fbpx

O significado além da tecnologia

Escrito por João L. Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

Entre os gregos há um mito bastante conhecido, o mito do rei Midas, da Frígia. Conta-se que o rei recebeu dos deuses a dádiva de ter um pedido seu atendido, qualquer que fosse o seu desejo. Midas, movido pela sua ganância, pede que tudo aquilo que ele tocasse fosse transformado em ouro. Seu pedido é atendido, e prontamente tem início o seu desespero. Sua vida torna-se insuportável, visto que qualquer alimento, qualquer objeto, sua própria filha, absolutamente tudo, é transformado em ouro. Assim, de acordo com o desejo do rei, tudo é elevado ao valor do ouro, e este, já não tem mais valor algum.

O mito ilustra corrupção. Quando conferimos um significado há algo que originalmente teria um significado diferente, que apontava para outra direção, que desvelava outros sentidos. Fazendo isso, corrompemos a realidade, e a nós mesmos, como parte desse conjunto de significados.

Quando falamos sobre tecnologia entramos num terreno pavimentado de significados, embora isso não seja sempre tão evidente. Levantar essas questões acerca da tecnologia é importante e urgente, primeiro porque trata-se de algo em contínuo andamento, e, além disso, temos consciência de que uma atitude ingênua diante de algo tão dominante pode tornar-se no toque de ouro, e, ao contrário do que prometeu, ser causa de ruína e desgraça.

1. SIGNIFICADOS NÃO TÃO EVIDENTES

Ao falarmos de tecnologia as primeiras imagens que nos vêm à mente são os aparelhos – gadgets – de última geração, sistemas de automação em grandes fábricas, satélites, nanotecnologia e outras criações humanas que surpreendem pela criatividade e inovação, beirando o impossível. Mas, há algo mais do que isso. Ao falar sobre tecnologia, precisamos pensar que um artefato tecnológico constitui uma criação humana para resolver problemas e auxiliar o ser humano em suas demandas públicas e particulares. Não estamos cercados de tecnologia porque possuímos um celular, mas desde que aprendemos a viver com a luz elétrica, desde que a troca de mercadorias intensificou-se pelo comércio marítimo, desde que aprendemos a usar pedras para acender o fogo. Nesse sentido, a tecnologia e a cultura caminham de mãos dadas. Tudo o que constitui a cultura humana atravessa aquilo que fomos capazes de fabricar com nossas próprias mãos.

É inegável que tudo isso carrega um nível profundo de significado. Não apenas moldamos o meio em que vivemos, mas moldamos a nós mesmos quando manipulamos a realidade dessa maneira. Isso se aplica tanto às tecnologias antigas quanto às tecnologias modernas. O filósofo holandês Egbert Schuurman, dedicado à área da tecnologia e da ciência, ao falar sobre a biotecnologia em sua obra Fé, Esperança e Tecnologia, afirma algo que toca toda a ação tecnológica. Diz ele: “Lidamos aqui com a manipulação de processos da vida, de forma em que esses processos produzam resultados melhores do que os existentes, ou que resultem em processos vitais totalmente novos e promissores” (SCHUURMAN, 2016: 75).

A questão do significado na tecnologia é abordada também na obra Filosofia da Tecnologia, escrita a quatro mãos pelos filósofos holandeses M. Verkerk, J. Hoogland, J. van der Stoep e M. J. de Vries. Também para esses, a “tecnologia pode ser vista como uma busca por significado” (VERKERK; et al, 2018: 46).

Seguindo o raciocínio, a proposta de reflexão gira em torno do significado que surge desde a motivação até a concepção da atividade humana. Nada disso é isento, ao contrário, é carregado de intencionalidade, e quando agimos intencionalmente “abrimos” o significado, em outras palavras, desvelamos as motivações.

“Desse modo, fica subentendido que o conceito de atividade forma a conexão entre os conceitos de ‘cultura’, ‘história’ e ‘tecnologia’. E o aspecto particular do conceito de ‘atividade’ é que alguém que age tem uma meta ou intenção”. (VERKERK; et al, 2018: 56).

Portanto, quando falamos sobre artefatos tecnológicos, não estamos falando de algo descolado da realidade de significado, mas de um dos aspectos e possibilidades da realidade, intencionalmente preparada pela ação e atividade humanas. É um erro pensarmos em objetos tecnológicos como desprovidos de significado. Inclusive, acostumamo-nos a usar o termo “descoberta” científica com um ar de impessoalidade que nos faz crer que a ciência é vazia de intenções, cabendo a nós, posteriormente à “descoberta”, nos submetermos a ela. Contudo, haverá sempre uma intencionalidade e pensar sobre isso é responsabilidade de toda a geração que vive e produz cultura.

2. COM NOSSAS PRÓPRIAS MÃOS

Dissemos acima algo sobre o que fomos capazes de fabricar com nossas próprias mãos, e há um perigo aqui que precisa ser abordado. Nossa cultura desenvolveu-se historicamente caminhando para o secularismo materialista. Pensamos e agimos, em geral, a partir da ideia do Homem como centro da existência, livre para utilizar-se da natureza para seus propósitos. Sem um Deus a quem prestar contas, somos guiados por nossas expectativas de sucesso e desejo de bem estar.

Nessa perspectiva criou-se uma dicotomia entre fé e ciência. Em todos os níveis, seja numa conversa informal ou num artigo acadêmico, sugere-se que há um embate entre aquilo que a fé é capaz de “afirmar” e o que a ciência se diz capaz de “provar”. Nesse pêndulo, aceitando tais pressuposições, é como colocar o dogma em oposição à evidência. É óbvio que a mentalidade secular, sendo forçada a optar por um dos lados, tenderá àquilo que a evidência demonstrou, aparentemente, com bastante propriedade.

Porém, essa dicotomia falha em seus princípios. Quando falamos da relação fé e ciência, em especial a fé cristã, vejamos o que Schuurman diz:

“O que se questiona não é a relação entre a fé e a ciência, mas a relação entre a fé cristã – na qual, por meio de uma cosmovisão e vida cristã, não há lugar para uma determinada visão de ciência – e a fé na ciência. A fé e o pensamento são inter-relacionados. A questão é: que fé direciona ou guia o pensamento das pessoas?” (SCHUURMAN, 2016: 26).

A ciência, que produz a tecnologia, constitui um dos aspectos da realidade e das possibilidades da existência. Como uma atividade especializada ela não corresponde a toda a experiência humana, mas abstrai parte dela. Dar autonomia à ciência de modo a torná-la senhora sobre toda a realidade nos fará reféns de nós mesmos, à maneira do rei Midas que tornou-se refém dos seus próprios desejos.

Toda atividade humana, incluindo a ciência e a tecnologia, tem sua origem no coração humano. Há uma longa tradição filosófica que reconhece essa origem, desde Agostinho, Calvino, Pascal, Kierkegaard e Dooyeweerd, que, guardadas suas diferenças – que são muitas – concordarão que a razão especializada não possui autonomia em relação a orientação do coração.

Portanto, quando falamos sobre uma atividade “com nossas próprias mãos” não estamos pensando que nossas mãos trabalham autonomamente, isentas de direção e significado. A intenção do coração é anterior a tudo isso, o que nos coloca diante de uma responsabilidade enorme por tudo aquilo que produzimos, especialmente os artefatos tecnológicos. Esses, não são meros objetos para serem usados, mas, a cada instante, tomam corpo na realidade. Nossas motivações são expressas neles e por eles, e elas podem, ou não, louvar a Deus.

3. POR QUE PRECISAMOS DA TECNOLOGIA?

Temos duas respostas complementares para a questão, que julgo importante.

Primeiramente, uma resposta teológica. Fomos criados para sermos tecnológicos. A fala de Deus narrada em Gênesis 1: 28 é geralmente referida como o mandato cultural. Ali Deus ordenou que o ser humano deveria, além de ser fecundo e encher a terra, também dominá-la. A ideia de dominação aqui implica cuidado, e o cuidado implica buscarmos formas melhores para este cuidado, o que nos remeterá às tecnologias.

Em segundo lugar, buscamos pelo significado da realidade, ao mesmo tempo que vivemos num mundo que não corresponde às expectativas mais elevadas de significado. Quando algo não desvela significado, não reconhecemos objetivo naquilo. Quando uma calamidade acontece, nos perguntamos a razão daquilo, geralmente, sem uma resposta satisfatória, porque aquilo não faz sentido. Claro que há um fundo teológico nisso, pois estamos falando da presença do mal e da desordem do mundo, frutos do pecado e do afastamento de Deus. Mas a questão que nos interessa aqui é que o uso da tecnologia pode atender às demandas criadas por essa desordem. Todo cientista deverá concordar que a tecnologia visa tornar a vida mais atraente, mais confortável e mais segura. Cuidar do jardim continua sendo uma prerrogativa da Criação, ainda que as dificuldades dessa tarefa tenham se multiplicado.

4. FÉ SUSTENTA A AÇÃO CRIATIVA

Nesse emaranhado que está em constante mudança e desenvolvimento, refletir sobre os fundamentos não é irrelevante, pelo contrário, mostra nossa preocupação com aquilo que é bom, verdadeiro e belo. E nessa perspectiva da realidade olhamos para as possibilidades técnico-científicas a partir da ideia bíblica de Criação, Queda e Redenção. Vejamos algo precioso dito por Egbert Schuurman:

“Para o cristão, a realidade foi criada por Deus e é sustentada por ele. Podemos dizer que as pessoas deveriam afirmar que a realidade é um dom de Deus, e que por ser de Deus, feita por Deus e para Deus, ela é repleta de significado. Isto requer virtudes como respeito, admiração, gratidão e prudência para se lidar com a realidade. As pessoas, afinal, não são donas, mas tão somente estão autorizadas a cuidar dela.” (SCHUURMAN, 2016: 76).

Reconhecer a realidade toda como Criação nos dá a certeza de que estamos diante de uma gama de possibilidades inimagináveis para a mente humana. Sabemos que em toda a realidade há um significado próprio, que é manchado pelo pecado quando tentarmos significá-la por nós mesmos. Contudo, há um horizonte de redenção que permite a todos nós trabalharmos hoje em Aliança com o Criador e Sustentador da vida.

Sabemos que a realidade é desafiadora, e que nossa tendência natural é nos afastarmos de Deus, buscando sentidos e significados em objetos criados, mas a proposta cristã orienta nosso coração para a fonte de todo significado, tornando-nos capazes de produzir tecnologia para a glória de Deus.

Não podemos discutir ética nas ciências, a existência ou não de limites ou quais resultados podemos esperar, se não definirmos em quais bases se sustenta o significado da tecnologia. Nesse ponto a fé cristã oferece um terreno sólido, onde podemos seguir confiantes de que a tecnologia servirá ao ser humano, porque serve primeiro a Deus. Já a fé na ciência e na tecnologia servirá apenas a um deus desconhecido, do qual só podemos esperar frustração e engano.

CONCLUSÃO

A possibilidade da tecnologia, enquanto parte da realidade, é um dom de Deus, que exercido sob orientação do significado de Deus, glorifica a Deus e satisfaz os Homens. Porém, se absolutizada e vista como significado em si mesma, acaba corrompida, bem como seus resultados. 

A tecnologia, como o ouro puro, possui seu valor de significado dado por Deus. Mas se tudo for reduzido ao tecnicismo, como se ela tivesse a capacidade de redimir toda a realidade, nos veremos como o rei Midas, sufocados por nossos próprios desejos.

O significado está ligado à redenção da realidade. Quando tudo estiver pleno de significado, a obra de Cristo estará completa, não haverá mais dor ou sofrimento, e isso, a tecnologia é incapaz de proporcionar, pois carece da mesma redenção.


Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!

No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SCHUURMAN, Egbert. Fé, Esperança e Tecnologia: Ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Tradução de Thaís Semionato. Viçosa/MG: Ultimato, 2016.

VERKERK, Maarten Johannes; HOOGLAND, Jan; STOEP, JAN van der; VRIES, Marc J. de. Filosofia da Tecnologia: uma introdução. Tradução de Rodolfo Amorin Carlos de Souza. Viçosa/MG: Ultimato, 2018.