecimento.
Não se deve fazer um uso anacrônico de conceitos como racionalismo e humanismo relacionados a filosofia socrática. Porém, podemos ver raízes dessas cosmovisões em seus ensinos. Vivemos numa era onde cosmovisões humanistas, egocêntricas levam as sociedades a buscarem suas respostas dentro de cada pessoa. Cada indivíduo é tanto fonte de força e poder, quanto a cura para suas mazelas. Eleva-se o ser humano a uma posição que nunca foi, nem será dele. São usadas várias formas de falar sobre o mesmo: poder interior, força motriz, auto-ajuda, psicologia do auto-conhecimento. Esse mote socrático, nos leva a situar a verdade e a virtude na subjetividade individual. (FRAME, 2023, p.128). Não há mal em conhecermos a nós mesmos para sabermos lidar bem com nossas emoções e como reagir a determinadas situações; conhecer aquilo em que somos tentados e temos dificuldade de resistir. A questão é quando isso deixa de ser um meio para ser o fim. Tudo isso vem se desenvolvendo desde a antiguidade e infelizmente ganhado terreno até mesmo dentro da igreja evangélica.
Os paradoxos da filosofia socrática e o autoconhecimento a luz das Escrituras
A mensagem nas entrelinhas do autoconhecimento pagão é a idolatria. Troca-se a glória do Criador por algo da criação. O ensinamento da auto-ajuda, o olhar para dentro “cria um belo trono em que nosso coração possa se acomodar, tornando-nos governantes sobre a nossa própria vida”. (FERRERA, 2023, p.104). Em sua idolatria os homens buscam respostas para a realidade fora de Deus. Calvino diz que o coração do homem é uma fábrica de ídolos, bem como “…dificilmente jamais se achou um só que não fabricasse para si um ídolo ou imagem no lugar de Deus” (CALVINO, 2022, p. 73).
E esse senso de sermos autossuficientes nos leva para mais longe de confiarmos em Deus. Mergulhar em nosso interior não nos levará a única cura verdadeira para as nossas almas, que é a regeneração de nosso coração caído pelo poder do Espírito Santo quando por ele cremos na obra redentora de Jesus. É preciso olhar para a Origem absoluta e compreender que o problema está em nós e que a cura vem dEle. A esse respeito, João Calvino, em suas Institutas, escreve o seguinte: “Ninguém pode sequer olhar a si próprio sem imediatamente voltar o pensamento à contemplação de Deus, em quem vive e se move.” (CALVINO, 2022, p. 43). O autoconhecimento pagão não nos leva a tomar a nossa cruz e a morrer para nós mesmos, mas esse é o caminho do discipulado que nos traz a vida verdadeira (Mt 16:24-26).
Antagonicamente aos ensinos de Sócrates sobre enkrateia X akrasia, a Bíblia nos mostra que todos pecamos e carecemos da glória de Deus (Rm 3:23), que não há um justo sequer, não há ninguém que faça o bem (Rm 3:10-12). Por causa da depravação total do homem não temos como desejar fazer o bem, não temos domínio sobre nossos desejos. Porém, Jesus veio para nos trazer a redenção, para nos tirar desse império de trevas, de onde éramos escravos, e nos levar para seu maravilhoso Reino, onde reinaremos com Ele (Cl 1:13). O momento da história, no qual nos encontramos, entre o já e o ainda não, continuamos na luta contra a natureza pecaminosa, mas ela não mais nos domina. Os que creem em Jesus tem o poder do Espírito Santo para querer e fazer a vontade de Deus, e isso é bem diferente de um domínio próprio baseado num conhecimento que nos leva necessariamente a atitudes corretas.
À luz das Escrituras, para que o homem se conheça, ele precisa conhecer ao seu Criador, o Senhor soberano, Rei de toda glória. “Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo até que tenha, antes, contemplado a face de Deus e, da visão dele, passe a examinar a si mesmo” (CALVINO, 2022, p. 44).
Conclusão
Podemos concluir com as afirmações de John Frame em sua História da Filosofia e Teologia Ocidentais:
“Uma característica intrínseca dos filósofos gregos é sua insistência na supremacia da razão humana, a autonomia racional. Eles vão tentando lidar com os problemas que surgem sem comprometer sua fidelidade fundamental à razão autônoma de diversas maneiras … embora sejam muito diferentes em diversos aspectos, todas as filosofias buscam compreender a realidade sem a orientação de uma pessoa absoluta. Com isso elas afirmam a autonomia de seu próprio raciocínio. No entanto todas elas em algum momento percebem sua falibilidade.” (FRAME, 2023, p. 111,151).
Devido a rebeldia para com o Senhor do universo, vemos que desde a queda, passando pelos filósofos pré-socráticos, por Sócrates, e até os dias atuais, os homens precisam explicar a realidade sem fazer referência ao Deus bíblico. Entretanto, o mundo não pode ser compreendido de forma autônoma, é preciso ir a fonte de tudo, o Autor da verdade. Não há como a humanidade olhar para si mesma, sem o transcendental, sem se conectar com a Origem absoluta.
João Calvino, brilhantemente, pondera acerca desses pressupostos:
“E assim, da consciência da nossa ignorância, vaidade, pobreza, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte, senão no Senhor, se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo o que é bom, a pureza da justiça”…“em parte alguma se achará uma gota ou de verdade ou de sabedoria e de luz, ou de justiça, ou de poder, ou de retidão, ou de genuína verdade, que dele não emane e de que não seja ele próprio a causa, de modo que aprendamos a realmente dele esperar e nele buscar todas essas coisas e, após recebidas, a atribuí-las a ele, com ações de graças.” (CALVINO, 2022, p.44, 48).
Referências Bibliográficas
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. 1 ed. Rio de Janeiro. Thomas Nelson Brasil. 2018. 1642 p.
CALVINO, João. As Institutas / João Calvino. Tradução: Waldyr Carvalho Luz. 3 ed. São Paulo, SP. Cultura Cristã. 2022. 1634 p.
DULCI, Pedro. A alma humana, autodomínio, liberdade e felicidade na filosofia de Sócrates. Invisible College. Goiânia-GO. 2024. Duração 29:34. Disponível em https://hubinvisiblecollege.com.br/course/tutoria-filosofica-2024
FERRERA, Hillary Morgan. Apologética da mamãe ursa: emponderando seus filhos para enfrentarem as mentiras da nossa cultura. Tradução: Elmer Pires. 1 ed. São Bernardo do Campo, SP. Editora Trinitas. 2023. 322 p.
FRAME, John M. História da filosofia e teologia ocidental. Tradução de Pedro H. R. De O. Issa. 1 ed. São Paulo, SP. Editora Vida Nova. 2023 . 1184 p.
REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Tradução: José Bortolini. São Paulo, SP. Editora Paulus. 2017. 697 p.
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