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O roteiro que mais encenamos: a eucaristia e suas nuances

Escrito por Nilo Sattler, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


Introdução: a encenação da Ceia do Senhor

A Ceia do Senhor é um sacramento celebrado pela cristandade, ordenado por Cristo e desde a sua instituição carrega grande simbologia. O corpo e o sangue sendo representados pelo pão e pelo vinho e apontando para o sacrifício, para a remissão dos pecados e a celebração feita em comunidade, encapsulam em um momento a grande e bela história da redenção. É uma reencenação de todo o drama das Escrituras:

Em comparação com o batismo, que não tem correspondente secular, a ceia do Senhor parece positivamente cotidiana. Não há nada de teatral em jantar com amigos. No entanto, Jesus investiu a refeição de um profundo valor simbólico, fazendo-a remontar à Páscoa e à renovação da aliança (Êx 24.11) e apontado para uma refeição de aliança de alcance cósmico: as bodas do Cordeiro (Ap 19). O que de outra forma seria uma refeição corriqueira é transformado, em virtude da imaginação teodramática de Jesus, em um convincente ato simbólico, descrito por Karl Barth como a ‘ação das ações’ (VANHOOZER, 2005, p. 425).

Portanto, analisar esse sacramento com uma lupa teológica é um exercício de grande valia para viver os benefícios desse belo meio de graça legado à igreja.

1. Ceia do Senhor como conexão intertestamentária

Segundo Daniel Block, teólogo especializado em liturgia, a eucaristia entrelaça tradições litúrgicas veterotestamentárias, a saber: a Páscoa — largamente referenciada nas epístolas do Novo Testamento —, a cerimônia de ratificação da aliança e a oferta pelo pecado (BLOCK, 2018, p. 150). Esse entrelaçamento fortalece a unidade canônica e a riqueza litúrgica do culto cristão em abraçar a história da aliança e da redenção por meio dos atos de adoração. A ligação com a Páscoa aponta para a proteção do sangue, o livramento da morte e a libertação do povo. A cerimônia da ratificação da aliança é um costume semítico de ir ao Templo e comer na presença de Deus e a oferta pelo pecado é evidenciada na profecia de Isaías 53 e no texto de Mateus 26.28.  

2. Ceia do Senhor como ritual formativo

Em primeiro lugar, a definição antropológica homo liturgicus coloca o homem como um ser que adora e essa adoração tem caráter formativo sobre ele. James K. A. Smith escreve a sua série de livros sobre Liturgias Culturais baseado nessa ideia. Assim, as liturgias ensinam e várias lições podem ser tiradas da celebração do partir do pão. Smith propõe três desdobramentos onde a eucaristia aponta realidades do reino de Deus. A começar pelos elementos, o pão e o vinho não são o trigo e a uva, isto é, a consagração não está restringida à natureza tal como é, mas se estende à cultura, ao homem cultivando e desenvolvendo a criação. Há ressonância do mandado cultural, o cultivar e guardar ordenado ao primeiro homem reverbera aqui. Em segundo lugar, a economia do reino é evidenciada como anti-cultural. Uma vez que os elementos são distribuídos de graça e de maneira igual, as mazelas econômicas não têm lugar nessa mesa, nessa antecipação escatológica.

Por fim, para participar da mesa do Senhor, a comunidade precisa praticar o perdão e a reconciliação, assim como Cristo o faz com pecadores. Essa norma para a participação aponta que as relações humanas devem superar em muito a lógica mercadológica da competição para dar lugar à colaboração, à cooperação e à dependência (SMITH, 2018, p. 204). Por isso, a Ceia é sempre celebrada em comunidade, e esses elementos apontados servem como faróis em meio à escuridão dos tempos seculares. Portanto, é imperativo enxergar a prática sacramental e litúrgica, apontando para além de si e moldando um imaginário que luta contra as degenerações culturais que dominam os modos de viver da sociedade. 

3. A catarse produzida pela eucaristia

Aristóteles foi um dos primeiros teóricos a descrever a rica dramaturgia grega. Ele escreve sobre isso:

É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação [katharsis] dessas emoções (ARISTÓTELES apud KENNY, 2004, p. 106).

A catarse é o diálogo que ocorre entre drama e platéia, é o efeito produzido, o resultado da encenação,. Isso foi apropriado pelo teólogo Kevin Vanhoozer:

Aristóteles acreditava que a tragédia produz no espectador uma liberação de sentimentos que ele chamou de catarse. O tipo de efeito proporcionado pela catarse é uma questão discutida. Alguns entendem a catarse como metáfora médica de purgação ou limpeza; outros a interpretam como referência a uma purificação moral, e outros ainda, como um esclarecimento intelectual. A igreja como teatro de celebração visa, por meio de sua adoração, alcançar um tipo de catarse bem específico. Dado o tema do teodrama — não uma tragédia catastrófica, mas o evangelho, uma eucatástrofe — a catarse adequada é a eucaristia: ação de graças. A reposta adequada ao reconhecimento da graça de Deus (charis) é a gratidão (eucharistia). Se os seres humanos são essencialmente ‘animais eucarísticos’, então a adoração efetua uma catarse que nos permite entender nossa verdadeira natureza (VANHOOZER, 2008, p. 424). 

Diferente dos roteiros experimentados por Aristóteles, o enredo da Ceia do Senhor é fruto da ilocução da segunda pessoa da Trindade. Cristo instituiu essa refeição sacramental, uma encenação, resultante na verdadeira catarse: o retorno à imago Dei. O sacrifício conduz o eleito a retornar à sua natureza primeira, livre do pecado e em paz com Deus.

Considerações finais

Apreciar a grandiosidade e a beleza dos sacramentos é um deleite para os cristãos, sendo preciso zelar pela sua correta aplicação para preservar os tesouros entregues à igreja pelo próprio Deus. “Participar de modo adequado dos sacramentos é ser envolvido, literal e simbolicamente, no drama da redenção. A palavra e os sacramentos nos inserem no fluxo da realidade teodramática” (VANHOOZER, 2008, p. 426). Não há outra resposta a não ser glorificar a Cristo.


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Referências Bibliográficas

BLOCK, Daniel. Para a Glória de Deus. Tradução de Thiago Machado Silva. São Paulo: Cultura Cristã, 2018. 432 p.

KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental. Volume 1: filosofia antiga. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Edições Loyola, 2011. 395 p.

SMITH, James K. A. Desejando o reino: culto, cosmovisão e formação cultural. Tradução de A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2018. 240 p.

VANHOOZER, Kevin. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.