Escrito por Janice Schneider Mesquita, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023
Paira sobre o imaginário popular a existência de um Deus iracundo e impaciente no Antigo Testamento e um Deus amoroso e misericordioso no Novo Testamento. Nessa perspectiva, a nova aliança anunciada por Jesus, no seu sangue, teria anulado o antigo pacto e inaugurado um novo tempo de amor. Diante disso, este artigo se propõe a contrapor essa visão, demonstrando que não se trata de uma nova revelação e nem de revogação da antiga aliança, mas de administração diferente da mesma aliança firmada unilateralmente por Deus no Éden.
A teologia bíblica nos auxilia nessa análise, ao ensinar a respeito da progressividade histórica do processo da revelação redentiva, por intermédio de vários atos sucessivos, onde o conhecimento acerca de Deus vai sendo ampliado e aprofundado, porém, sem rupturas. Israel estava sendo preparado para identificar a vinda do Messias prometido, enquanto a lei e os princípios do reino de Deus eram ensinados.
Nesse sentido, é importante realçar o cerne da revelação de Deus, no Antigo Testamento, na aliança firmada com o homem desde o Jardim do Éden. A promessa consistia na libertação e vitória do homem a ser providenciada por Deus (Gênesis 3:15)1 sobre a serpente/satanás. O povo de Deus no Antigo Testamento foi salvo por meio da fé nessa promessa. Embora ainda não soubessem exatamente quem ou quando viria, aguardavam com grande expectativa o Messias prometido para reconciliação do homem com Deus e julgamento dos ímpios (Gálatas 3:8)2.
Ao longo da história, Deus foi mostrando seu poder e santidade, marcando um novo tempo na revelação progressiva. O pacto de Deus com Israel e a sua condução para Canaã — a terra prometida — “tipificava o estado celestial aperfeiçoado do povo de Deus”3. Isso explica a necessidade de ordens ocasionais para expulsão dos povos vizinhos, seja para desocupação da terra que não lhes pertencia, seja para não servirem de má influência para o pequeno povo de Israel, pois eram nações violadoras de leis morais básicas — “violar tratados, entregar refugiados vulneráveis nas mãos dos inimigos, rasgar o ventre de grávidas para expandir fronteiras nacionais”4. E, mesmo diante do descumprimento reiterado da lei, Israel tomou posse da terra, ensinando, desde então, que a vitória não decorria do mérito pessoal, mas da manifestação da graça de Deus, instrução reiterada mais enfaticamente pelo apóstolo Paulo posteriormente.
Digno de menção é o comentário de Geerhardus Vos a respeito dessa progressividade da revelação quando se refere à nova aliança firmada com Israel, “não conforme a aliança que fiz com seus pais”, mencionada em Jeremias 31:31-34. O autor destaca duas características distintivas da nova ordem:
Uma é: Yahweh criará a obediência à Lei por meio de sua inscrição no coração. A outra é: haverá completo perdão de pecados. E o que mais intimamente se refere ao nosso presente propósito, a “novidade” é aplicada não meramente de uma maneira geral ao status religioso, mas é estendida mais especificamente à esfera de revelação e ao conhecimento de Deus: “Eles me conhecerão, desde o menor até o maior entre eles”.5
Obviamente, esta abordagem pressupõe a confiança nas Escrituras Sagradas como integralmente reveladas por Deus, e, portanto, inerrantes. Entendimento diverso certamente conduz à heresia, como o famoso Marcionismo do século II, que rejeitou o Antigo Testamento, com o argumento de que o Deus ali anunciado era muito diferente (vingativo e violento) do Deus amoroso revelado por intermédio de Cristo Jesus no Novo Testamento.
Nessa perspectiva, o próprio Senhor Jesus sugere, em Mateus 5:18, que até mesmo os menores traços da Lei serão cumpridos em sua Palavra e cita 24 diferentes livros do Antigo Testamento em suas falas, como, por exemplo, Mateus 15:46, em que ele cita Êxodo 20:12, 21:17 e 19:8, onde a lei anunciada por Moisés é mencionada, assim como passagens e versos do Antigo Testamento são mencionados no Novo Testamento por, pelo menos, 350 vezes7, confirmando a inspiração plenária da mensagem registrada nas Escrituras. Essa questão é enfaticamente confirmada por Paulo, quando afirma em II Timóteo 3:16 que “toda a Escritura é inspirada por Deus”.
Diferentemente da percepção mais comum dos leitores da Bíblia, no sentido de que não reconhecem o Deus de Moisés como o Deus de Jesus, o estilo dos profetas do Antigo Testamento se repete na pessoa do nosso Senhor Jesus, se atentarmos para as suas denúncias e ameaças de juízos, como afirma Paul Copan e Matthew Flannagan, em sua obra sugestivamente intitulada Deus realmente ordenou o genocídio?8, quando pronunciava
juízo temporal sobre Jerusalém; esse juízo viria por intermédio de Roma em 70 d.C. Ele também pressupõe que Sodoma, Tiro e Sidom haviam sido divina e violentamente julgadas, o que serve de trampolim para condenar os seus contemporâneos incrédulos em Betsaida, Corazim e Cafarnaum (Mt 11.21-24; cf. 10.15). Observe que essas advertências de juízo antecedem imediatamente a descrição que Jesus faz de si mesmo como manso e humilde de coração (11.28-30)! […] O que dizer sobre a acusação que Jesus faz dos que servirem de pedras de tropeço, os quais deveriam ter uma pedra de moinho pendurada no pescoço para que se afogassem (Mt 18.6)?
Os autores insistem no cuidado a ser tomado para não apelar para uma autoridade seletiva em relação a Jesus, a fim de reforçar a imagem de um Jesus não-violento, ignorando os demais textos do Novo Testamento onde há pronunciamento de juízo temporal e o juízo final mencionado em todo o livro de Apocalipse, onde Jesus é descrito como um cavaleiro vestido com um manto tinto de sangue9 (Apocalipse 19:11-13)10. O apóstolo Paulo adverte a igreja de Roma para considerar “a bondade e a severidade de Deus” (Romanos 11:22), afastando, assim, qualquer percepção equivocada que rejeita a unidade da Bíblia no concernente à revelação de um Deus misericordioso, justo e imutável, tanto no Antigo como no Novo Testamento.
Não obstante todos esses argumentos, a compreensão a respeito do amor e a justiça de Deus é um grande desafio para todo leitor da Bíblia. Entretanto, passagens difíceis e até mesmo perturbadoras devem nos incentivar a estudar mais as Escrituras para não sermos confundidos e cairmos na tentação de fazermos leituras seletivas a respeito de Deus e seu plano redentor contido na Bíblia, de Gênesis a Apocalipse.
Nesse sentido, emerge de um estudo mais acurado que o Antigo Testamento já afirmava escatologicamente o Novo Testamento, explicitando que não seria pelo cumprimento da lei que o Messias seria enviado, mas unicamente pela graça divina. Jesus não trouxe nenhuma doutrina nova a respeito de Deus, não existindo qualquer ruptura com o Antigo Testamento. O livro de Oseias é um bom exemplo disso, ao salientar o infalível amor de Deus e sua fidelidade pactual em termos de juízo e misericórdia, representados pelo casamento de Deus com Israel, a mesma analogia utilizada na nova aliança, entre Cristo e a Igreja, que será vestida de linho finíssimo para as Bodas do Cordeiro (Apocalipse 19:7-8).
Finalmente, podemos concluir que Deus cumpre tudo o que prometeu aos patriarcas na encarnação de Cristo. Aliás, a identificação e compreensão do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” somente é possível a partir do entendimento a respeito da queda de Adão e das promessas redentivas registradas no Antigo Testamento. O Logos de Deus atingiu seu clímax em Jesus Cristo — único mediador entre Deus e os homens (I Timóteo 2:5)11 — antes e depois da sua encarnação.
Jesus Cristo inicia seu ministério pregando arrependimento, “porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 4:17). Ele anuncia a todos que o Reino de Deus foi inaugurado e não precisamos mais viver de forma independente, sob o reinado deste mundo, mas como prometido a Israel (Êxodo 19:6)12 e cumprido na nova Aliança. Somos raça eleita, constituídos reino de sacerdotes, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, com a finalidade de proclamarmos as virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (I Pedro 2:9).
Como súditos do Reino de Deus, mas ainda peregrinos e forasteiros nesta terra, devemos adoração, obediência e louvor ao Rei da Glória, ao Alfa e Ômega. Purificados dos nossos pecados pelo sangue de Jesus, devemos submissão a Ele em todas as áreas das nossas vidas, à medida que expande em nós a consciência do seu reinado eterno desde sempre e para todo o sempre.
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1 “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (RA).
2 “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos” (RA).
3 VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica. Antigo e Novo Testamentos. Tradução Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 160.
4 COPAN, Paul. FLANNAGAN, Matthew. Deus realmente ordenou o Genocídio? Como compreender a justiça de Deus. Tradução Daniel Hubert Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2020, p. 68.
5 Ibidem, p. 362.
6 “Ele, porém, vos respondeu: Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe e: Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte” (RA).
7 Disponível em: http://solascriptura-tt.org/Bibliologia-InspiracApologetCriacionis/ListaCitacoesDoVTNoNT-SteveRudd .htm, acessado em 24/03/2023.
8 Ibidem, p. 54.
9 Ibidem, p. 55.
10 “Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça. Os seus olhos são chama de fogo; na sua cabeça, há muitos diademas; tem um nome escrito que ninguém conhece, senão ele mesmo. Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome se chama o Verbo de Deus” (RA).
11 “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (RA).
12 “Vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel” (RA).
Bibliografia
BÍBLIA SAGRADA. Bíblia de Estudo Herança Reformada. Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 2018. 2240 p.
COPAN, Paul. FLANNAGAN, Matthew. Deus realmente ordenou o Genocídio? Como compreender a justiça de Deus. Tradução Daniel Hubert Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2020. 400 p.
VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica. Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2019. 496 p.