Escrito por Valéria Caixeta Figueiredo, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
INTRODUÇÃO
Este é meu último artigo para o Invisible College, nesse ano de 2020.
Um ano sem precedentes, no qual a humanidade foi, mundialmente, pega “de surpresa” por uma Pandemia[1].
Ano de inúmeras dificuldades e superações. De reorientação e reorganização de metas e rotas, o que demandou criatividade e inventividade, dentre as muitas habilidades requeridas em um período de rápidas mudanças.
Por conta do caráter abrupto dessas mudanças, algumas questões, que antes pareciam distantes, passaram a fazer parte do universo de aprendizado e reflexão da maioria das pessoas, sendo muitas destas ligadas à tecnologia.
Questões relacionadas à aprendizagem e utilização de novas tecnologias no exercício de atividades em áreas como educação, saúde e até mesmo nas interações sociais, trouxeram à tona reflexões acerca da maneira como estas vêm sendo desenvolvidas e aplicadas, na medida em que, em muitos casos, deixaram círculos técnicos e passaram a fazer parte do universo de pessoas que se viram de um momento para o outro de frente a uma nova realidade.
Esses novos modelos de experimentação da realidade, a partir de um maior contato com novas tecnologias, produziram um misto de sentimentos, e observamos certa transformação cultural[2] pela qual passa a sociedade, nesse momento de atravessamento dessa mais nova crise.
Ao fechar esse ciclo de escritas, penso, portanto, que esse cenário esteja em conformidade com reflexões a respeito do desenvolvimento tecnológico, principalmente no que se refere ao tipo de uso que dele se faz, e qual o significado que vem adquirindo nesse cenário de incertezas e constantes transformações.
Para análise dessas relações, me apoiarei no pensamento do engenheiro e filósofo holandês Egbert Schuurman (1937-), em seu livro Fé, Esperança e Tecnologia (Ultimato, 2016) no qual aborda, justamente, a questão da fé no desenvolvimento tecnológico como via para soluções das mais diversas questões, além da obra Filosofia da Tecnologia (VERKERK, et al., 2018) para abordar a questão da relação entre tecnologia e abertura de significados na realidade.
Não obstante ao entendimento de que o desenvolvimento tecnocientífico, em si mesmo, não é algo ruim[3] ou danoso à humanidade, à natureza ou aos sistemas geopolíticos, compreende-se que certa postura ética precisa ser observada a fim de que esse desenvolvimento não se torne em um tecnicismo culturalmente incentivado[4].
De tal modo neste artigo, gostaríamos de pensar a respeito da questão da fé em relação às soluções tecnológicas, sem, entretanto, separá-las da fé confessional em Deus, aqui percebido e afirmado como a Origem de todas as coisas.
A QUESTÃO DA FÉ
Nossas expectativas para um futuro onde possamos encontrar uma vida “boa e satisfatória” recaem, ora sobre o progresso econômico, ora sobre o desenvolvimento de senso humanitário, ora sobre o progresso científico e tecnológico. Esperamos soluções as quais efetivamente nos “salvem” do caos distópico, que vemos na literatura e nos filmes de ficções futuristas[5].
Engenharia genética, de produção de alimentos, projetos de sustentabilidade ambiental, de políticas públicas, soluções econômicas que proporcionem uma melhor distribuição de renda, desenvolvimento da indústria de fármacos, de procedimentos estéticos, de aparelhos tecnológicos e Inteligência Artificial, estão em nosso horizonte de consumo e satisfação pessoal, tanto como garantia de qualidade de vida, quanto de conforto ou segurança em situações de crise.
Ou seja, temos fé que a ciência por trás de cada um desses itens (desejáveis) cumprirá com o seu papel nesse mister de nos proporcionar um futuro agradável (seguro). Por conta disso – de nossa fé se fundamentar em “coisas” frágeis – situações de crise, quando chegam de fato, abalam as estruturas, as quais julgávamos tão solidamente construídas[6].
De tal modo, ao expressar sua fé no desenvolvimento tecnocientífico- e trazendo em seu bojo a economia – as pessoas deixam de lado o que verdadeiramente pode lhes oferecer esperança: o fato “de que Deus surgirá e fará novas todas as coisas” (SCHUURMAN, 2016, p. 20).
A espera de soluções tecnocientíficas, advindas de uma ciência racionalizada e supostamente autônoma, como se ela mesma pudesse ser a fonte salvadora para tantas de nossas enfermidades, (sejam elas as infectocontagiosas, as econômico-sociais, ou as emocionalmente produzidas como efeitos colaterais), demonstra que o que possa vir a nos resgatar de um futuro caótico, onde predomina, sobretudo, a morte, é a tecnologia.
Essa visão de “controle” da realidade para solução de problemas, por intermédio do desenvolvimento tecnocientífico, é o que pode ser chamado de tecnicismo, e diz respeito à concepção da realidade como um mecanismo, ou seja, algo que pode ser medido e controlado, como fosse uma realidade automatizada, e assim passível de controle humano.
Um modelo reducionista que opera um empobrecimento da realidade, levando a que a abordagem tecnocientífica de resolução de problemas produza a fé nessa abordagem.
UMA VIDA BOA E SATISFATÓRIA
Segundo o professor Schuurman, o tecnicismo produz uma percepção distorcida de vários aspectos culturais e científicos. Por conta dessa distorção, as pessoas passam cada vez mais a perceber que as comodidades e as facilidades que as inovações tecnocientíficas oferecem, são, em si mesmas, as causas de “uma vida boa e satisfatória”[7] (SCHUURMAN, 2016, p. 10).
De tal modo, reflexões a respeito do que venha a ser de fato “uma vida boa e satisfatória” são deixadas de lado. O vazio espiritual produzido por esse estilo de vida tecno-utilitarista, ao mesmo tempo em que mina o pensamento filosófico, também afasta Deus da equação: desenvolvimento tecnológico + possibilidades de consumo = vida boa e satisfatória.
Assim, afoitas por conseguirem obter os recursos necessários para a aquisição de aparelhos tecnológicos cada vez mais atraentes, a maioria das pessoas deixa de empreender um autoexame que possa apontar para algo além de si mesmas, na busca por satisfação, que não seja a aquisição de tais aparelhos, com inovações tecnológicas, como eletroeletrônicos de ponta e gadgets[8], que lhes soam como garantidores de “uma vida boa e satisfatória”[9].
QUAL O SIGNIFICADO DE TUDO ISSO?
A questão da fé e da esperança da humanidade, em relação à prevenção e controle da realidade, depositadas no desenvolvimento técnico científico, bem como a percepção de que a aquisição de dispositivos ligados a tal desenvolvimento nos garantirá uma vida de satisfação, nos leva à outra questão: a do significado de todas as coisas.
A ciência contribui para que o ser humano perceba que existe certa ordem na realidade criada, entretanto, não informa a respeito do significado e propósito da existência da mesma.
Segundo a visão de mundo cristã, toda a criação aponta para Deus, e todas as coisas têm aí seu significado. De tal modo, entendemos que “coisas” não significam algo em si mesmas, mas sua existência, utilidade e funcionalidade, apontam para a maneira como podem “servir” a Deus, por intermédio da ordenação criacional, incluindo-se aí, tudo o que estiver ligado à tecnologia.
Sob este aspecto podemos perceber que, na medida em que a ciência colabora, de modo responsável (respeitando o próximo e a natureza, para a promoção do bem comum) para que o ser humano possa compreender, de modo cada vez melhor o entrelaçamento dos diversos aspectos da realidade criada, por intermédio dos desvelamentos de significados obtidos a partir do desenvolvimento tecnológico, o mundo passa a ser um lugar mais “confortável”[10].
Esse é o trabalho da humanidade na criação, por intermédio da tecnologia. É esse o “mandato cultural” ordenado por Deus à humanidade: abrir, desvelar o significado, até então “oculto” dos elementos, produzindo diferenciações culturais, de modo semelhante ao trabalho inicial de Deus de desvelar – de modo natural – a realidade criada.
Aqui está a grande beleza do desenvolvimento tecnológico à luz do entendimento do significado, em Deus, e todas as coisas: o chamado a desvelar o significado oculto das potencialidades dos elementos na realidade criada, e não somente a produção e uso exploratório/ materialista de todas as coisas.
CONCLUSÃO
A percepção da tecnologia como instrumento de desvelamento da realidade criada, de abertura do significado latente dos elementos, colocando-a como “serva” no trabalho de abertura de potencialidades na criação, seguindo o trabalho de Deus, desmistifica seu caráter salvacionista e autônomo, uma vez que é parte do ordenamento temporal da realidade criada, enquanto disciplina para a promoção do bem comum, segundo as ordenanças originais, promulgadas por Deus.
Desse modo, pensar se a tecnologia é boa ou ruim, na verdade é um falso problema. O que pode ser problematizado aqui é o reconhecimento de que ela possui uma direção, e empreender uma análise crítica a respeito de “para qual direção”, “para onde”, o desenvolvimento tecnológico tem apontado: para a (suposta) autonomia humana ou para Deus.
Aqui nos utilizamos da filosofia como ferramenta de nossas reflexões para pensar a respeito de como a tecnologia tem influenciado os modos de ser e estar no mundo, tanto dos seus desenvolvedores, quanto das pessoas que a consomem. Pensar se esses modos de ser e estar apontam para glorificação da ciência ou para a glória de Deus.
Sabendo que existem maneiras instrumentalistas, salvacionistas e idólatras de nos relacionarmos com a tecnologia, como cristãos que somos, precisamos estar atentos ao fato de que ela é “serva”. Nosso trabalho deve ser de aproximação com a tecnologia, como meio para desenvolver o potencial latente da criação de maneira responsável, orientando nossas práticas na direção correta.
De tal modo, assim termino esse artigo, em um momento tão singular, no qual a humanidade coloca esperanças em uma vacina (desenvolvimento científico), em um novo ano (contexto histórico-temporal), em uma “humanidade melhor” (psicologia, neurociências), acreditando que sua segurança física, econômica e emocional provém do progresso tecnocientífico de desenvolvimento de estratégias, ditas, de sobrevivência e atravessamento, durante esse período.
Não negamos todas essas possibilidades. Trabalhamos e nos instrumentalizamos para tudo isso, cada um de nós, em nossas próprias áreas de atuação. Mas nossa fé está depositada Naquele que pode nos dar esperança: o Criador de todas as coisas. O Único que pode desvelar o conhecimento além de todo o nosso entendimento. O significado último de nossa realidade e de tudo aquilo o que nos ultrapassa. A Ele toda a Glória e meu agradecimento por esse ano tão proveitoso.
Somente a Ele!
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[1] Pandemia de COVID-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, um vírus da “família” dos coronavírus, inicialmente identificado em Wuhan na China, e que veio a se espalhar mundialmente.
[2] Principalmente no uso da internet, a qual não é somente um outro canal de conteúdo, além da televisão ou do rádio, podendo ser percebida como uma nova maneira de comunicação/interação que tanto produz, quanto é produzida por transformações culturais.
[3] Com esta colocação não estamos querendo inferir que a tecnologia seja neutra. Sabemos que ela pode ser empregada de diferentes maneiras, sendo algumas um tanto quanto mais próximas (obedientes) à normativa divina e outras mais distantes, indo, até mesmo, na direção contrária.
[4] Percebe-se aqui uma questão central, inclusive no trabalho de desenvolvimento e aperfeiçoamento de estratégias de cuidado com a criação, o que não é um fim em si mesmo, mas parte de um programa que coloca em ação as ordenanças de Deus para nossas práticas na realidade – o que chamamos de “mandato cultural”.
[5] Principalmente literatura e filmes do subgênero ficcional, cyberpunk, que opõem uma alta qualidade tecnológica à uma baixa qualidade de vida humana.
[6] Assim como em 2020, ao passar por uma Pandemia, desencadeada por um organismo criado – um vírus – as diversas esferas da sociedade – que compõem a realidade criada – foram “sacudidas”, fazendo-se evidentes suas fragilidades, fraturas e deficiências. Assim também, cada um de nós – também criaturas – em nossas pequenas (mas significativas!) rotinas, fomos afetados em nossos próprios modos de ser e estar no mundo.
[7] Esta citação, que se encontra no Prefácio da edição em questão, é do engenheiro F.J. REINDERS.
[8] Durante esse período de Pandemia, o que temos observado é uma grande quantidade de oferecimentos de possibilidade de (suposta) aquisição de conhecimento no modelo “totalmente online e totalmente gratuito”, como chamariz para cursos e mentorias de todos os tipos. Assim a indústria de implementos como celulares, fones de ouvido, aplicativos diversos, dentre outros, ligados a esse universo, apresentaram crescimento econômico. Por outro lado observamos, por exemplo, uma parte da população com dificuldade para acompanhar aulas remotas do sistema público de ensino, por não possuírem dispositivos próprios para isso, seja um celular, um computador ou notebook, e nem mesmo acesso à internet. A título de ilustração, gostaríamos de citar um anúncio publicitário do final de 2019/ início de 2020, em um momento anterior à crise pandêmica, no qual o mote de um futuro bom e divertido se alia à aquisição de dispositivos: “O Futuro Está Aqui: Os Melhores Gadgets para 2020. Como diria aquela tradicional canção de Réveillon: ‘adeus ano velho, felizes dispositivos novos’. Depois das festas de final de ano, chegou a hora de você dar uma olhada no que há de novo no mercado dos gadgets e se atualizar nas últimas novidades tecnológicas que vão facilitar (e tornar mais divertido) o seu dia a dia em 2020.” (https://www.mycashback.com.br/feed/gadgets2020, acesso em 17/12/2020).
[9] Gostaríamos de deixar claro que nossa crítica não se dá em relação à aquisição de dispositivos ou aparelhos, ligados ao desenvolvimento de novas tecnologias. Como pessoas que creem, a partir de uma visão de mundo cristã, que todas as coisas são completas em Deus, por intermédio de Jesus. Nossa crítica se dirige à percepção destes como “meios” em si mesmos para que se venha a ter uma vida boa e satisfatória, como se a satisfação do ser humano pudesse ser completa pela aquisição de “coisas”, ao invés de se dar pelo encontro com o Deus Criador de todas as coisas. Ao alocar sua satisfação em “coisas”, a humanidade substitui um Deus por outro e acaba sendo “escravizada” pelos apelos materialistas deste último.
[10] Aqui esclarecemos que essa percepção de que o mundo fica mais confortável, a partir da abertura de significados por intermédio da tecnologia, se afasta do pensamento mecanicista de controle da realidade (o qual possuía raízes idólatras), na medida em que depositava, justamente nesse controle humano, sua esperança salvacionista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SCHUURMAN, Egbert. Fé, esperança e tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Trad. Thaís Semionato, Viçosa, MG: Ultimato, 2016.
VERKERK, Maarten Johannes [et. al.]. Filosofia da Tecnologia: uma introdução. Trad. Rodolfo Amorim Carlos de Souza, Viçosa, MG: Ultimato, 2018.