Ensaio escrito por Edson de Sousa Silva, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
O ser humano é inquieto na busca pelo saber. O desejo de conhecer a nós mesmos, a razão de nossa existência e o fim último de nossa vida estão entranhadas em nosso ser. Entretanto, onde estão as respostas a essas perguntas? A busca do significado das questões últimas é onde nasce a sabedoria grega. Contudo, essa busca se deu na própria criação e na criatura, em diferentes períodos da história. Influenciada pela filosofia grega e contemporânea, a sociedade secular abandonou suas raízes judaico-cristãs como repositório da sabedoria e das respostas às questões últimas.
Diante disso, o propósito deste ensaio é fazer, por um lado, um diálogo entre o mito da caverna de Platão, que afirma que a busca da verdade está no próprio homem, a partir de uma autorreflexão — isto é, a libertação para a luz — e o fim último do conhecimento pelo conhecimento. Por outro lado, a sabedoria bíblica nos mostra que a verdade (ou sabedoria) está na autorrevelação de Deus. Essa verdade encontra seu clímax pessoa de Jesus Cristo e tem como alvo conhecer o Deus verdadeiro e, por conseguinte, amar a Deus e ao próximo.
O mito da caverna e a busca pela verdade a partir de si mesmo
A sabedoria grega, de modo geral, entende que o conhecimento da verdade é alcançado a partir do homem. Este é a fonte e o destino último do conhecimento da realidade. Ainda que busque inspiração nos deuses, na experieência, nos fenômenos e na natureza, tudo passa pelo filtro da razão humana. Sobre isso, Dario Antiseri e Giovanni Reale explicam que
a filosofia visa ser a explicação puramente racional daquela totalidade que tem como objeto. Em filosofia, aquilo que vale é o argumento de razão, a motivação lógica, o logos. Para a filosofia, não basta constatar, reconhecer como certos dados de fato, reunir experiências: a filosofia deve ir além do fato, além as experiências, para encontrar a causa ou as causas somente com a razão (ANTISERI; REALE, 2017, p. 20).
É a partir desse conceito que podemos entender a razão de Platão em sua teoria das ideias e construir um caminho seguro para encontrar a verdade, a essência de toda realidade, o verdadeiro conhecimento de todas as coisas. Os seus predecessores buscavam explicar os fenômenos a partir dos próprios fenômenos, isto é, “tentaram explicar os fenômenos usando as causas de natureza física e mecânica (água, ar, terra, fogo, calor, frio, condensação, rarefação etc.)” (ANTISERI; REALE, 2017, p. 130).
Diferentemente dos seus predecessores, Platão construiu uma teoria para explicar os “fenômenos”1 sem nenhuma “anomalia”2, imaginando dois “mundos” diferentes: o mundo das ideias, a esfera da realidade, do suprassensível, uma dimensão suprafísica do ser, e o mundo dos objetos materiais, a esfera da mera opinião. “Para Platão, o mundo das ideias não é apenas real, mas também ‘mais real’ do que o mundo dos objetos físicos” (SPROUL, 2002, p. 34-36). Esse conhecimento é alcançado pelo uso da razão. É por essa razão que, em seu famoso mito da caverna, Platão ilustra isso. Jonas Madureira explica que, no livro VII da República, “Platão descreve Sócrates dizendo ao jovem Glauco que, para as pessoas alcançarem o entendimento, elas precisam ser primeiramente libertas” (MADUREIRA, 2017, p. 59). Portanto, o filósofo explica como essa liberdade é alcançada utilizando o famoso mito da caverna.
Através dessa ilustração, Platão conta a história de que as pessoas estão presas desde o seu nascimento. Elas estão acorrentadas e imobilizadas, forçadas a permanecerem sempre no mesmo lugar, de costas para um muro, olhando apenas para uma parede no fundo. Elas não sabem que existe um mundo real lá fora. Por trás do muro existem outras pessoas, carregando objetos feitos de madeira, pedras e outros materiais. Há um foco de luz que projeta a sombra dessas pessoas, por meio da qual os prisioneiros conseguem ver. Eles ouvem as vozes daquelas pessoas e acham que as vozes vêm das sombras. Essa é a única percepção da realidade que eles têm. Em razão disso, eles não podem saber que as sombras são meras projeções da realidade.
Então, Sócrates pergunta a Glauco: “E se um prisioneiro sair da caverna? O que faria esse prisioneiro sem algemas?” Ele exploraria a caverna e tudo que está fora dela e além dos muros. O andar lhe seria doloroso. Seus olhos seriam ofuscados pelo fogo e pelo brilho do sol. Contudo, logo após seus olhos se acostumarem, ele seria capaz de enxergar a realidade. Conhecedor desse novo mundo, voltaria e contaria aos prisioneiros o que viu, para libertá-los.
Explicando o simbolismo desse mito, Dario Antiseri e Giovanni Reale nos esclarecem que
as sombras da caverna são meras aparências sensíveis das coisas, as estátuas as coisas sensíveis; a mureta é o divisor de águas que divide as coisas sensíveis e suprassensíveis; do outro lado do muro, as coisas verdadeiras simbolizam o verdadeiro ser e as Ideias e o sol simbolizam a Ideia do Bem (ANTISERI; REALE, 2017, p. 169).
Em resumo, o mito ensina que “a vida na dimensão dos sentidos e do sensível é a vida na caverna, assim como a vida na dimensão do espírito é vida na pura luz” (ANTISERI; REALE, 2017, p. 169). Logo, “a tarefa da educação3 é conduzir as pessoas da escuridão para a luz, da caverna com suas sombras para o sol do meio-dia” (SPROUL, 2002, p. 37).
O sábio e o tolo: uma distinção necessária entre a filosofia grega e a sabedoria bíblica
O que é a sabedoria? O que é o tolo? Para Platão,
a sabedoria era de certo modo apenas intelectual e pertencente ao mundo ideal e não no real, não era uma prática com o mundo e com as pessoas como para seu mestre, mas sim uma aspiração da Anima imortal a ser conseguida e apenas pelo filósofo, é no mundo das ideias, onde tudo era eternamente Bom, Belo e Verdadeiro (COSTA, 2016, p. 2).
Nota-se que, para Platão, a alma quer se libertar do corpo corruptível para viver em estado de contemplação ideal; logo, a sabedoria “não era uma prática, mas algo a ser contemplado” (COSTA, 2016, p. 2). Portanto, pode-se afirmar que o tolo, para o filósofo, seria o ignorante, aquele que não se esforça por buscar a essência das coisas, isto é, o verdadeiro conhecimento. O tolo precisa do “sábio” – que seria o filósofo – para libertá-lo de sua cegueira. Entretanto, qual seria a finalidade (o telos) última dessa busca pela verdade? Segundo Dario Antiseri e Giovanni Reale: “O escopo ou o fim da filosofia está no puro desejo de conhecer e de contemplar a verdade. Em síntese, a filosofia grega é desinteressado amor à verdade” (ANTISERI e REALE, 2017, p. 20).
Contudo, a sabedoria hebraica e, posteriormente, o cristianismo reconhece que não está no homem a capacidade de se libertar. O ser humano à parte de Deus se torna um tolo por não enxergar a insuficiência da razão e a incapacidade de libertar a si mesmo (Rm 1.18ss). Nesse sentido, o tolo seria aquele que ignora a revelação de Deus (Pv 1.7,22,32; 3.35; 10.8,18,21).
O livro de Provérbios é útil para definir o que é a sabedoria para o israelita e como ela se distância da sabedoria grega. O hokmah (sabedoria) em Provérbios tem uma perspectiva mais integral e ordenada segundo a revelação de Yahweh. O hokmah é a capacidade de desenvolver relações interpessoais e criacionais de acordo com a revelação divina. Como bem definiu Igor Miguel, a sabedoria é “um tipo de capacidade existencial que permite ao sujeito operar e interagir no e com criação e com o próximo de acordo com a ordem sábia do Criador, de modo que viva bem e de forma plena perante Deus” (MIGUEL, 2021, p. 121, grifo do autor).
Diante disso, a epistemologia sapiencial não parte da subjetividade do mundo. Ela é relacional e criacional (MIGUEL, 2021, p. 122). Deus é o referencial e a fonte do conhecimento. Além disso, ela é teorreferente:. “Saber, portanto, no seu sentido integral, é um relacionamento que depende da revelação e que é inseparável do caráter” (KIDNER, 1980, p. 57). A sabedoria, isto é, o conhecimento da verdade, vem de fora, vem de Deus:
Seu ponto de partida é a revelação – especifica (palavras) e prática (mandamentos); seu método não é o da especulação livre, mas o de entesourar e explorar ensinamentos recebidos, a fim de penetrar até seus princípios (…) e seu alvo, longe de ser acadêmico, é espiritual: o temor do Senhor (…) o conhecimento de Deus. (KIDNER, 1980, p. 59, grifos do autor).
Dito de outro modo, a busca pela verdade em Provérbios não está no homem e na sua capacidade intelectual, mas em Deus, o criador e redentor! Não é mera especulação, mas vida real e verdadeira. Não é a libertação da alma para “elevar-se ao divino”, mas, nas palavras de Jonas Madureira, “o tolo é liberto de sua maior prisão: a autorreferência” (MADUREIRA, 2017, p. 62).
Jesus Cristo como a sabedoria encarnada de Deus e o telos final da busca pela verdade
Jesus é associado à figura da Sabedoria. Paulo, usando a linguagem de Provérbios 8, escreve que Jesus é o primogênito de toda a criação (Cl 1.15). Semelhantemente, Apocalipse 3.14, que se refere a Jesus como “o princípio da criação de Deus”, evoca a imagem do papel da Sabedoria na criação. A questão não diz respeito à identificação de Jesus com a Sabedoria, de forma a tornar Provérbios 8 um tipo de profecia de Cristo; ao contrário, Provérbios 8 é uma representação poética do atributo da sabedoria de Deus sem qualquer intensão estritamente profética. Dizer que Provérbios 8 é profético é um erro teológico, uma vez que a sabedoria é descrita como criada (v. 22). A associação entre Jesus e a Sabedoria é apropriada porque Jesus encarna a sabedoria de Deus (DILLARD; LONGMAN, 1997, p. 235-236).
Nesse sentido, o cristão compreende que a busca da sabedoria não é apenas racional, mas histórica e comunitária. Histórica porque a autorrevelação de Deus acontece numa compreensão histórico-redentiva. Ela não é desconectada da história, tampouco dos atos de Deus em favor de seu povo. A sabedoria de Deus perpassa a história até chegar em Jesus Cristo. E ela é comunitária porque é encarnada no interior da comunidade. A sabedoria hebraica foi produzida por um longo conhecimento acumulado na história. O saber epistêmico se dava em um contexto comunitário. Os sábios eram os mediadores desse conhecimento – não à semelhança dos filósofos que viam a si mesmos como a fonte da sabedoria, mas tendo o temor do Senhor como referencial desse conhecimento, como ponto de partida epistêmico (MIGUEL, 2021, p. 139-140). Então, Jesus é o clímax dessa revelação histórico-redentiva. Jesus é aquele onde a Verdade, o Bem e o Belo encontram sua perfeição. Ele é a sabedoria de Deus (1ª Co 1.18). Nele, como afirmou Paulo, “estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2.3 NVI).
Conclusão
Não falta conhecimento no mundo, o que falta é o conhecimento do Senhor. O processo epistemológico que nos leva a conhecer a verdade está no Criador e na revelação de si mesmo ao ser humano, por meio de Jesus e das Escrituras Sagradas. Numa perspectiva cristã, a busca da verdade não tem seu telos não conhecimento em si, mas em conhecer a Deus (Jo 17.3) e amá-lo, bem como ao próximo (Mt 22.37-39). Logo, toda racionalidade sem Deus é irracional.
1“’Fenômenos’ refere-se às coisas evidentes ou manifestas aos nossos sentidos” (SPROUL, 2002, p. 34)
2“Anomalia é um dado que não se encaixa no padrão ou não pode ser explicado pelo modelo ou paradigma do momento: o paradigma é obrigado a mudar quando as anomalias se tornam muito fortes ou numerosas” (SPROUL, 2002, p. 33).
3O termo educare, literalmente, significa “conduzir para fora”.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
No Loop, nossa equipe oferece suporte pedagógico e trilhas de estudo personalizadas para seus interesses, permitindo que você aprofunde seu conhecimento teológico e lide de forma segura com as situações do dia a dia.
Referências bibliográficas
ANTISERI, Dario e REALE, Giovanni. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Vol. I. Tradução de José Bortolini. São Paulo: Editora Paulus, 2017, 704 p.
COSTA, Otávio Barduzzi Rodrigues da. A sabedoria do povo hebreu em oposição a sophia Grega. Uma analise do impacto da cultura Helênica sobre a cultura do povo hebreu. Revista Mundo Antigo – Ano V, V. 5, N° 11 – Dezembro – 2016. Disponível em: https://ria.ufrn.br/jspui/handle/123456789/2089. Acesso em 2 de março de 2023.
DILLARD, Raymond B, LONGMAN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2006, 473 p.
KIDNER, Derek. Provérbios: introdução e comentário. 1 ed. São Paulo: Vida Nova, 1980. 192 p.
LÍNDEZ, José Vilchez. Sabedoria e sábios em Israel. 3 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. 269 p.
MADUREIRA, Jonas. Inteligência humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017. 336 p.
MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil. 2021. 208 p.
SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução: Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002. 208 p.