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Prolegômenos de cosmovisão (parte I)

Nem a ciência moderna, nem a religião antiga acreditam no pensamento completamente livre. A teologia desaprova certos pensamentos chamando-os de blasfemos. A ciência desaprova certos pensamentos chamando-os de mórbidos.

G. K. Chesterton

Na apresentação do livro Wordview: the history of a concept, de David K. Naugle, publicado no Brasil pela editora Monergismo, com o título Cosmovisão: a história de um conceito, em 2018, Arthur F. Holmes afirma que “toda verdade, em última análise, tem a ver com os caminhos e as obras de Deus” (NAUGLE, 2017, p. 13) . Fato é que o termo alemão weltanschauung, comumente traduzido por cosmovisão ou visão de mundo, tem sua origem não na teologia, mas na filosofia, no clássico Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant (1724-1804). Contudo, em ressonância com as palavras de Holmes, a apropriação do termo pela teologia cristã foi, conforme argumenta Naugle, “um dos desenvolvimentos mais significativos na história recente da igreja”, não por ser algum tipo de empreendimento arbitrário de alguns teólogos sobre os auspícios de uma apologética fragmentária, mas por se referir a algo inerente aos “caminhos e as obras de Deus”, que diz respeito à própria natureza da fé cristã. Nas palavras do teólogo e ministro presbiteriano escocês James Orr (1844-1913),

“Há uma visão cristã definida das coisas que tem um caráter, uma coerência e uma unidade próprios e que estão em nítido contraste com as teorias e especulações oponentes, e… essa cosmo-visão tem o selo da razão e da realidade, podendo se justificar amplamente no tribunal da história e da experiência. Tentarei mostrar que a visão cristã das coisas forma um todo lógico que não pode ser violado, aceito ou rejeitado de forma fragmentada, mas permanece ou cai na sua totalidade; e que, com teorias que residam em bases completamente distintas, ela só poderia sofrer tentativas de fusão ou contemporização” (ORR apud NAUGLE, 2017, p. 37).

Um imperativo bíblico

Esse caráter cósmico da weltanschauung reside no cerne de sua definição. Nas palavras do filósofo James W. Sire (1933-2018), no seu livro O universo ao lado, “cosmovisão é o compromisso, a orientação fundamental do coração, que pode ser expresso em uma história ou um conjunto de pressupostos (suposições que podem ser verdadeiras, verdadeiras em parte ou de todo falsas) que mantemos (de forma consciente ou subconsciente, consistente ou inconsistente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o fundamento sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos” (SIRE, 2018, p. 26). Cosmovisão, portanto, é um compromisso pré-teórico do coração que constitui as lentes hermenêuticas por intermédio das quais o homem apreende a realidade. Ela molda seus valores mais básicos, suas concepções de bem e mal, certo e errado, direitos e deveres, como uma espécie de guia para a vida, como bem lembra Albert M. Wolters: “Nossa cosmovisão molda, a um grau significativo, o modo como valorizamos os acontecimentos, os temas e as estruturas da nossa civilização e do nosso tempo. Ela nos permite “classificar” ou “situar” os vários fenômenos que entram no nosso raio de visão” (WOLTERS, 2006, p. 15).

Se por um lado o conceito de weltanschauung diz respeito ao centro das afeições humanas, o coração, a importância de uma cosmovisão cristã é tanto um imperativo bíblico quanto uma necessidade diante da demanda do tempo presente, de cosmovisões antitéticas à tradição cristã, como o naturalismo e o niilismo. Talvez ninguém tenha entendido isso melhor do que o polímata holandês Abraham Kuyper (1837-1920), especialmente lembrado por ser o fundador da Universidade Livre de Amsterdã, em 1880, e primeiro-ministro da Holanda de 1901 a 1905. A pedra angular do seu pensamento pode ser expressa nas palavras de inauguração da Universidade Livre: “Não há uma polegada quadrada do domínio total da nossa existência humana sobre a qual Cristo, que é soberano sobre todas as coisas, não grite ‘Meu!'” (KUYPER apud NAUGLE, 2017, p. 43). Um crítico da apologética clássica e fortemente influenciado pela teologia dos reformadores, sobretudo no que diz respeito à sua visão da soberania divina, Kuyper entendia que qualquer resposta eficaz aos ataques contra o cristianismo bíblico não poderia ser dada de forma fragmentada, mas com uma proposta de cosmovisão cristã de todo abrangente, uma visão integrada da realidade. Se trata, portanto de uma guerra de cosmovisões:

“Se a batalha deve ser realizada com honra e com esperança de vitória, então, princípio deve ser disposto contra princípio; a seguir, deve-se sentir que no modernismo a vasta energia de um sistema de vida abrangente nos assalta; e depois também se deve entender que devemos assumir nossa posição em favor de um sistema de vida de poder igualmente abrangente e de longo alcance. E esse sistema de vida poderoso não deve ser inventado nem formulado por nós mesmos, mas tomado e aplicado tal como se apresenta na história” (KUYPER apud NAUGLE, 2017, p. 46).

Descompactando o conceito

Um dos motivos que levou Kuyper a ser bastante crítico da escola tradicional de apologética foi o que ele entendia como uma ineficiência dessa abordagem do ponto de vista evangelístico, uma vez que ela só conseguia tocar na superfície do problema. Para ele, era ingênuo acreditar que a razão, a despeito das consequências noéticas do pecado, ainda tivesse a capacidade de tomar uma decisão acerca do evangelho mediante evidências. Um boa apologética deveria, antes de tudo, considerar a importância das pressuposições numa cosmovisão. Sire expressou bem isso quando disse que “a essência da cosmovisão jaz nos recessos internos do eu humano. A cosmovisão envolve a mente, mas é antes de tudo um compromisso, uma questão da alma. Mais que apenas uma questão de inteligência, é uma orientação espiritual” (SIRE, 2018, p. 26).

Outro importante aspecto de uma cosmovisão é sua característica narrativa. Embora ela não deva ser reduzida a um conjunto compactado de pressupostos que contam uma história, se expressa dessa maneira (SIRE, 2018, P. 27). Não existe, por exemplo, uma filosofia neutra da história, despida de qualquer pressuposto de seu autor. Filósofos como Agostinho (354-430) e Hegel (1770-1831), cada um, carregaram consigo compromissos pré-teóricos que constituíram suas respectivas visões de mundo. Esse aspecto narrativo é inerente à cosmovisão cristã. Nas palavras de Sire, “os cristãos contam a história da criação, queda, redenção, glorificação – história em que o nascimento, a morte e a ressurreição de Jesus representam a peça central. Os cristãos vêem sua vida e a vida dos outros como minúsculos capítulos desse enredo principal” (SIRE, 2018, p. 27). Teólogos como Hans Urs von Balthasar (1905-1988) e Kevin Vanhoozer deram importantes contribuições á história recente da igreja a esse respeito. No livro O drama da doutrina, Vanhoozer argumenta que o evangelho é, por natureza, teodramático, isto é, a história da redenção se constitui numa sequência de entradas e saídas divinas, atos de fala de Deus se revelando ao homem, de modo que “a tarefa da teologia é capacitar ouvintes e praticantes do evangelho a responder e corresponder à Palavra e Ato prévios de Deus e, assim, serem levados à ação” (VANHOOZER, 2016, p. 60).

Vale também ressaltar uma característica particular das cosmovisões. James Sire lembra que “de modo geral, nossa cosmovisão está tão embutida em nosso subconsciente com tanta profundidade que não estamos cientes do que ela é – sem uma reflexão prolongada e árdua. Mesmo quando pensamos saber sua identidade e a expomos com clareza mediante proposições limpas e histórias claras, podemos muito bem nos equivocar. Nossas ações podem contradizer nosso autoconhecimento” (SIRE, 2018, p. 28). Talvez não haveria melhor ilustração dessa verdade do que num diálogo com um naturalista, isto é, alguém que acredita que “a realidade primordial é a matéria. A matéria existe eternamente e é tudo o que existe. Não há Deus” (SIRE, 2018, p. 77). Qual a garantia epistêmica de que a sua própria crença na realidade primordial na matéria não seria um constructo social derivado da evolução biológica, resultado de um processo cego e sem propósito? Nas palavras do filósofo Alvin Plantinga, no livro Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?,

Considerando que o naturalismo inclui o materialismo em tudo que se refere aos seres humanos, afirmo que, na perspectiva do naturalismo e da evolução, é improvável que nossas faculdades cognitivas sejam confiáveis. É improvável que nos forneçam um grau adequado de preponderância de crenças verdadeiras sobre as falsas. Nesse caso, o naturalista que aceita a teoria contemporânea da evolução se depara com um anulador da proposição de que nossas faculdades cognitivas são confiáveis. Além disso, ao se deparar com um anulador da proposição de que nossas faculdades cognitivas são confiáveis, depara-se também com um anulador de qualquer crença que considere ser produzida por essas faculdades. Mas é claro que todas as suas crenças foram produzidas por suas faculdades – entre elas, naturalmente, suas crenças no naturalismo e na evolução. Ele não pode, portanto, aceitar racionalmente essa crença – a conjunção naturalismo e evolução. Concluindo, há um conflito grave entre o naturalismo e a evolução: não se pode aceitar racionalmente a ambos. (PLANTINGA, 2018, p. 15).

A ironia é que, apesar da alegada irracionalidade das crenças religiosas, a própria visão de mundo do naturalista o impossibilita de qualquer garantia epistêmica racional das suas crenças mais básicas.

As fontes da vida

“Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4:23). Salomão estava cônscio de que o coração é o centro das afeições humanas. Na conclusão do seu livro, Cosmovisão, Naugle ressalta que “uma cosmovisão ligada ao coração e um coração ligado a uma cosmovisão é a raiz daquela força embutida que determina como a vida vem e vai. Ela é decisiva para o tempo e a eternidade” (NAUGLE, 2017, p. 434). O sensus divinitatis faz do homem um ser cosmovisionado, ainda que não perceba. Se ele não ama o Deus verdadeiro, que se revelou em Jesus Cristo, ele inevitavelmente vai amar alguma coisa e fazer dela o seu deus – seja ele mesmo, a matéria, uma ideia, e expressar esse amor em algum tipo de cosmovisão idólatra.


Referências bibliográficas

NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília, DF: Monergismo, 2017.

PLANTINGA, Alvin. Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito? Trad. Marcelo Cipolla. São Paulo: Vida Nova, 2018.

SIRE, James W. O universo ao lado: um catálogo sobre cosmovisão. Trad. Marcelo Herberts. Brasília, DF: Monergismo, 2018.

WOLTERS, Albert M. A criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão cristã. Trad. Denise Pereira Ribeiro Meister. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.