Ensaio escrito por Rejane Canary, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
O que é mais apropriado ao ser humano: crer em Deus ou rejeitá-lo? Este é um questionamento que levou a uma profunda reflexão filosófica e teológica ao longo dos séculos e continua relevante nos debates contemporâneos. Nesse contexto, o importante filósofo contemporâneo Alvin Plantinga, que contribuiu significativamente no campo da filosofia da religião, sugere que a resposta está em uma característica inerente ao homem: o sensus divinitatis, um sentido do divino que nos orienta para Deus de forma espontânea, mas que foi obscurecido pela Queda, isto é, pela entrada do pecado na humanidade. Sendo assim, este ensaio visa refletir brevemente sobre o conceito de sensus divinitatis e seu papel na defesa da razoabilidade da crença teísta cristã no pensamento de Alvin Plantinga.
Calvino e o sensus divinitatis
Segundo o reformador João Calvino, com base na teologia paulina a partir de Romanos 1, Deus gravou no coração do ser humano um certo senso da divindade, capacitando-o a reconhecê-lo de maneira espontânea. Trata-se de um conhecimento que conduz à crença em Deus, independente do contexto cultural ou do conhecimento prévio, ou seja, esta é uma realidade universal. Dessa forma, ninguém poderá alegar não estar ciente da sua existência. Sobre este tema, Calvino comenta em As Institutas:
Consideremos além de qualquer dúvida que existe na mente humana, e na verdade, por disposição natural, certo senso da divindade. Ora, para que ninguém se refugiasse no pretexto de ignorância, Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina realidade – na qual, renovando constantemente a lembrança, repetidamente instila novas gotas, uma a uma, reconhecendo que Deus existe e é seu criador; são por seu próprio testemunho condenados, uma vez que não somente não lhe renderam o devido culto, mas ainda não consagraram a vida à sua vontade (CALVINO, 2022).
Contudo, Calvino reconhece que o pecado obscureceu o sensus divinitatis no homem, levando-o a suprimir essa inclinação inata, assim como infectou o coração humano com a idolatria, exigindo a intervenção divina para sua restauração (CALVINO, 2022).
Plantinga adota a visão de Calvino
No livro Conhecimento e crença cristã, Alvin Plantinga discorre de maneira geral sobre o chamado modelo Aquino-Calvino e, posteriormente, o estende. O modelo Aquino-Calvino é uma combinação das perspectivas de Tomás de Aquino e de João Calvino, pois os dois importantes teólogos concordavam que existe uma espécie de conhecimento natural de Deus no homem. No entanto, Plantinga adota principalmente a perspectiva de Calvino, que ampliou a visão de Aquino, o qual enfatizava o papel da razão, que, por meio da observação da natureza, levaria ao reconhecimento da existência de Deus. Calvino, por sua vez, introduziu o conceito de sensus divinitatis, bem como os efeitos negativos da Queda sobre seu funcionamento e a necessidade de sua restauração no poder do Espírito Santo (DULCI, 2024).
Alvin Plantinga assemelha o sensus divinitatis às faculdades de percepção, memória e conhecimento a priori (PLANTINGA, 2018). Para ele, trata-se de um mecanismo que, em um ambiente apropriado, produz crenças verdadeiras a respeito de Deus. Sobre esse ponto, Plantinga escreve:
O sensus divinitatis é uma faculdade (poder, ou mecanismo) de produção de crença que, sob as condições certas, produz a crença não baseada em outras preposições. Nesse modelo, nossas faculdades cognitivas foram projetadas e criadas por Deus; portanto, o design é um plano no sentido literal e paradigmático. Trata-se de um plano sobre nossos modos de funcionamento cognitivo, e foi desenvolvido e instituído por um agente consciente e inteligente. O propósito do sensus divinitatis é permitir crenças verdadeiras a respeito de Deus; e quando funciona propriamente, ele as produz (…) (PLANTINGA, 2018).
Assim como Calvino, Alvin Plantinga reconhece que o sensus divinitatis foi profundamente impactado e corrompido pelo pecado, criando, desse modo, uma barreira cognitiva ─ ocasionando desconhecimento e separação relacional de Deus. Como Plantinga destaca neste trecho de sua obra:
Há também consequências cognitivas desastrosas. Nosso conhecimento originário de Deus e de sua magnífica beleza, glória e encanto foi comprometido; a imagem ampla assim foi danificada, distorcida. Em particular, o sensus divinitatis foi danificado e deformado; por conta de nossos pecados, não mais conhecemos a Deus de modo natural e não problemático que conhecemos uns aos outros e o mundo ao nosso redor. Além disso, o pecado introduz em nós uma resistência à manifestação do sensus divinitatis, emudecido pelo primeiro fator; nós não queremos prestar atenção às suas manifestações (PLANTINGA, 2018).
Embora o sensus divinitatis tenha sido severamente danificado, ele não foi destruído totalmente. Segundo Plantinga, ele continua funcionando, mesmo que de forma limitada e confusa. Nesse sentido, por meio da obra redentora de Cristo e pela ação sobrenatural do Espírito Santo no coração humano, a capacidade cognitiva para conhecer Deus é parcialmente restaurada, voltando a produzir crenças verdadeiras sobre Ele (DULCI, 2024).
Em virtude da obra do Espírito Santo no coração de quem a fé é concedida, os danos do pecado (incluindo-se o aspecto cognitivo) são reparados, de modo gradual ou repentino, em pequena ou grande extensão. Além disso, por causa da atividade do Espírito Santo, o cristão crê que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens”, 2 Cor 5:19 (PLANTINGA, 2018).
Sensus divinitatis e a razoabilidade da fé cristã
Alvin Plantinga, em sua expertise, dialoga com tradições teológicas históricas relevantes ─ Aquino e Calvino ─, assim como com as discussões filosóficas a respeito da razoabilidade da fé cristã. O modelo Aquino/Calvino estendido surge como uma resposta robusta contra a tese da irracionalidade da fé teísta cristã, alegando que a fé cristã não é justificada por argumentos formais e evidências empíricas. Ademais, o sensus divinitatis atua como uma capacidade inata que permite ao homem reconhecer a existência de Deus, o qual, em virtude da atividade sobrenatural do Espírito Santo, volta a funcionar adequadamente, possibilitando a formação de crenças confiáveis sobre Deus. Logo, a legitimidade da crença teísta cristã é justificada.
De acordo com o modelo Aquino e Calvino, a crença teísta (a crença em Deus) tem realmente garantia suficiente para o conhecimento. A característica central desse modelo é a estipulação de que Deus criou os seres humanos com produção de crenças ou uma fonte de crenças, o sensus divinitatis; essa fonte funciona sob várias condições para produzir crenças a respeito de Deus, incluindo-se, obviamente, as crenças que de imediato implicam na sua existência. A crença produzida desse modo, como eu disse, pode satisfazer as condições da garantia com facilidade (PLANTINGA, 2018).
Conclusão
Portanto, o sensus divinitatis é uma faculdade essencial imprimida no coração de todos os seres humanos, projetada pelo Deus Criador para gerar crenças genuínas a seu respeito. Tal mecanismo, ainda que danificado pelo pecado, continua apontando, mesmo que de maneira limitada, para Deus. A razoabilidade da fé cristã está, assim, fundamentada em que Deus nos criou com uma capacidade cognitiva, que em ambiente correto e restaurado pelo Espírito Santo nos permite conhecê-lo de forma legitima e garantida. Assim, crer em Deus é a resposta mais apropriada, pois fomos criados pelo próprio Deus com essa finalidade. Por outro lado, a negação da realidade divina é uma incoerência e uma evidência dos efeitos desastrosos da Queda na nossa disposição natural para Deus.
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CALVINO, João. As institutas: edição clássica, volume único. Tradução: Waldyr Carvalho Luz. Ed. 3. Cultura Cristã, São Paulo, 2022. n.p.
DULCI, Pedro. O modelo Aquino-Calvino de crença cristã avalizada. Invisible College. GO. 2024. duração: 30:07. Disponível em : https://hubinvisiblecollege.com.br/course/tutoria-filosofica-2024
PLANTINGA, Alvin. Conhecimento e crença cristã. Tradução: Sérgio Ricardo Neves de Miranda. 1 Edição eletrônica. Academia Monergista, 2018. Brasília, DF.