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Resenha: A gênese da doutrina

Escrita por Andrei Mantesso Coimbra, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


MCGRATH, Alister E. A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária. Tradução de A. G. Mendes. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2015. 256 p. 


Quando somos iniciados em uma denominação cristã, é comum ouvirmos e recebermos o que é chamado de doutrina. Passamos por uma classe de catecúmenos em que nos é apresentada uma série de proposições sobre o que a igreja crê – quem é Deus, Jesus, o Espírito Santo, como somos salvos, o que significa o batismo, entre outros temas apresentados. Apesar de não as encontrarmos escritas literalmente na Bíblia, tomamos essas proposições como verdades distintivas da nossa fé. Mas, de onde vêm tais formulações doutrinárias? Como e quando essas afirmações surgiram? Por que devemos tomá-las como autoritativas ainda hoje? Essas são perguntas que levaram Alister E. McGrath a escrever o livro A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária

Apesar de ser um assunto que perpassa por várias disciplinas, como teologia, história e filosofia, McGrath organiza o livro em seis capítulos de forma didática, apresentando o debate acerca da crítica doutrinária. Passando pela gênese da doutrina cristã, a saber, o evento histórico de Jesus de Nazaré, McGrath dialoga com outra obra relevante, A natureza da doutrina, de George Lindbeck; analisa as características históricas das doutrinas e, por fim, trata dos aspectos históricos e filosóficos que moldaram o desenvolvimento doutrinário.

Segundo o autor, a crítica doutrinária é a disciplina que se preocupa com avaliar as formulações doutrinárias da tradição cristã por meio de critérios históricos e teológicos, com a intenção de esclarecer seu processo de formulação, ponderando as pressões, influências e critérios adotados ao longo do processo e propondo reformulações, se necessário. O evento fundador que deu origem às doutrinas cristãs é, sem dúvida, a história de Jesus de Nazaré, seu nascimento, vida, morte e ressurreição. A forma como as primeiras testemunhas passaram essa mensagem adiante e o contato dos seguidores dessa mensagem com outras culturas tanto moldaram quanto exigiram a formulação doutrinária da igreja. Assim, a doutrina “diz respeito à interpretação dessa narrativa, analisando e ampliando padrões de interpretação que já coexistem com essa narrativa” (p. 19).

 Nesse sentido, uma das propostas relevantes apresentadas para identificar a natureza da doutrina foi feita por George Lindbeck. McGrath dedica um capítulo da obra para tratar das contribuições desse autor. Lindbeck identificou três teorias sobre a natureza da doutrina, a saber: “proposicionalista-cognitiva”, que defende que a doutrina está nas afirmações propositivas, ou seja, é um aspecto cognitivo; a “expressivista-experiencial”, na qual as doutrinas surgem da experiência da comunidade, sendo pré-cognitiva; e “linguístico-cultural”, teoria particularmente defendida por Lindbeck, que compara a doutrina a um tipo de idioma que regula a linguagem da comunidade. Tal teoria é criticada por McGrath, pois, em última instância, o aspecto da verdade última não é considerado, ou seja, a questão não é apenas se a doutrina é ou não verdade, mas apenas se apresenta uma coerência dentro desse idioma. Como McGrath enfatiza, na visão de Lindbeck, a discussão do Credo Niceno sobre a natureza de Jesus não é uma afirmação ontológica, mas apenas um modo de falar, um idioma, sobre a natureza de Jesus que trouxe coerência para um sistema.

Ademais, McGrath afirma que as teorias apresentadas por Lindbeck são reducionistas e lidam de modo idealizado e abstrato com algo que é um fenômeno histórico e social, isto é, o desenvolvimento das doutrinas. Diante disso, McGrath apresenta não uma teoria, mas uma descrição histórica de quatro dimensões da doutrina.  Essa é umas das ricas contribuições de McGrath nessa obra: 1) A doutrina funciona como um demarcador social, ou seja, ela dá uma identidade para a comunidade, expressando as diferenças já existentes com outras comunidades; 2) a doutrina serve como uma estrutura conceitual para a interpretação da narrativa bíblica (vale enfatizar que não se trata de uma estrutura extra-Escritura, mas de uma estrutura sugerida pela própria narrativa); 3) a doutrina interpreta a experiência cristã; e, por fim, 4) a doutrina é a afirmação da verdade sobre um evento histórico, verdade sobre a interpretação da narrativa bíblica e verdade, pois exige um envolvimento pessoal ativo.

Uma das grandes contribuições do trabalho de McGrath está no capítulo três, no qual o autor apresenta suas quatro teses sobre a doutrina. Nos capítulos quatro e cinco, o autor analisa a influência do passado na forma de pensar e aborda o mito da autonomia da razão (supostamente uma mente que não sofre influências externas). Essa discussão é importante para o tema da crítica doutrinária, pois investiga as influências que a igreja sofreu durante o processo de formulação doutrinária e o quanto elas foram determinantes. 

Por se tratar de uma tradição, ou seja, as formulações doutrinárias são recebidas por nós de nossos predecessores, McGrath trata da autoridade que o passado tem sobre nós. As reflexões apresentadas são de vital importância para a vida da igreja, que precisa se relacionar e responder às questões atuais. O autor afirma que a influência do passado é maior quando não é percebida. Diferentemente do que é defendido pelos autores iluministas, que acreditavam na autonomia da razão, McGrath defende, assim como outros autores, ser impossível imaginar uma razão à parte da história. Essa afirmação é particularmente importante, pois os atores que participaram ativamente das construções doutrinárias possuíam influências internas e externas, além do entendimento cognitivo das Escrituras. McGrath também ressalta que, por mais que existam tais influências, não se pode afirmar que elas foram determinantes na formação doutrinária. 

Além disso, no capítulo cinco, McGrath faz um caminho histórico da construção do pensamento moderno cristão, apontando as influências de movimentos como o Renascimento, a Reforma e o Iluminismo. Embora seja o capítulo mais extenso da obra, nele, o autor consegue apresentar, resumidamente, um assunto amplo e multifacetado. 

No último capítulo, o teólogo apresenta algumas conclusões. Longe de ser uma prisão intelectual, o passado confere identidade à comunidade e nos dá maneiras de interpretar as Escrituras. Nas palavras do autor: “A história de Jesus de Nazaré, mediada a nós de forma narrativa por meio do Novo Testamento, traz consigo elementos históricos e ideológicos, afirmando certos padrões de crença e de comportamento para a vida da comunidade gerados por essa narrativa” (p. 199). Da mesma forma que as estruturas de conceitualidades nos restringem, também tornam possíveis insights negados a outros. 

Ainda, outra conclusão relevante é a percepção de McGrath sobre o futuro da doutrina. Embora pareça que as doutrinas não terão espaço no futuro, o autor defende que elas continuarão a existir, não apenas por uma reverência ao passado, mas também pelos desafios da atualidade que pressionaram formulações dessa natureza. 

Por tudo isso, a presente obra se trata, portanto, de uma excelente introdução à crítica doutrinária, com verdadeiro proveito para quem deseja começar os seus estudos na área. Em A gênese da doutrina, McGrath apresenta, sucinta e didaticamente, o problema da autoridade da doutrina e reflete sobre o processo de formulação doutrinária, considerando os aspectos teológicos, históricos e filosóficos.