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Pregando aos corações: orientação para uma cosmovisão verdadeiramente cristã

Artigo escrito por Pedro Henrique Araújo Santos, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


Já faz algum tempo que o tema da cosmovisão cristã está em alta entre cristãos interessados em pensar a sua fé para além da vida privada, na tentativa de colocá-la em diálogo com todas as áreas da realidade. Um dos motivos para a perenidade das discussões envolvendo este tema é a sua abrangência, uma vez que ele possibilita refletir sobre todas as áreas da vida. Pelo menos isso era o que buscava figuras como Abraham Kuyper, importante expoente do movimento chamado neocalvinismo, responsável por popularizar as discussões acerca da cosmovisão cristã. 

Para ajudar na compreensão do que é uma cosmovisão, podemos usar uma definição dada por James Sire:

Essencialmente, cosmovisão é um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica do nosso mundo (SIRE, 2019, p. 29).

Na maioria das vezes, quando se fala em cosmovisão e, consequentemente, em cosmovisão cristã, é comum perceber que o foco recai sobre a capacidade de dar boas respostas aos dilemas da existência. Dessa forma, afirmamos que a pessoa possui uma boa cosmovisão quando ela consegue articular suas ideias de forma lógica e racional. Nestes casos, fica evidente o lugar privilegiado dado à racionalidade, à mente, ou seja, à razão, uma vez que ela é vista como centro de comando no ser humano. 

O racionalismo, a ênfase dada às capacidades da razão humana, no que diz respeito ao conhecimento, pode facilmente ser percebido em nossos dias. Contudo, ainda que tenha ganhado novas características na atualidade, o racionalismo não surgiu recentemente. Ele é uma das heranças mais fortes do período que os estudiosos chamam de Modernidade. Há disputa entre os estudiosos para definir qual evento deu início à Modernidade, mas há consenso em reconhecer que uma das características mais marcantes deste período é a confiança de que, munido de uma nova e pujante racionalidade, o homem poderia criar uma nova realidade e livrar a humanidade das mazelas vividas na Idade Média. Escrevendo sobre este período, Roel Kuiper exemplifica a confiança posta nesta nova racionalidade:

A avaliação elevada da capacidade humana – sobretudo razão e vontade – é essencial nos escritos de More e tem ligação direta com a temática da viabilidade. O homem guiado por razão e pela natureza pode ser criador de um mundo harmonioso. Sem esse homem, no qual o mal parece não estar alojado, a Utopia não é possível (KUIPER, 2019, p. 62).

Atravessando os séculos, o racionalismo chegou aos nossos dias e se transformou em uma das armadilhas mais comuns para aqueles que descobrem o conceito de cosmovisão e tentam usá-lo em favor da fé cristã. A armadilha está em assumir a ideia moderna de que é a razão é o centro de comando do homem e que, sendo assim, o trabalho da cosmovisão cristã é fornecer ideias ao entendimento. Quanto mais informação o homem possuir, mais racional ele será, e isso levará às mudanças necessárias.

Contemporaneamente, o filósofo James Smith foi um dos que percebeu esta armadilha no meio cristão e, voltando aos tesouros da grande tradição cristã, resgatou uma antropologia biblicamente orientada reconhecendo que o primeiro passo para educar o homem na cosmovisão cristã é definir o que é o homem a partir da perspectiva bíblica. O principal argumento resgatado por Smith é a noção de que, biblicamente falando, o centro de comando do homem não está na razão, na verdade, ele está no coração. É evidente que coração aqui não é o órgão que bombeia o sangue, se trata do lugar de onde surgem os pensamentos, emoções, ações e convicções do ser humano. Isso muda tudo!

Nesse outro tipo de antropologia, a pessoa humana não é compreendida basicamente como máquina pensante, e sim como animal que crê, ou uma criatura essencialmente religiosa, definida por uma cosmovisão que é pré-racional ou suprarracional. O que nos define não é o que pensamos – não é um conjunto de ideias a que assentimos – e sim o que cremos, os compromissos e as lealdades que orientam nosso estar no mundo. Isso transporta a essência da pessoa humano no mundo do mais abstrato e imaterial das ideias para o nível pré-racional das crenças mais arraigadas no indivíduo. Antes de sermos pensadores, somos crentes (SMITH, 2018, p. 43).

Seguindo a argumentação de Smith, podemos repensar a definição de cosmovisão. É justamente isso que faz James Sire. Após oferecer uma definição primária para o termo, ele apresenta uma definição que ele considera mais refinada, do modelo antropológico citado acima. Dessa forma, ele utiliza os seguintes termos:

Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expressa como uma estória ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos nos movemos e existimos (SIRE, 2019, p. 179).

Uma vez identificada a armadilha (o racionalismo) e apresentada uma solução (um modelo antropológico biblicamente orientado), o que vem a seguir? Como esta nova visão acerca do homem altera o modo como nós trabalhamos o conceito de cosmovisão cristã? Uma resposta detalhada exigiria muito mais espaço do que dispomos aqui, contudo, há uma resposta que pode ser útil por hora. Se queremos oferecer uma cosmovisão cristã robusta aos homens, para além de fornecer simplesmente um conjunto de ideias, podemos seguir o conselho de Michael Goheen e de Craig Bartholomew e abraçar o modelo bíblico de Criação, Queda e Redenção.

Segundo Goheen e Bartholomew, um cristão deve começar a pensar em cosmovisão a partir das boas-novas do evangelho. O anúncio feito por Jesus Cristo há dois mil anos de que o reino de Deus chegou deve ser o nosso ponto de partida. Anunciar a chegada do Reino é assumir toda a narrativa da Escritura como a verdade suprema. É na narrativa bíblica onde devemos buscar orientação para navegarmos pela realidade, é lá onde encontramos as principais respostas para os problemas da existência; mais do que isso, é lá onde descobrimos qual é o plano original para toda a criação. 

Se todo ser humano questiona de onde veio, é na Escritura que descobrimos que tudo o que existe foi criado por um Deus soberano e bom. Sendo assim, quando tudo foi criado, a criação exibia ordem e beleza, funcionando da maneira exata como deveria. O homem sabia exatamente o motivo de ter sido criado e encontrava prazer no seu Criador. Logo, a pergunta que se segue é: então o que aconteceu, uma vez que não vemos esta harmonia inicial em andamento? A Escritura também responde esta pergunta. Em um determinado momento, os primeiros serem humanos rompem o seu harmonioso relacionamento com Deus e o pecado entra na criação, isso gera todo tipo de desordem. Chamamos este evento de Queda. 

Mas, também pela Escritura, somos informados de que essa não é a cena final na história do mundo. Sendo o criador um Deus bom, ele providencia o resgate, o conserto, a restauração de toda desordem causada pela entrada do pecado no mundo. O meio usado por Deus para restaurar todas as coisas ao seu projeto original é enviar seu filho Jesus Cristo e, através dele, inaugurar um tempo onde todas as coisas serão colocadas em ordem, a começar do relacionamento do ser humano com o seu Criador. 

Logo, seguindo estas verdades, o trabalho da cosmovisão cristã é colocar todos os aspectos da existência debaixo do senhorio de Cristo. Goheen e Bartholomew tomam emprestado o termo shalom para descrever o alvo da restauração. “Shalom descreve a criação tal como era para ser, uma vida de florescimento e prosperidade em que nossos relacionamentos com Deus, uns com os outros e com a criação não humana são pujantes e cheias de vigor” (GOHEEN; BARTHOLOMEW, 2016, p. 79). Eles ainda completam dizendo que as características da shalom são justiça, amor, gratidão e alegria. 

Podemos concluir que, se queremos fazer jus a uma cosmovisão verdadeiramente cristã, precisamos assumir que o ser humano não precisa primeiramente de um conjunto de ideias para alimentar sua razão, mas de salvação para o seu coração corrompido e distante do seu Criador. A partir da transformação do coração, do centro comando, surgirá um novo modo de enxergar a existência e viver a vida, vivendo-a unicamente para a glória de Deus. Um coração transformado resultará em pensamentos e ideias transformados. Tudo começa no coração.  


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Referências Bibliográficas

GOHEEN, Michael W.; BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. Tradução: Marcio Lourenço Redondo. São Paulo; Vida Nova, 2016. 272 p.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Tradução: Paulo Zacharias e Marcelo Herberts. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 246 p.

SMITH, James K. A. Desejando o reino: culto, cosmovisão e formação cultural. Tradução: A. G. Mendes. São Paulo: São Paulo; Vida Nova, 2018. 240 p.

KUIPER, Roel. Capita moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 310 p.