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Sobre a cultura, Cristo é Senhor

Escrito por Mariana Guzzoni, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2023


O filósofo holandês Herman Dooyeweerd, em sua obra No crepúsculo do pensamento ocidental, discorre sobre os quatro motivos-básicos fundamentais que formaram o pensamento ocidental, a saber, matéria-forma, o motivo que dominou a filosofia grega; criação-queda-redenção, o motivo básico bíblico triádico; natureza-graça, o motivo que subjaz ao pensamento cristão no período medieval; e natureza-liberdade, o motivo que moldou as filosofias dos tempos modernos.

Assim, o motivo básico que impera para os cristãos é a tríade criação-queda-redenção, o único que revela a verdadeira raiz da natureza humana e desmascara os ídolos do ego humano, conforme Dooyeweerd afirma:

O segundo motivo básico do pensamento ocidental é o tema bíblico central e radical da criação, queda no pecado e redenção por Jesus Cristo como a Palavra de Deus encarnada, na comunhão do Espírito Santo. Este motivo básico é a força motriz espiritual central de todo o pensamento cristão digno deste nome (DOOYEWEERD, 2018, p. 132-133).

Contudo, os cristãos das mais diversas denominações acabaram recebendo influências de outros motivos básicos, de forma que muitas igrejas inseriram algo dessas outras força-motrizes. Consciente ou inconscientemente, abarcam em sua teologia influências do motivo básico grego dualista matéria-forma, onde todo o mundo material (incluindo as produções culturais) seria ruim e somente as coisas espirituais seriam boas.

Dessa forma, em muitos aspectos da cultura, os cristãos fazem um reducionismo da arte, da música, das poesias, etc, gerando um dualismo cultural, de forma que apenas podem fazer arte se a mesma for sagrada, se remeter de maneira expressa a Deus, ou, mais popularmente, se for “gospel”. Esse dualismo permeia a maneira de pensar, de enxergar a vida, de trabalhar, de se relacionar com o mundo, pois se entende que Deus não é favorável, sendo, na verdade, contrário, às formas de arte, músicas, poemas e cultura no geral. Entende-se, ainda, que o trabalho é um mal necessário nesta terra, exercido de forma secular, enquanto as reuniões e trabalhos na igreja são sagrados.

O dualismo que permeia muitas igrejas faz com que as mesmas enxerguem a vida por uma ótica distorcida e reducionista, onde tudo o que é produzido e desenvolvido por não cristãos é “do mal”, enquanto sagrado e bom é somente o que for feito invocando de forma clara e explícita o nome de Deus.

Ora, cultura é um mandato dado por Deus antes da Queda, demonstrando a alegria e prazer de Deus em ver o homem cultivar, produzir e desenvolver o seu mandato cultural, sua criatividade e vocação, assim como em ver o homem desfrutar de toda essa produção cultural. Assim, todo trabalho, dom, criatividade e expertise deveriam ser formas de glorificar a Deus.

Fato é que, com a Queda, não há que se falar em neutralidade da produção cultural, haja vista que todo pensamento e toda cultura têm uma raiz religiosa por trás, um pressuposto do coração ou voltado para Deus ou apóstata. No entanto, a Queda não anulou a graça comum de Deus que sempre esteve presente na humanidade. O pensamento dualista de bem x mal faz com que esses cristãos rejeitem a graça comum dada por Deus para a humanidade produzir, cultivar e se desenvolver. Aceita-se prédios, hospitais e rodovias construídos por não-cristãos, mas rejeita-se toda arte, principalmente músicas, produzida pelos mesmos.

De acordo com Dooyeweerd, o motivo básico do cristão jamais deveria ser o dualismo grego, mas a força-motriz criação-queda-redenção, na qual Cristo Jesus redime todas as coisas, pois é Senhor de tudo, inclusive da cultura. Assim, aos cristãos caberia o papel de exercer o mandato cultural não apenas pela perspectiva da graça comum dada na criação, mas pela perspectiva da redenção. Josué K. Reichow ensina em sua obra Renovai a vossa mente:

Uma vez que, para os reformacionais, o cristianismo é uma cosmovisão abrangente de toda a realidade, a ênfase dessa tradição está na soberania absoluta de Cristo sobre toda a vida, baseada na afirmação de uma harmonia completa entre o Deus criador e o Deus redentor. Intrínseco à filosofia cosmonômica de Dooyeweerd está o princípio teológico de um mandato cultural, cuja enunciação seria pré-queda. Há, portanto, valorização de uma teologia da criação.

Nessa direção, “a base e a compreensão do mandato cultural estão no resgate do relato da criação em Gênesis. O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus e recebe a ordem para desenvolver a cultura” (REICHOW, 2019, p. 132-133).

Importante salientar que o Evangelho não comissiona os cristãos para, a priori, transformar a cultura, mas, sim, para comunicar Cristo em tudo o que fazem, usufruem, desenvolvem e cultivam. A consequência disso será sempre uma transformação da cultura caída e fragmentada para uma cultura que aponte resquícios da restauração de Deus por meio do Evangelho.

Desse modo, a beleza de Deus deveria estar expressa em toda a sua criação, nas cores, nos aromas, nas melodias, na literatura, na ciência, nas artes, na comida e na bebida, bem como em toda a criatividade dada por Deus como dádiva ao homem. Porém, cientes de que tudo isso foi afetado pela Queda, os cristãos deveriam ter a certeza de que tudo também foi afetado pela Redenção de Cristo Jesus.

Quando os cristãos enxergam o mundo somente pela perspectiva da Queda, eles perdem de vista tanto a boa criação de Deus como a redenção, a restauração de tudo:

Uma vez que a criação é boa, visto ser obra do Deus criador de todas as coisas, suas diferentes dimensões expressariam a vontade dele para a criatura. Entretanto, juntamente com essa ideia, os neocalvinistas enfatizam a visão da queda no pecado como depravação total, como uma distorção da realidade criada.

(…) Diante dessa afirmação relacionada aos efeitos da queda, a tradição reformacional aponta para uma redenção total em Cristo. Tal redenção incluiria a esfera cultural e todo tipo de produção humana, que envolva a criatividade. Na medida em que a cultura deve ser afirmada como algo bom da criação, ela é tanto uma dádiva quanto uma tarefa a ser realizada (REICHOW, 2019, p. 134-135).

Certamente, ainda não se chegou à consumação de todas as coisas, quando a restauração completa e plena ocorrerá. No entanto, é possível experimentar a tensão do já e ainda não, pois Deus não está alheio a sua criação. Antes, é na sua criação que Ele se revela e deixou Seu povo para manifestar quem Ele é, Sua graça, beleza, bondade e verdade. Não se trata, portanto, de transformar a cultura em uma cultura gospel ou fazer com que a igreja seja restringida a um gueto gospel. Ao revés, cuida-se de cooperar com Cristo para que a sua beleza, bondade e verdade sejam manifestas em tudo. 

Todo pensamento, toda cultura, toda arte, toda música tem uma raiz religiosa fruto de um coração cujos compromissos são voltados para Deus ou são apóstatas. Assim, uma música, por exemplo, não precisa ser gospel ou evangélica (no sentido de sagrada), mas precisa traduzir a beleza, a verdade e a bondade de Deus. E até pessoas em rebeldia a Deus podem ter resquícios da beleza, bondade e verdade de seu Criador. Logo, verdade, bondade e beleza deveriam ser o filtro e o parâmetro do cristão para produzir e usufruir de boas músicas, artes, poemas, filmes e toda sorte de artefatos culturais.

Quando o cristão restringe a arte, principalmente a música, somente ao que é gospel, ocorre um reducionismo e, como consequência, uma absolutização de aspectos modais. O efeito disso é a idolatria de cantores e a fomentação de um mercado musical gospel cada vez mais rentável. Sobre isso, é oportuno trazer a contribuição de Josué K. Reichow:

Nessa direção, tal perspectiva pode gerar uma nova mentalidade e prática no que concerne à atuação dos cristãos na cultura brasileira, ainda marcada fortemente por um dualismo, o que faz com que os cristãos não se envolvam na produção de artefatos culturais significativos, a não ser de forma segmentada e específica, com uma produção intraeclesia, no que se convencionou chamar de mercado gospel. Além disso, o reconhecimento da graça comum pode servir como base para uma apreciação da cultura nacional que celebre a criação, ainda que não seja cristã. Tal fato poderia catalisar o envolvimento dos cristãos com a transformação da cultura. (REICHOW, 2019, p. 139)

Portanto, concluímos que os cristãos são chamados para exercer seu mandato cultural sem reducionismos de qualquer aspecto que seja da criação, sem absolutizá-los e sem produzir ídolos; eles são chamados a trabalhar na obra redentiva de Cristo que reverbera em toda a realidade criada. Portanto, os cristãos são chamados a reformar sua mente e renovar os pressupostos mais íntimos do seu coração, para, então, fazer arte, música, literatura e tantos outros trabalhos sem o dualismo grego e sem a falácia da neutralidade moderna, mas apenas cumprindo o seu papel criacional e o seu papel redentivo, os quais são inteiramente harmonizados em Cristo Jesus, o verdadeiro Senhor Soberano de toda a cultura. 


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Bibliografia

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. 1ª ed. Trad. Guilherme de Carvalho, Rodolfo Amorim de Souza. Brasília: Editora Monergismo, 2018, 276 p.

REICHOW, Josué Klumb. Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd. 1ª ed. Brasília: Editora Monergismo, 2019, 172 p.