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O cristão e o seu papel no cumprimento do mandato cultural

Escrito por Iara Carvalho das Neves, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023


Os dois primeiros capítulos do livro de Gênesis narram a criação dos céus, da terra e de tudo o que neles há. Numa sequência espetacular, Deus cria luz e trevas, dia e noite, terras e águas, plantas, relva, árvores frutíferas, astros para o dia e para a noite, animais marinhos, aves, animais domésticos, répteis e animais selváticos, culminando na criação do homem. Havia uma ordem criacional e ao homem foi dada a tarefa de cultivar e guardar a criação.

Entretanto, a Queda corrompeu o homem e a mulher e sua relação com tudo o que fora criado. Nesse episódio, a primeira revelação especial redentora é manifesta. A desobediência do homem e da mulher trouxe consequências, mas, apesar disso, tanto a justiça quanto a graça são dirigidas a esses. Deus estabelece inimizade entre o homem e seu tentador, e dá àquele, mais uma vez, a oportunidade de se tornar seu aliado. 

Pelo poder e graça divinos, Deus traria a vitória contra o tentador por meio da raça humana quando o Escolhido, também humano, esmagasse a cabeça da serpente. A falha humana trouxe consequências, mas a graça de Deus possibilitou o exercício do mandato cultural mesmo em meio a dores e sofrimentos. Diante disso, pretendemos, no presente artigo, refletir sobre o papel do cristão no cumprimento do mandato cultural, à luz da cosmovisão bíblica.

Entendendo o que significa cosmovisão

A palavra cosmovisão foi usada pela primeira vez pelo filósofo iluminista Immanuel Kant, em sua obra Crítica da Faculdade do Juízo, de 1790. Kant acreditava que cada ser humano usava a razão apenas para alcançar compreensão do que o mundo significava e para descobrir seu papel nele. Nossa estrutura mental, a maneira como vivemos e como percebemos o mundo à nossa volta determinam nossa cosmovisão; vai além da ciência e da filosofia. Na verdade, a ciência e a filosofia são construídas com base na cosmovisão que as pessoas têm2.

Alguns anos depois, o filósofo cristão dinamarquês Søren Kierkegaard, para fazer distinção entre uma experiência cristã verdadeira e um cristianismo nominal, afirmou que uma pessoa alcançava uma cosmovisão cristã apenas por meio de um encontro transformador e existencial com o Cristo vivo. James Sire, em seu livro Dando nome ao elefante, afirmou que:

Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como uma estória ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o fundamento sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos.3

 Assim, a orientação fundamental do coração de um cristão vem dos direcionamentos dados através da narrativa bíblica, pois ela transforma mentes para que um modelo de mundo bíblico direcione seus adeptos no mundo. Coexistir com uma narrativa completamente diferente do que a Bíblia diz demanda um certo entendimento acerca de acontecimentos que nos trouxeram até onde estamos.

O desenrolar da história

Tales, Anaximandro e Anaxímenes, século VI a.C., já acreditavam que o mundo poderia ser melhor compreendido por meio da observação e da razão. O mito e a religião, posteriormente, deram lugar ao racionalismo e essa cosmovisão grega pagã alcançou sua expressão máxima em Platão (427-348 a.C.). Para Platão, o mundo possuía duas esferas, a visível e a invisível. Dessa forma, o ser humano também absorveu essa visão dualista: um corpo material e uma alma racional, um corpo mortal e uma alma perene. Plotino (205-270 d.C.) resgatou a filosofia platônica e desenvolveu no neoplatonismo a forma religiosa dessas ideias: a salvação era a libertação da alma de sua prisão corpórea. É sob a influência dessa visão que a cultura medieval se desenvolveu.

Adiante, Jesus de Nazaré anunciou o reino de Deus em seus 3 anos de ministério numa cultura dominada pela cosmovisão grega pagã. O Império Romano era hostil à fé cristã e a igreja só saiu da periferia após Constantino legalizar o cristianismo (311 d.C.) e Teodósio torná-lo a única religião do Império (380 d.C.). A estrutura da cultura medieval repousa sob o pensamento de Agostinho de Hipona (354-430 d.C.). Para Agostinho, a esfera espiritual transcendente era a única que realmente importava. Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.) manteve o comprometimento com a esfera espiritual, mas buscou uma forma de sintetizar a fé bíblica, o cristianismo platonizado e a filosofia aristotélica num sistema de pensamento que nos traz aos dias de hoje.

Nos séculos XV e XVI, a cultura pagã clássica renasceu e cresceu até se tornar a luz do mundo4. Estamos diante da Renascença e do Iluminismo. O passado cristão deu forma ao Humanismo, um movimento intelectual difundido na Europa durante a Renascença e que valoriza o saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana. O humanismo não é um conjunto de doutrinas que objetivam a valorização da criação Divina, mas, sim, um sistema de crenças em que os seres humanos substituíram Deus como Criador.

A fé na ciência, no progresso, na razão, na tecnologia e num mundo social racionalmente ordenado suprimiu a necessidade da ordem criacional, fazendo com que o homem deixasse de enxergar a relação com Deus como fundamental, dando início a uma caminhada rumo a destruição de si mesmo e da criação.

E agora, o que fazer?

Todo esse progresso trouxe consigo modificações nas relações sociais e na economia. A Revolução Industrial é um bom exemplo disso. As residências eram tanto lares quanto local de negócios, o trabalho era manual, a maioria das pessoas vivia na zona rural. Assim, temos o surgimento de maquinário substituindo o trabalho manual, a subdivisão de tarefas, a mudança do local de trabalho da casa para as fábricas e o êxodo do campo para as cidades. O Estado ganhou força e o homem, cada vez mais sugado, assistiu à desintegração das famílias e o aumento da miséria. Todos trabalhavam em condições sub-humanas. Uma revolução social fez-se necessária, embora insuficiente. O psicólogo Carl Jung, no início do século XX, disse (apud BARTHOLOMEW; GOHEEN, 2016) ter perdido a fé em nós mesmos, em nosso próprio valor e na possibilidade de uma organização racional de mundo. Pobreza, proliferação de armas, degradação ambiental, problemas psicológicos, sociais e econômicos são algumas das evidências do fracasso da fé na cosmovisão Iluminista.

Diante disso, quando nos perguntamos o que Deus está fazendo nos acontecimentos críticos de nosso tempo, devemos lembrar do que Ele disse ao profeta Isaías no capítulo 42, versículo 8: “Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, (…)” (A BÍBLIA DA MULHER, 2009, p. 1145)5. Proclamar e viver o evangelho numa cultura onde tudo é permitido, a tolerância é a principal virtude e o direito da pessoa está acima de tudo e de todos é um grande desafio. A tarefa cultural dos cristãos deve repousar nas seguintes verdades: Jesus Cristo é o Criador e Redentor de todas as coisas. Ele é o Senhor; a salvação bíblica é abrangente em seu alcance e restauradora em sua natureza.

Se cremos que Jesus Cristo é o Senhor, precisamos dar testemunho disso em todas as áreas da vida e cultura humana, abandonando o dualismo, o individualismo e fazendo pública a nossa fé. Criação, Queda e Redenção são partes do teodrama que devem ser contadas a tempo e fora de tempo. Esse é o nosso papel na teologia bíblica outrora a nós revelada. O nosso chamado cultural à luz do evangelho aponta para o verdadeiro Senhor da criação e da restauração. Justiça, paz, alegria, amor ao próximo e justiça do reino proporcionam o desenvolvimento da vida humana em sua plenitude. Foi isso que Deus confiou a nós para o bem do nosso próximo.


1 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. p. 5 e 6.

2 BARTHOLOMEW, Craig G., GOHEEN, Michael W. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Tradução Márcio Loureiro Redondo. São Paulo. Vida Nova, 2016. p. 37.

3 SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Tradução Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília-DF. Editora Monergismo, 2019. p. 179.

4 BARTHOLOMEW; GOHEEN, op. cit., p. 129.

5 A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO, op. cit., p. 1145.


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Referências bibliográficas

A BÍBLIA DA MULHER: LEITURA, DEVOCIONAL ESTUDO. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.

BARTHOLOMEW, Craig G., GOHEEN, Michael W. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Tradução Márcio Loureiro Redondo. São Paulo. Vida Nova, 2016. Número de páginas.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Tradução Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília-DF. Editora Monergismo, 2019.