Artigo escrito por Paula Sales, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024
“Não existe verdade absoluta” é a máxima das ciências humanas e sociais. A profusão de pesquisas nas diversas áreas desejam apontam, a partir dos múltiplos resultados, como a realidade é complexa e como é possível que diferentes indivíduos atribuam significados tão distintos ao mesmo fenômeno. O pós-estruturalismo tem considerado a ética como aquele ajuntamento de concordâncias entre os homens, fruto dos acordos livremente estabelecidos e abertos para infinitas e recorrentes revisões, afinal, não há “lá fora”, ninguém a quem prestar contas, se é que “lá fora” possa haver alguma coisa. Assim, a liberdade de estabelecer verdades e contratos que melhor se adequem a nós se apresenta como o mote regulador da vida humana. Mesmo as leis de Estado, em sua rigidez, tornam-se um tanto quanto maleáveis e fluidas em nosso tempo .
Esse tipo de concepção enraizada na Teoria do Contrato Social de Thomas Hobbes é um veneno para a Igreja quando trazido como pressuposto de nossa prática de fé e nossa prática comunitária enquanto igreja. Nossa conversão a Cristo não é fruto de um acordo, de um contrato que firmamos com Ele, mas, sim, fruto de um pacto estabelecido e garantido por Deus, que nos faz receptores dos benefícios ofertados nessa aliança. Dentro desse contexto de aliança de Deus com sua criação, está a Escritura, que é o próprio discurso divino em ação no mundo. E essa Escritura, com suas promessas, maldições e exigências, também não é fruto de um acordo entre homens. Mais uma vez, os homens são recebedores e testemunhas do discurso de Deus. Considere como Vanhoozer nos ajuda a compreender essa questão de papéis:
A relação do crente com as Escrituras não é, portanto, uma relação de contrato e negociação. A teologia canônico-linguística não está tão interessada em descobrir o que os cristãos de hoje pensam sobre as implicações de seu compromisso de fé, mas sim em descobrir o que o documento da aliança exige da comunidade.1
Toda a Palavra de Deus vem a nós em caráter de exigente obediência. A Revelação não é passível de julgamento (como fez Eva), nem passível de instrumentalização a fim de “conquistar o mundo” e subjugá-lo2. A tarefa da igreja é praticar a Palavra. Nesse sentido, a obra Teologia Bíblica, de Geerhardus Vos, nos ajuda a perceber como essa exigência é de caráter criacional. A obediência não é estranha à natureza humana, mas, sim, à natureza caída. Ainda considerando o relato de Gênesis, Deus diz a Adão: “coma à vontade dos frutos de todas as árvores do jardim, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal”3.
Adão foi o último a ser criado. Deus plantou um jardim belo, rico e frutífero e colocou nele o homem. Adão recebeu de Deus todas as dádivas, benefícios e delícias, incluindo alguém à sua altura com quem pudesse se relacionar. No entanto, a ordem “não come da árvore do meio do jardim” foi recebida não como dádiva de Deus, como todas as outras coisas. Para o casal, o fruto parecia mais desejável do que a ordenança divina. O caminho para a desobediência de Eva foi o caminho do julgamento da exigência. Eva se permitiu reconsiderar a exigência diante do fruto e, reconhecendo coisas boas nele4, tomou, comeu e deu dele a Adão.
O conhecimento da Revelação a que Eva tinha acesso era muito diferente do que temos acesso hoje, mas, ainda assim, era suficiente para a obediência. Eva sabia que ela e Adão, o jardim e tudo o que conheciam, encontrava sentido e propósito no próprio Deus, o caráter teocêntrico da religião e da vida estava expresso no próprio Éden5. O problema de Eva não era a pouca revelação, o seu problema foi não considerar Deus alguém confiável, nem seus desígnios6. Sendo assim, podemos considerar duas coisas necessárias para a perseverança na obediência: saber o que Deus requer de nós e um coração comprometido com o amor a Deus.
Saber o que Deus requer de nós depende de um esforço legítimo de conhecer a Revelação7. Nesse sentido, a Reforma Protestante nos fornece uma base segura quando estabelece o Sola Scriptura como um dos seus fundamentos, defendendo que toda Revelação foi dada e que é possível compreendê-la a partir dela mesma. Esse não é um princípio difícil de entender quando partimos do reconhecimento de que a Bíblia é um conjunto ordenado de livros, que conta uma única história, que possui um Autor, um objetivo, início, desenvolvimento e fim. O fato da Bíblia ser um livro de fé não faz dela um livro esquisito do ponto de vista literário. Observe como a Bíblia abre seu longo discurso de 66 livros: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”8. Qualquer coisa dita pelo resto da Escritura depende dessa primeira afirmação direta. Essa é uma informação necessária para tudo o que virá depois.
Se brincarmos de leitores da Bíblia, podemos facilmente saltar do capítulo 1 de Gênesis para qualquer uma das histórias emocionantes do Antigo Testamento ou das narrativas dos milagres de Jesus no Novo Testamento e não entenderemos qual era a intenção de Deus com nenhum desses textos. Não basta abraçar ao Sola Scriptura sem despender o esforço digno de conhecer a Escritura tal como ela é, pois ela é o discurso divino em ação até hoje e o discurso divino9 não é aleatório e confuso. Conhecer o discurso de Deus é essencial para a obediência, pois é por meio da teologia que nos apropriamos da vida de Cristo e fazemos dela o nosso modo de vida10. Adequar nossa vida a vida de Cristo é o imperativo divino aos homens. A rejeição desse imperativo não significa a negação voluntária de estabelecer um contrato com um semelhante, significa, porém, posicionar-se diante do Criador como um rebelde do Seu Reino.
O cristão sabe que a realidade na qual vive não é um lugar neutro, onde pessoas decidem para si sistemas religiosos, valores e paradigmas para viver, e que após esse lugar neutro, Deus levará para si almas penadas que decidiram matricular-se na Sua escola ao invés de outra qualquer. Essa não é a realidade na qual vivemos. Não existe um panteão de deuses, nem prateleiras com verdades igualmente válidas. O mundo é complexo, sim, pois apenas Um é o Absoluto. O mundo plural encontra nEle seu centro unificador. A questão central da ética cristã não é, portanto, a obediência a um sistema, dentre vários, que se julga ser bom e por isso merece nossa filiação. Nem é uma questão de acordo comunitário sobre o bem, o belo e o real. A ética cristã pauta-se na obediência, na adequação da vida a vida de Cristo. Vos (2019) nos ajuda a compreender essa questão:
Geralmente se dá muito valor ao movimento puramente autônomo da ética, eliminando como indigno o comando de Deus que não é explicado e cujo motivo não é apresentado. Fazer o bem e rejeitar o mal a partir de uma compreensão de suas naturezas respectivas é uma coisa nobre, mas é ainda mais nobre fazê-lo por causa da natureza de Deus — e a coisa mais nobre de todas é a firmeza ética que, quando requerida, agirá a partir da ligação pessoal com Deus, sem inquirir a respeito dessas razões de entendimento mais difícil. O puro deleite em obedecer incrementa o valor ético de uma escolha.11
Em suma, o ponto fundamental da ética na vida cristã não é a satisfação mental de se perceber adequado e certo. Mesmo a “coisa certa” a ser feita, deve encontrar seu ponto fundamental no regozijo em Deus, na comunhão com Ele, na alegria do coração dEle. É interessante como C. S. Lewis discute a questão do treino das virtudes no ensaio A abolição do homem. É importante, defende Lewis, aprender a amar as coisas boas, pois é assim que um ser humano será capacitado a fazer o certo: amando as virtudes. Fazer o certo inicia pelo amor ao bem. Fazer o certo que Deus requer de nós, mesmo sem muita explicação, requer amor ao Sumo Bem. O treino do amor a Deus passa pelo reconhecimento da Sua presença constante e da comunhão que Ele estabelece conosco através de Cristo.
1 VANHOOZER, Kevin. O drama da doutrina.: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 157.
2 Ibid. p. 160.
3 Gênesis 2.16.
4 “A mulher viu que a árvore era linda e que seu fruto parecia delicioso, e desejou a sabedoria que ele lhe daria. Assim, tomou do fruto e o comeu” (Gênesis 3.6).
5 VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Trad. Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2019, p. 44.
6 Ibid. p. 53 e 54.
7 Estamos de acordo no que diz respeito à Revelação Natural ser o “segundo” livro de Deus. Focamos aqui na Revelação Especial por ser nossa fonte de discurso divino que lança luz sobre a Revelação Natural.
8 Gênesis 1:1.
9 VANHOOZER, op. cit., p. 194.
10 Ibid., p. 29.
11 VOS, op. cit., p. 49.
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Referências
LEWIS, C. S. A abolição do homem. Tradução: Gabriele Greggersen. 1 ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017. 128 p.
VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. Tradução: Alberto Almeida de Paula. 2 ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2019. 496 p.
VANHOOZER, K. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.