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Orçamento doméstico como uma oportunidade para encenar o teodrama a partir do roteiro bíblico

Artigo escrito por Thiago Botelhos, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Introdução

Falar sobre dinheiro é um tabu em nossa sociedade. Poucas pessoas discordariam disso. Ainda que os canais de educação financeira tenham crescido muito nos últimos anos, as conversas são superficiais, majoritariamente, em torno de produtos financeiros, explorando o desejo impetuoso do ser humano em fazer mais dinheiro como principal solução para seus problemas. Enquanto o mercado financeiro busca emplacar ofertas imperdíveis, outras esferas da sociedade, como famílias, escolas, mundo corporativo e igrejas lidam com o assunto essencialmente de duas formas. A primeira tem a ver com a exploração do imaginário em torno da ganância: como ganhar mais, lucrar mais e rentabilizar mais? Alguns apontam para trabalhos “fáceis”, outros incentivam a exploração de pessoas, negligência com os recursos naturais ou sonegação de impostos (maneiras de “dar um jeitinho”); outros ainda incentivam que a chave da prosperidade financeira seja a doação como forma de barganha. Já a segunda forma bem comum de “tratar” o assunto dinheiro é, na verdade, assumir um completo silêncio, revelando a nossa incapacidade de encarar conversas difíceis sobre o tema. Diante disso, como sair dessa encruzilhada? Como discípulo de Cristo, qual seria um caminho melhor?

A partir da leitura da obra de Vanhoozer, O drama da doutrina, o cristão é instigado a entender que a vida cristã é mais do que seguir uma lista de proposições verídicas e também mais do que buscar experiências místicas. Trata-se de guardar, lembrar, obedecer e testemunhar o caminho, a verdade e a vida, sob a perspectiva de um drama, mas não de qualquer drama, mas, sim, o teodrama (VANHOOZER, 2016, n.p.). Esta metáfora apresentada no livro nos faz encarar a caminhada cristã como uma constante encenação do roteiro oficial, as Escrituras. O convite insistente do autor é enxergar o cânon não como uma ferramenta para justificar as práticas das comunidades cristãs, mas como a fonte essencial e primária para que o discípulo de Jesus possa encenar o drama da redenção que está em curso e que exige sabedoria prática, a cada contexto cultural e momento histórico. Mas como isso se aplica às questões financeiras? Qual é o roteiro adequado para encenar o drama do orçamento doméstico? A própria alegação de Vanhoozer pavimenta o caminho da resposta:

Pôr em prática o teodrama da perspectiva da vida cotidiana exige bom juízo: não apenas senso comum, mas um “senso canônico” que discerne o mundo sub specie theo-dramatis e um “senso contextual” que discerne o que determinada situação exige de nós para que possamos dar ao mundo um fiel testemunho a respeito da nova criação “em Cristo” (VANHOOZER, 2016, p. 339).

Assim, como desenvolver um senso canônico? Quais perspectivas corretas para lidar com o dinheiro? Três conceitos são particularmente úteis para responder tais questões: mordomia, contentamento e generosidade. Encenar estes princípios é uma tarefa de primeira ordem a todo cristão.

Mordomia

O salmista diz que “do SENHOR é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem” (Salmos 24:1). Como ir além de uma mera proposição da verdade? Como “encená-la” a partir do drama da redenção? Um caminho necessário é uma autoavaliação de nosso orçamento doméstico. Quais são as dúvidas, angústias, preocupações, sonhos e desejos que vêm à mente? Dentre as duas perguntas a seguir, qual delas melhor representa a base para as suas decisões financeiras: (1) Como eu deveria gastar o meu dinheiro? ou (2) como Deus quer que eu gaste o dinheiro dEle? Reconhecer quem é o dono e nosso papel de mordomos é colocar as coisas em uma perspectiva melhor. Nas palavras de Vanhoozer:

Ter a perspectiva correta é ser capaz de ver uma situação sob a ótica dos valores e compromissos mais importantes (…) Perspectiva é o antídoto para a miopia. É a virtude que nos capacita a dizer e fazer o que é adequado em contextos específicos sem sermos dominados por preocupações contextuais (VANHOOZER, 2016, p. 350).

Nossa incapacidade de tomar boas decisões financeiras, ou seja, decisões que vão ao encontro do cânon bíblico, se deve, em grande parte, à falta da perspectiva correta. Facilmente, nos perdemos nos diversos contextos peculiares da vida. A metáfora utilizada por Vanhoozer é novamente útil aqui: a peça que estamos encenando pertence a quem: a mim ou a Deus? Reconhecer nossa fala e ações potencialmente hipócritas é o primeiro passo para encenar o teodrama corretamente  (VANHOOZER, 2016, n.p.).

Contentamento

Na esteira da mordomia, está o contentamento. Viver contente pode parecer uma tarefa ainda mais desafiadora. Ser um bom gestor financeiro é algo desejado e muitas vezes praticado por muitos de nós. Mas e quando os resultados não acontecem? E quando o trabalho duro, o acordar cedo, a produtividade e a dedicação não refletem em uma boa noite de sono? Aqui é pertinente observarmos o que Paulo testemunhou em Filipenses 4:11-12. Viver contente em qualquer situação não é igual a viver contente apenas quando colhemos o que plantamos. Não. Tem a ver com viver contente também quando colhemos o que não plantamos. Mas existe uma proposição neste trecho, a qual devemos nos apegar e encenar: Paulo aprendeu a viver contente (e não nasceu sabendo); da mesma maneira, nós também podemos nos submeter ao poder e à atuação do Espírito para que aprendamos estar contentes em qualquer situação, descansando na certeza de que Deus jamais nos abandonará (Hebreus 13:5).

Generosidade

Já a generosidade é, em certo sentido, um transbordar do contentamento. Reconhecer o quanto é suficiente para si, em termos de padrão de vida, é uma tarefa desafiadora. Mas enquanto a pergunta “quanto é o suficiente?” não for honestamente encarada, há grandes chances de que a generosidade seja limitada a meras obras convenientes. Segundo Craig Blomberg: “Nenhum escritor [bíblico] convoca cristãos prósperos a trocarem de lugar com o pobre, mas a doarem simplesmente excessos e serem honestos no reconhecimento do que é excesso” (BLOOMBERG, 2009, p. 243).

Matheus Ortega, em seu livro Economia do reino, aborda quatro perfis de pessoas generosas. O doador é quem dá com o coração, o moderado dá com a razão, o transformador dá para mudar o mundo e o abnegado dá para renunciar suas posses (ORTEGA, 2021, n.p.). Constatar que existem formas distintas, mas igualmente válidas, de encenar as Escrituras não apenas nos incentiva a sermos mais generosos, como também nos ajuda a valorizar formas diferentes de encenação.

Consideração final

Se nosso alvo é de fato encenar o teodrama e não outro drama qualquer, faz-se necessário distinguir o jeito cristão de se gastar dinheiro. Quanto a isso, Blomberg destaca a realidade de que há pouca distinção entre cristão e não cristão (BLOMBERG, 2009, n.p.). Os dois grupos gastam, investem, doam e fazem dívidas de maneira muito semelhante. E isso, por si só, já revela o quanto muitos cristãos se perderam em meio a dramas não canônicos.

Ademais, tratar a Bíblia como uma unidade canônica é fundamental para a correta encenação do evangelho. Cada livro, com sua respectiva linguagem e proposta, nos ajuda a completar uma visão mais ampla daquilo que compreende as lições sobre dinheiro e nossa relação com ele. Concluindo, ao discorrer uma teologia bíblica das posses materiais, Blomberg termina seu livro com algumas pertinentes conclusões e aplicações: (1) A riqueza é inerentemente boa e os cristãos devem tentar alcançá-la; (2) Se a riqueza é sedutora, doar parte do excesso é uma boa estratégia; (3) O uso compassivo e generoso dos recursos deve se tornar uma parte integral da vida cristã; (4) Aqueles que possuem renda excessiva devem trabalhar duro para ajudar os necessitados; (5) A generosidade deve ser praticada tanto a igrejas quanto a indivíduos e organizações (BLOMBERG, 2009, n.p.).

Referências bibliográficas

VANHOOZER, Kevin J.  O drama da doutrina: – Uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã; Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.

ORTEGA, Matheus.  Economia do reino: quatro caminhos cristãos para lidar com a riqueza e a pobreza no mundo. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 208 p.

BLOMBERG, Craig L.  Nem pobreza, nem riqueza: as posses segundo a teologia bíblica. Tradução Aline Marques Kaehler. 1ª Edição. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2009. 301 p.