Artigo de opinião escrito por Thays J. Pessaroli Boiko, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024
A palavra trabalho vem do latim tripalium, termo utilizado para designar instrumento de tortura (ALBORNOZ, 1994, p.10) e, ao longo da história, tem assumido diferentes significados, dimensões e conceitos. Do ponto de vista da teologia cristã, observa-se que o trabalho apresenta perspectivas distintas e ambíguas, fortemente influenciadas pelas abordagens e movimentos que permearam a história. Às vezes, o trabalho é associado a um significado de caráter negativo, em que o trabalho é castigo divino, punição, fardo, incômodo, carga ou algo penoso, pela condenação de Adão. Em outras, é associado a algo gratificante, espaço de criação, realização e crescimento pessoal (LIEDKE,1997, p.272). Observa-se que, como afirma Pennings (2022, p. 44), estamos inundados em distorções seculares, que afetam a teologia cristã sobre o trabalho. Precisamos nos questionar: O que a Bíblia tem a nos dizer sobre isso? Qual o verdadeiro conceito bíblico do trabalho? Quais as dimensões bíblicas do trabalho? Como a narrativa bíblica apresenta o significado e conceito do trabalho? Assim, o objetivo deste artigo é apresentar uma visão bíblica do trabalho, a partir da narrativa proposta por Goheen e Bartholomew (2016, p. 52): Criação, Queda e Redenção.
O trabalho e a Criação
O livro do Gênesis inicia com o relato da Criação do mundo e do cosmo, mostrando que o trabalho encontra sua fonte no próprio Deus, que trabalhou para criar o mundo (BÍBLIA SAGRADA. Bíblia de Estudos NVI, 2003). Keller & Alsdorf (2018) destacam que em Gênesis 1, Deus não só trabalha, como também se alegra no trabalho. Em Gênesis 1:26-28, às vezes descrito como o mandato cultural, Deus nos cria à sua própria imagem e semelhança e nos ordena a exercer mordomia real sobre a sua criação. Aqui “… recebemos nosso chamado humano com a palavra abençoadora de Deus: dominem e subjuguem a criação.” (BARTHOLOMEW e GOHEEN, 2016, p. 77). Bavinck (2021) afirma que este chamado deve ser entendido em um duplo sentido: cultivar e abrir; vigiar, guardar e proteger. Este chamado “inclui desenvolver o potencial não revelado da criação divina” (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2017, p. 56).
Segundo Bartholomew & Goheen (2016 e 2017), o mandato cultural tem relevância contínua, pois Deus chama a humanidade para desenvolver o potencial não revelado na criação divina “…para a glória dele, a criação dele, ao longo da história.” (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2016, p. 42), “… a fim de que toda ela possa celebrar a glória de Deus.” (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2017, p. 45).
É importante destacar que, o mandato cultural, acontece pré-queda, como uma ordem que o ser humano, criado à sua imagem e semelhança de Deus, recebe para desenvolver a cultura (REICHOW, 2019, p. 133), sendo cultura “a designação que usamos para atividades organizadas na sociedade: como compor música, construir casas ou fundar estruturas econômicas ou políticas.” (BARTHOLOMEW e GOHEEN, 2017, p. 56).
Em Gênesis 2, temos o relato detalhado da origem da humanidade. Segundo Keller & Alsdorf (2018), Gênesis 2 mostra que Deus trabalha para criar, mas também para prover, ou seja para cuidar da sua criação, tomando o homem e o colocando no jardim do Éden, para cuidar e cultivá-lo (GÊNESIS 2:15). Conforme Bartholomew e Goheen (2016, p. 78), a palavra cultivar pode ser substituída por trabalho. Keller & Alsdorf (2018) enfatizam que todos os tipos de trabalho e desenvolvimento cultural são aqui simbolizados e afirmam que “… embora tudo o que Deus fez fosse bom, ainda havia muito a ser desenvolvido. Deus deixou a criação com grande potencial inexplorado para o cultivo que as pessoas teriam que desenvolver por meio de seu trabalho.” (KELLER & ALSDORF, 2018, p. 38).
O Trabalho e a Queda
Em Gênesis 3, temos o relato da Queda, com o pecado entrando no mundo, afetando e contaminando “todos os aspectos da vida: espiritual, físico, social, cultural, psicológico, temporário e eterno… alma e corpo, vida pública e privada, oração e trabalho…” (KELLER & ALSDORF, 2018, p. 38). Assim, a terra e o trabalho são amaldiçoados pela Queda. Isso “não contribui apenas para o trabalho penoso e tedioso; também resultou em vários vícios e tentações particulares ao local de trabalho.” (PENNINGS, 2022, p. 32). Após a Queda, o mundo, embora desorganizado pelo pecado, continuou a ser sustentado por Deus (KELLER & ALSDORF, 2018, p. 38). Nós não deixamos de ser humanos, permanecemos a imagem e semelhança de Deus (Gênesis 5.1; 9:6), mas a maneira como somos humanos foi afetada (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2017) e consequentemente o nosso trabalho, pois “Mesmo que a nossa semelhança divina não tenha sido destruída, ela foi seriamente distorcida” (STOTT, 2019, p. 67).
No entanto, como afirmam Bartholomew & Goheen (2017) não devemos pressupor que toda atividade cultural é fruto do pecado. Pelo contrário, atividades culturais surgem quando homens e mulheres desenvolvem a Criação, pois mesmo em um mundo caído “a graça de Deus possibilitou o exercício do mandato cultural” (NEVES, 2023).
Após a Queda, Deus continuou se revelando, de forma progressiva. Na Bíblia, verbos ativos são usados para descrever a atividade de Deus: “Ele está ocupando criando, falando, mostrando, julgando, planejando, ouvindo, rindo e decretando” (PENNINGS, 2022, p. 32). Deus é retratado trabalhando de forma ativa, usando analogias humanas (PENNINGS, 2022): oleiro (Isaías 64:8); pastor (Salmos 23:1); fabricante de roupas (Mateus 6:30); construtor (Hebreus 3:4). O próprio Jesus afirma “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (João 5:17).
Ao longo da narrativa bíblica, Deus vai concedendo “dons específicos a pessoas específicas para atender a necessidades específicas em Seu reino.” (PENNINGS, 2022, p. 30) e para atender as necessidades de todos os seres vivos, como nos mostra o Salmos 145:16. Assim, Deus cumpre seus propósitos redentivos “por meio de pessoas comuns que se dispõem a viver de acordo com a revelação divina em todos os afazeres da vida.” (CHO, 2022, p. 82), como José, Moisés, Bezalel, Aoliabe, Rute, Ester, Neemias, Esdras, Débora e Daniel, que, apesar de possuírem uma revelação incompleta da redenção, foram usados por Deus.
O Trabalho e a Redenção
Temos uma revelação mais completa e assim “precisamos olhar o trabalho no contexto da redenção.” (PENNINGS, 2022, p. 38). Jesus, em seu tempo em Nazaré como carpinteiro e em seu ministério, durante os anos finais de sua vida na terra, experimentou o trabalho, obedecendo ao mandato cultural. O Novo Testamento revela que Cristo, labutou para nós na Cruz e assim podemos ter descanso para nossa alma (Mateus 11:28-30) e que, em Cristo, temos e somos tudo o que precisamos. Deste modo, somos chamados a uma renovação da mente. Hamilton Jr. (2021) resume a perspectiva do Novo Testamento sobre o trabalho em dois pontos: i) o trabalho como uma expressão de amor a Deus; ii) o trabalho como expressão de amor ao próximo. Essa é uma forma revolucionária de ver o trabalho: “honrar a Deus amando nossos semelhantes e servindo-lhes com nosso trabalho.” (KELLER & ALSDORF, 2018, p. 72).
Assim, particularmente as cartas de Paulo, nos oferecem clareza sobre “como Deus confere propósito a nosso trabalho quando nos chama a servir ao mundo.” (KELLER & ALSDORF, 2018, p. 63). Em 1 Coríntios 7, Paulo, usando duas palavras de sentido religiosos para descrever o trabalho comum, esclarece que após a conversão não precisamos mudar o que fazemos na vida. Em 1 Coríntios 10:31, Efésios 6:5-7 e Colossenses 3:22-24, vemos exortações sobre fazer tudo como para o Senhor.
Atos 3:21 e Colossenses 1:19-20 falam da restauração abrangente de toda a criação. Isso significa que “o desenvolvimento cultural e o trabalho humano continuarão… Haverá oportunidades para que a humanidade continue trabalhando e desenvolvendo a Criação, mas agora liberta do fardo do pecado.” (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2017, p. 26), como podemos vislumbrar em Isaías 65:21-23. Nos últimos capítulos de Apocalipse, a “Nova Jerusalém”, desce do céu à terra, apontando, tanto para o paraíso, quanto para a cidade santa e para o templo (EDGAR, 2022), nos revelando o propósito final de Deus: “a imposição renovada da ordem perfeita de Deus para a terra.” (BARTHOLOMEW & GOHEEN, 2017, p. 252).
Até lá, devemos seguir no que Stott (2019) chama de combinação de ‘servir’ e ‘esperar’, sendo o primeiro “empenhar-se ativamente por Cristo na terra, enquanto que o segundo é esperar passivamente que ele volte do céu” (STOTT, 2019, p. 74), trabalhando “de modo a demonstrar amor a Deus e ao próximo” (HAMILTON JR., 2021, n.p.).
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Referências
ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994. 102 p.
BARTHOLOMEW, Craig G., GOHEEN, Michael W. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e contemporânea. Tradução: Márcio Loureiro Redondo. 1 ed. São Paulo. Vida Nova, 2016. 272 p.
BARTHOLOMEW, Craig G., GOHEEN, Michael W. O Drama das Escrituras: Encontrando o nosso lugar na História Bíblica. Tradução: Daniel Kroker. 1 ed. São Paulo: Vida Nova, 2017. 288 p.
BAVINCK, Herman. As maravilhas de Deus: Instruções na religião cristã de acordo com a Confissão Reformada. Tradução: David Brum Soares. 1 ed. São Paulo: Pilgrim Serviços e Aplicações; Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 736 p.
BÍBLIA SAGRADA. Bíblia de Estudos NVI. Bíblia. Baker, K. (Organizador Geral). Tradução das Notas: Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2003.
CHO, Bernardo. Trabalho, propósito e descanso: A visão bíblica de shalom e o chamado do cristão hoje. 1 ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2022. 176 p.
EDGAR, William. Criados para criar: uma teologia bíblica da cultura. Editor: Felipe S. de Araújo Neto. Tradução: Josaías Cardoso Ribeiro Júnior. 1 ed. Brasília: Monergismo, 2022. 276 p.
HAMILTON JR., James M. O Trabalho e Nosso Serviço no Senhor. 1 ed. São Paulo: Shedd Publicações, 2021. 128 p.
KELLER, Timothy, Alsdorf, Katherine L. Como integrar Fé e Trabalho: nossa profissão a serviço do reino de Deus. Tradução: Eulália P. Kregness. 1 ed. São Paulo, Vida Nova, 2014. 237 p.
LIEDDKE, E. Trabalho. In: CATTANI, A. (Org.). Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Porto Alegre: Vozes, 1997. p.268-274.
NEVES, Iara C. das. O cristão e seu papel no cumprimento do mandato cultural. 2023. Programa de Tutoria Essencial. Invisible College. Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/o-cristao-e-o-seu-papel-no-cumprimento-do-mandato-cultural/.
PENNINGS, Ray. Como servir à Deus no Trabalho. 1 ed: Eden Publicações, 2023. 47 p.
REICHOW, Josué Klumb. Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd. 1 ed. Brasília: Editora Monergismo, 2019, 172 p.
STOTT. John. O Cristão em uma sociedade não Cristã: como posicionar-se biblicamente diante dos desafios contemporâneos. Tradução: Markus Hediger. 1 ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019. 640 p.