Escrito por Raquel Borges, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2023
Introdução
As definições de tempo são determinadas, na história, de diversas formas. A mais conhecida é por períodos, sendo o objeto de investigação desse ensaio a modernidade. Inúmeros autores trazem suas contribuições na tentativa de conceituar essa época. Nesse sentido, Charles Taylor, filósofo canadense, se mostra bastante útil para o presente estudo. Na obra Uma era secular, o autor discorre sobre sua tese do que seria o período da modernidade. Para ele, “foi a saída de um período em que a fé era algo inquestionável para uma fé opcional, uma experiência reflexiva da realidade” (TAYLOR apud DULCI, 2021). Não é difícil verificar sua tese em nossos dias; basta enxergarmos a maneira com que o cristianismo, por exemplo, é encarado: como mais uma opção de crença no meio de tantas outras. Há um forte apelo ao relativismo e à pluralidade. A verdade, a moralidade e os direcionamentos para o ser humano são encontrados não mais nas Escrituras e na Revelação de Deus, mas no próprio homem. Como disse Roel Kuiper, “o homem na modernidade passou a ser seu próprio projeto”1.
Como consequência disso, as conformações sociais do nosso tempo são disformes, unilaterais, pragmáticas e desprendidas de comunidades de autoridade. O ser humano busca dentro de si mesmo as respostas de como deve viver, esquecendo-se de olhar ao seu redor para um desenvolvimento adequado. Para onde caminha a nossa sociedade se permanecermos dessa forma? Qual será o futuro de nossas relações se mantivermos um espírito de pretensa autonomia? Esses questionamentos devem ser feitos se desejarmos manter vínculos sociais duradouros. Diante disso, o presente ensaio tem por objetivo refletir brevemente sobre a ideia contemporânea de autonomia humana, além de verificar a necessidade e a importância da tradição, com ênfase nos princípios cristãos-protestantes.
O homem como ser autossuficiente
Uma das características mais marcantes do homem contemporâneo é sua busca por autonomia. As raízes disso encontram-se em períodos anteriores, como o Renascimento e o Humanismo. Nos séculos XV e XVI, esses dois desdobramentos, que podem ser considerados duas faces do mesmo fenômeno, abriram caminho para boa parte das manifestações socioculturais dos nossos dias. Isso porque o Humanismo pode ser entendido como a “tomada de consciência de uma missão tipicamente humana mediante as letras (poesia, retórica, história e filosofia)” e o Renascimento como um “grandioso fenômeno espiritual de regeneração”2. Esse precedente desenvolveu-se e se manifesta em nossos dias por meio do ser humano como o agente principal de suas próprias mudanças, como o alvo de seus próprios objetivos, como a medida de todas as coisas, para lembrar do filósofo grego Protágoras. O homem hoje é um ser livre para fazer o que sente ser verdadeiro e bom, deixando de considerar, muitas vezes, aquilo outrora estabelecido como norma por gerações.
Essa liberdade ausente de responsabilidade tem forjado uma sociedade egoísta, ensimesmada e perdida em seus próprios devaneios. Ainda falando sobre as repercussões da modernidade, Roel Kuiper diz: “A modernidade estabelece uma atitude voltada para o controle com a qual aparentemente fazemos, gerimos e controlamos coisas de forma neutra”3. Como Deus foi retirado do centro regulador e teleológico, o homem agora assume o papel de regente e senhor de todas as coisas. O ser humano é visto com olhos de perfectibilidade e pecado é um termo ignorado, esquecido. A vida é encarada como um progresso desenfreado e ininterrupto, imanentizado. Os prazeres, bens e realizações pessoais são o principal objetivo, algo que Guilherme de Carvalho afirma ser uma espécie de epicurismo escatólogico, ou seja, “a dissolução de todas as normas e limites em nome do paraíso terrestre”4. Não existe uma busca pelo eterno e transcendente, mas um frenético interesse pelo reconhecimento, poder e influência no aqui e agora. Em decorrência disso, os indivíduos caminham por uma trilha de autoafirmação, originalidade e autenticidade, onde cada um é responsável por si e por sua própria história. Criticando essa mentalidade enganosa, Jonas Madureira sintetiza:
Enquanto uma pessoa sincera seria consciente de que sua identidade é fruto da admiração que nutre por pessoas, uma pessoa autêntica seria, nesses termos, alguém que tem seu caráter forjado por pessoas a quem admira, mas esconde essa admiração sob a prerrogativa de que é uma pessoa absolutamente original, ou seja, que não imita nem toma alguém como padrão para viver.5
Diante de tudo isso, é nítido perceber que enquanto esse modo de pensar e agir permanecerem estimulados, nossas relações continuarão fracas e teremos poucos avanços reais vistos em nossa sociedade. No entanto, uma alternativa viável é trazida à tona quando lembramos do valor da tradição, especialmente a cristã, para o bom desenvolvimento da cultura.
A tradição cristã como condição de possibilidade para o florescimento humano
Contra todo o espírito do tempo moderno, o cristianismo surge como a solução para todas as mazelas humanas. Desde o Antigo Testamento, é possível observar a importância de conservar e passar às gerações seguintes a aliança feita pelo Senhor, bem como as normas e diretrizes estabelecidas por Ele para o povo viver bem. Como resumiu Igor Miguel, “uma definição bíblica de sabedoria poderia ser: um tipo de capacidade existencial que permite ao sujeito operar e interagir na e com a criação e com o próximo de acordo com a ordem sábia do Criador, de modo que viva bem e de forma plena perante Deus”6. O povo hebreu não acreditava ter uma liberdade autônoma, mas a sua liberdade estava condicionada às leis do Criador e por meio delas era possível conduzir todas as esferas de suas vidas. A noção de sabedoria hebraica residia no fato de as instruções serem passadas de pais para filhos, de mestres para aprendizes. Uma vez mais nos ajuda Igor, quando diz:
A epistemologia sapiencial produzia um conhecimento historicamente acumulado. Não apenas isso; o próprio empreendimento epistemológico se dava em um contexto de profundas conexões comunitárias. A sabedoria não era produzida de maneira autodidata, mas a partir de círculos de aprendizagem mediados pela presença de um tutor educacional, o sábio.7
Em contraste com a sociedade moderna, o cristão busca não os próprios interesses, mas os do próximo, considerando-o superior a si mesmo8. Esse modo de vida é radicalmente distinto da mentalidade moderna e possui efeitos duradouros quando corretamente aplicado. Além disso, a comunidade cristã é consciente das limitações humanas e é muito menos otimista com relação à sua natureza, o que, por sua vez, torna a ação regeneradora do Espírito Santo a condição de possibilidade para o verdadeiro florescimento e progresso humano. Por ter uma noção forte da queda no pecado, mas também da graça restauradora, os cristãos assumem a responsabilidade de viver no presente de forma intencional e verdadeira. É um tipo de existência preocupada-responsiva9: o outro não é rival, mas um irmão; o mundo não é um local de exploração, mas de domínio responsável; as relações não são contratos passíveis de fuga, mas um pacto de permanência e cuidado.
Essas questões são levadas a sério nas comunidades protestantes, que percebem a importância dessa continuidade ao longo da história da tradição cristã. Contra todo espírito de revolução e originalidade do momento, os cristãos se reúnem em torno de uma confessionalidade e assumem que não são os atores principais da história, mas imitadores de Cristo, referência de sacrifício e serviço. Os cristãos não buscam inovação ou uma grande descoberta. Eles já possuem a mensagem do Evangelho e os exemplos deixados ao longo da história do povo de Deus. Olhar para Jesus lhes é suficiente10. Por reconhecer que, sozinhos, nada podem fazer, os cristãos se apegam à tradição e aos ensinamentos deixados nas Escrituras, aprendendo com os erros do passado e continuando na fé dos apóstolos e dos pais da Igreja. Ao entender a relevância, o poder e a importância de comunidades epistêmicas, os cristãos encontram liberdade para viver e produzir os mais diversos artefatos culturais.
Por fim, a modernidade pode ser estudada e identificada de diversas maneiras. A mais comum é caracterizá-la pelo desenvolvimento dos ideais humanistas e renascentistas. No entanto, a Reforma Protestante foi um movimento religioso e sociocultural que ocorreu concomitantemente àquelas manifestações. Ela surgiu por uma inquietação com o antigo modo de funcionamento da Igreja e trouxe os homens de volta ao Evangelho da cruz, relembrando a importância de manterem-se na doutrina dos que os precederam. Diferente do modo de vida autossuficiente e desconectado da contemporaneidade, o cristianismo continua a ser a única alternativa para o homem desenvolver suas capacidades criativas e relacionais. Isso porque só ele proporciona uma maneira coesa de se enxergar a realidade, o que possibilita aos seres humanos viverem uns com os outros harmoniosamente, visando o bem comum, hoje, com uma expectativa de plenitude no eterno Lar.
Considerações finais
Assim, o novo modo de viver ensinado e incorporado pela Igreja concede aos cristãos a capacidade de se envolverem com o mundo de maneira ativa e real, não com base em seus méritos, mas pela força do Espírito. Os cristãos estão envolvidos em uma longa história de tradição, o que não lhes permite viver de forma desconectada, isolada e autônoma, mas os faz viver em comunidade e profundo relacionamento uns com os outros. Diferente da mentalidade moderna, o homem não precisa de renascimento, mas de regeneração – algo realizado não por ele mesmo, mas pelo próprio Deus.
1 KUIPER, Roel. Capital moral: O poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. 1ª ed. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019, p. 45.
2 ANTISERI, Dario e REALE, Giovanni. Filosofia: Idade Moderna. Tradução: José Bortolini. Edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2017, p. 17.
3 KUIPER, op. cit, p. 78.
4 CARVALHO, Guilherme. O Minotauro progressista. In: Gazeta do Povo. Vozes. 21 abr. 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/guilherme-de-carvalho/o-minotauro-progressista/. Acesso em 30 jun. 2023.
5 MADUREIRA, Jonas. O custo do discipulado: A doutrina da imitação de Cristo. São José dos Campos, SP. Editora Fiel, 2019, E-book. p. 46.
6 MIGUEL, Igor. A escola do Messias: Fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2021, p. 121.
7 Ibid., p. 140.
8 Referência a Filipenses 2:3 e 4.
9 Terminologia de Roel Kuiper em Capital Moral, p. 133.
10 Paráfrase de Jonas Madureira, O custo do discipulado, p. 55.
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Referências
ANTISERI, Dario e REALE, Giovanni. Filosofia: Idade Moderna. Tradução: José Bortolini. Edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2017, 1032 p.
CARVALHO, Guilherme. O Minotauro progressista. In: Gazeta do Povo. Vozes. 21 abr. 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/guilherme-de-carvalho/o-minotauro-progressista/. Acesso em 30 jun. 2023.
DULCI, Pedro. A maneira que Charles Taylor conta a história do nascimento da era secular. Invisible College. Programa de Tutoria Avançada. Goiânia, 2021. Acesso em 29 jul. 2023.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. 1ª ed. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019, 310 p.
MADUREIRA, Jonas. O custo do discipulado: a doutrina da imitação de Cristo. São José dos Campos, SP. Editora Fiel, 2019, E-book. 73 p.
MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2021, 208 p.