Ensaio filosófico escrito por Hermann José Raposo Milhomem Filho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2025
Introdução
A busca pelo equilíbrio entre vida profissional e pessoal é um tema relevante e de grande interesse para trabalhadores inseridos em um mundo corporativo e um mercado de trabalho cada vez mais exigente por resultados e competitivo. Há uma constante pressão sobre os profissionais por melhoria de performance e desenvolvimento de habilidades comportamentais e técnicas. De mãos dadas à “vida profissional”, está a “vida pessoal”. Os profissionais são pessoas que têm família e uma vida fora do escritório, são maridos, esposas, pais, mães, entre outros, que precisam conciliar de maneira equilibrada esses dois universos, o profissional e o pessoal. No entanto, essa conciliação tem se demonstrado problemática. De acordo com um relatório da empresa Gallup publicado em 2024, os resultados mostram que 60% das pessoas se sentem desconectadas emocionalmente no trabalho, e outros 19% estão simplesmente infelizes1. Esse desânimo revela um problema maior: buscar equilíbrio é algo irrealista e insuficiente.
Diante disso, uma pergunta paira no ar: como alcançar o equilíbrio ideal nessa relação profissional e o pessoal? Será que isso é sequer possível? Essa é a proposta da série Ruptura, lançada pela Apple TV em 2022: reprogramar os cérebros humanos através de uma fragmentação e isolamento das memórias e da consciência dos trabalhadores em duas partes distintas e exclusivas, uma parte ativada durante o expediente e dentro do ambiente de trabalho, e outra parte reservada à vida pessoal. Que coisa mais incrível é essa solução! Sua utilidade brilha os olhos tanto dos empregadores quanto trabalhadores. No entanto, essa ficção também provoca reflexões filosóficas profundas sobre a natureza do ser humano e como ele se relaciona e lida com o trabalho e a vida pessoal.
O dualismo ontológico de Platão influenciou profundamente a cultura do Ocidente, em várias áreas, incluindo a religião, psicologia e a cultura popular. Obviamente, neste curto ensaio, não será tratado exaustivamente os aspectos e consequências dessa ideia platônica, mas se propõe a realizar uma crítica à proposta da série Ruptura a partir dela. Este ensaio poderia se encaixar na categoria de psicologia, ou moral e ética, até mesmo a antropologia, mas o tema é demasiado profundo para simplificá-lo em uma única categoria. Por isso, a proposta é dividi-lo concisamente em três partes: primeiro, será abordado o problema do desequilíbrio entre vida pessoal e profissional; em seguida, será apresentada, em linhas gerais, a solução sugerida pela série Ruptura; por fim, será apresentada a crítica dessa proposta à luz da ideia metafísica de Platão sobre o dualismo.
1. O problema: desequilíbrio entre vida e trabalho
Um quinto, ou 20%, da população ativa no mercado de trabalho global relata experimentar a solidão todos os dias, com esse número aumentando para vinte e cinco por cento entre aqueles profissionais que executam seus trabalhos de maneira remota. Mais especificamente no Brasil, quando os participantes de uma pesquisa foram perguntados: “Imagine uma escada com degraus numerados de zero na base até 10 no topo. Suponha que dizemos que o topo da escada representa a melhor vida possível para você, e a base da escada representa a pior vida possível para você. Em qual degrau da escada você diria que se encontra neste momento?”, a resposta média foi a metade da escada, nível 5. Quando perguntados: “Você sentiu raiva e estresse durante grande parte do seu dia de trabalho no dia de ontem?”, 46% disseram que sim. Os dados acima foram apresentados pela pesquisa realizada pela consultoria Gallup em 2024.
Um artigo da Forbes Leadership Strategy (2024) traz uma perspectiva mais fundo à questão e explora esse conceito de equilíbrio entre trabalho e vida pessoal como emergente na década de 1980, popularizado pelo movimento de libertação das mulheres, que, com razão, buscava melhores condições de trabalho, incluindo licença-maternidade e horários flexíveis. Embora esses objetivos fossem fundamentais, a ideia de equilíbrio acabou se tornando uma solução simplificada para um problema complexo. Ela sugere uma relação binária entre trabalho e vida, como se fossem forças opostas que precisassem ser equilibradas em uma balança. Na realidade, trabalho e vida não são entidades separadas – eles estão profundamente interligados. A ideia de equilíbrio dá a impressão de que podemos dividir nossa energia, atenção e sentimentos de forma igual entre trabalho e vida, alcançando um estado perfeito. Mas a vida é naturalmente imprevisível e cheia de mudanças, o que torna essa divisão rígida difícil de manter e o desafio central reside na concepção de equilíbrio que trata trabalho e vida como entidades opostas, quando, na realidade, ambas se entrelaçam na formação da identidade.
2. A solução: A ruptura do Ser
Já se passaram quase dois anos desde que a série Ruptura (Severance no original) foi lançada na Apple TV, mas sua proposta é muito interessante e instigante. Um aspirante a filósofo pode se perguntar ao refletir sobre a trama proposta por essa série: Quantas correntes platônicas, neoplatônicas e cartesianas fluem, inconscientemente, em nossa cultura? Ruptura gira em torno de uma misteriosa empresa chamada Lumon e o cenário é de um presente decorado de distopia que oferece aos funcionários um procedimento único de apagamento mental, separando suas memórias de trabalho das memórias pessoais. Isso permite que os funcionários se dediquem totalmente ao trabalho durante o expediente, sem qualquer bagagem emocional da vida pessoal. Enquanto estão no escritório, os funcionários “separados”, que a série os apelida de “innies” não têm lembrança de suas vidas fora do horário de trabalho e, por outro lado, quando estão fora do trabalho (“outies”), não têm consciência de quem são ou do que fazem no escritório. Os dois “eus” são separados um do outro, levando cada um a se perceber como um ente, um ser independente.
Embora compartilhem o mesmo corpo, esses dois “eus” não podem se comunicar entre si, exceto quando o eu externo, chamado de “outie“, escolhe gravar uma mensagem de vídeo para o eu do escritório, o “innie“, através do controle de um chefe que representa a corporação. Os innies não têm compreensão do trabalho que fazem, apenas que precisam concluí-lo, atingir as metas trimestrais e demonstrar lealdade inabalável à empresa. Os innies trabalham em um andar especial, dedicado aos “separados”, que aceitaram se submeter ao procedimento, esse andar fica em um nível subterrâneo e não tem contato com o mundo exterior. Todas as manhãs, os outies dirigem-se ao trabalho e entram no elevador que os leva para baixo, à caverna de sua ignorância. Eles não têm noção de onde vêm ou como são do lado de fora, embora mantenham uma boa dose de personalidade, inteligência e humanidade, o que os faz parecer e agir como seres humanos normais.
Essa é uma história de ficção científica sobre identidades múltiplas, porém desconectadas, que levanta questões sobre a natureza da mente, a construção e o funcionamento da identidade e as implicações éticas de um eu que reivindica controle sobre outro. Essa proposta da fragmentação do ser traz sentimentos mistos, pois, ao apresentar uma proposta de um utilitarismo radical e simplista, é ao mesmo tempo assustadora pelo seu grande impacto ético, moral e antropológico. Será que seria essa a solução para os problemas dos trabalhadores e empregadores na relação trabalho e vida pessoal?
3. O que isso tem a ver com a filosofia clássica antiga?
Para aprofundar a reflexão, é preciso recorrer às tradições filosóficas clássicas. Há um ponto fundamental da filosófica platônica de cuja compreensão dependem totalmente a nova configuração de todos os problemas da filosofia e novo clima espiritual que é o pano de fundo para os problemas da realidade e suas soluções. Esse ponto é descobrir a existência de uma realidade suprassensível, ou seja, de uma dimensão suprafísica do ser (uma espécie de ser não físico) da qual a filosofia anterior, pré-socrática, não tinha tido qualquer suspeita. (Kenny, 2011). Platão, em diálogos como o Fédon, defende que a alma pertence a um mundo de ideias, onde a essência é perfeita, imutável, eterna e não sofre fragmentação. A noção de dualismo, quando aplicada à separação entre corpo e alma, não implica a criação de múltiplas consciências, mas a elevação de uma unidade que transcende o físico.
Assim, a proposta de Ruptura, ao segmentar o eu, contraria essa ideia de uma identidade unificada. Heráclito, por sua vez, ensina que “tudo flui” e que a constante mudança é a essência do ser. Essa visão dinâmica sugere que a identidade humana é construída a partir da interação contínua entre diversos aspectos da experiência, impossibilitando uma divisão rígida. Parmênides complementa esse pensamento ao afirmar que o Ser é imutável, e qualquer percepção de mudança seria meramente aparente. Ao tentar dividir o ser em compartimentos, a série nega a continuidade e a integridade que fundamentam a existência. Uma abordagem que busque a integração, e não a fragmentação, dos diversos aspectos do ser pode oferecer uma alternativa mais viável para os desafios do equilíbrio entre trabalho e vida pessoal.
Considerações finais
É razoável supor que apesar do dualismo platônico ser verdadeiro e estabelecido, sua interpretação e aplicação podem se desenvolver em diferentes direções e contextos. Há um processo de ampliação e desenvolvimento dos conceitos que pode levar a extremos, como o apresentado na série, onde ocorre a fragmentação das realidades, e não é a intenção desse ensaio, correlacionar ipsis literis a proposta da série em sua inteireza com as ideias platônicas, seria uma distorção filosófica afirmar que o enredo da série é uma reprodução contextualizada para o ambiente de trabalho a partir de suas ideias. Este ensaio reconhece que, na série, a ignorância de um Eu em relação ao outro não foi natural e sim fabricada. Reconhece-se também, que Platão não dialogou sobre a existência ou a possibilidade de existência de duas razões, ou que duas consciências isoladas entre si possam coexistir plenamente. A série também propõe uma fragmentação de realidades, algo que não se observa nas propostas do famoso filósofo.
É interessante, no entanto, notar como os principais focos de interesse do pensamento contemporâneo frequentemente emergem de abstrações e do dualismo, embora em algumas situações possam extrapolar a intenção original do autor filósofo, o que parece ser o caso da fragmentação ontológica e separação das realidades na série Ruptura. Outro ponto relevante é a maneira como a cultura pop lida de maneira simplista com a condição humana, especialmente no que diz respeito a transtornos mentais e emocionais provocados pelos desafios do ambiente de trabalho, tais como o estresse e depressão, que costumam ser tratados de maneira parcial e superficial. Filmes como Matrix oferecem soluções artificiais, como pílulas mágicas que alteram a percepção da realidade. Já a série Ruptura propõe a fragmentação do Eu e das memórias como resposta aos distúrbios emocionais causados pela realidade humana de conciliar o ambiente de trabalho com a vida pessoal. Essas abordagens isolam os sintomas sem tratar as causas raízes mais profundas dos problemas. Se a cultura pop (séries, filmes) propõe uma resposta às inquietações da sociedade, ainda que como uma ficção radical, a seguinte pergunta é colocada diante nós: em uma realidade cada vez mais imediatista, pragmática e utilitarista, será que essa ficção científica um dia deixará de ser apenas uma fantasia e se tornará realidade?
1 State of the Global Workplace. GALLUP. Estados Unidos. Disponível em: https://www.gallup.com/file/workplace/645608/state-of-the-global-workplace-2024-download.pdf. Acesso em: 26 fev. 2025.
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Referências bibliográficas
AZEVEDO, Maria Teresa Schiappa. Platão: Fédon. 2 ed. Coimbra, Portugal: Livraria Minerva. 1988.
CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: O novo papel dos recursos humanos nas organizações. 4 ed. São Paulo, SP: Edições Loyola. 2011.
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental volume I: Filosofia Antiga. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro. 2 ed. São Paulo, SP: Edições Loyola. 2011.
REIS, Maria Dulce. Por uma nova interpretação das doutrinas escritas: a filosofia de Platão é triádica. KRITERION. Belo Horizonte, v. 1, n. 116, p. 382, dez. 2007.
State of the Global Workplace. GALLUP, Estados Unidos, Disponível em: https://www.gallup.com/file/workplace/645608/state-of-the-global-workplace-2024-download.pdf. Acesso em: 26 fev. 2025.
The Fallacy Of Work-Life Balance. FORBES, Estados Unidos. Disponivel em: https://www.forbes.com/sites/danpontefract/2024/06/02/the-fallacy-of-work-life-balance/. Acesso em: 27 fev. 2025.