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Tomando decisões diante das incertezas: um paralelo de princípios hermenêuticos para engenheiros na avaliação de barragens

Artigo escrito por Marcela Moreira Marques e Souza, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


A tragédia do rompimento da Barragem I, localizada em Brumadinho, Minas Gerais, aumentou naturalmente a desconfiança em todo o país sobre as barragens. Houve também um aumento considerável das exigências por parte da legislação de documentação, comprovando a estabilidade dessas estruturas. Diante desse cenário, as mineradoras começaram também a buscar soluções alternativas para disposição dos rejeitos. 

De fato, há um risco inerente às barragens e, consequentemente, um risco de exposição à população, à infraestrutura e ao meio ambiente nas proximidades de uma barragem. Mesmo estabelecendo medidas de redução deste risco e atendendo a critérios de engenharia consagrados, permanece um risco residual1. Devemos, então, na limitação de nossa técnica e conhecimento, fazer barragens, afinal? Seria esta uma exceção ao mandato cultural de Gênesis 1:28?2

Segundo Victor de Mello, “engenharia implica em ação baseada na decisão a despeito das incertezas”3. Assim, é importante ponderar como um engenheiro de barragens deve interpretar o desempenho de uma barragem, ou seja, como avaliar se os riscos de uma barragem se encontram dentro de uma faixa negligível, No texto a seguir, serão apresentados paralelos entre a avaliação de segurança de barragens e princípios aplicados à hermenêutica, que é, em resumo, “a disciplina que lida com os princípios da interpretação”4.

A contextualização histórica da barragem

O princípio hermenêutico básico é que “todo texto deve ser compreendido dentro de seu contexto”5, inclusive o contexto histórico. De forma similar, não é possível avaliar de forma confiável o desempenho da barragem sem o devido conhecimento da progressão histórica das anomalias e intervenções realizadas na estrutura até o momento da avaliação. Assim, é necessário traçar uma linha do tempo dessas ocorrências antes de iniciar a avaliação da estrutura em si.

É importante considerar também a “idade” da barragem, visto que a maior porcentagem de falhas ocorre antes da estrutura completar 5 anos de operação. Por outro lado, à medida que as barragens se tornam mais antigas, elas naturalmente estão mais propensas a falhas, se não forem atualizadas6. Portanto, quanto mais antiga é uma barragem, maior a probabilidade da necessidade de adequação à luz do conhecimento atual.

Além disso, o próprio engenheiro envolvido na avaliação também deve buscar se atualizar, afinal, os guias e manuais técnicos de engenharia evoluíram ao longo das últimas décadas, juntamente com o conhecimento desse tipo de estrutura. Isso fica evidenciado pelas estatísticas de falhas de barragens, desde 1950 tem havido uma redução do número de rupturas de barragens7.

As fontes primárias e secundárias de avaliação de barragens

De forma análoga ao processo de pesquisa acadêmica proposto por Michael Kibbe8, há dois tipos de fonte ou base de dados do engenheiro: as fontes primárias e as secundárias. As fontes primárias são os dados brutos, compostos pelo conjunto de informações diretas que caracterizam a barragem em termos espaciais (topografia e geometria), geológicos (incidência de materiais antrópicos e naturais) e geotécnicos (resistência, permeabilidade e deformabilidade dos materiais), bem como os aspectos hidrometeorológicos (dados de chuva e vazão) e dados diretos de monitoramento (pressão, nível d’água e deslocamentos).

As fontes secundárias utilizam as fontes primárias para produzir trabalhos diversos sobre a barragem, considerando as intervenções na estrutura até o momento de sua elaboração.O trabalho do engenheiro começa pelas fontes secundárias, já que elas oferecem um bom panorama sobre o histórico da barragem, bem como as percepções de outros avaliadores. No entanto, quando o engenheiro já obteve bom conhecimento das fontes secundárias, a avaliação passa para as fontes primárias. No fim das contas, o julgamento do engenheiro precisa ser orientado pelas fontes primárias. Diferentemente da hermenêutica bíblica, não devemos partir do pressuposto de que possuímos uma fonte infalível ou canônica, mas, sim, que essa base de dados deve ser julgada apropriadamente quanto à sua suficiência e à sua qualidade.

Caso o engenheiro identifique a insuficiência ou dúvidas sobre a confiabilidade dos dados brutos de uma barragem, é sua responsabilidade alertar ao proprietário, de maneira que ele tenha oportunidade de obter novas e confiáveis fontes primárias. Nesse quesito, tanto o proprietário da barragem como o engenheiro devem ser cuidadosos, porque a insuficiência de fontes primárias leva ao desconhecido, e nem sempre o desconhecido está a favor da segurança. De maneira análoga, é como se a Bíblia, a fonte primária da hermenêutica bíblica, estivesse restrita apenas ao Antigo Testamento: 

podemos assemelhar o Antigo Testamento a uma pintura que Deus está desenhando sobre a tela da História. Enquanto o quadro estiver incompleto, poderá ser desenvolvido de diversas maneiras – ou seja, está aberto para diversas interpretações. Mas quando a pintura tiver recebido sua forma definida e as cores finais com o ensino do Novo Testamento sobre a primeira e a segunda vindas de Cristo, a ambiguidade inerente ao Antigo Testamento se resolve.9

Por outro lado, o engenheiro precisa de extrema cautela para não descartar fontes primárias que parecem não confiáveis sem fortes indícios para proceder assim. Aqui, então, cabe a reflexão: uma vez que a base de dados brutos confiáveis de uma barragem é limitada, o julgamento do engenheiro deveria pender para o conservador ou arrojado? Creio que a pergunta responde por si mesma.

Como exemplo disso, pode-se citar o aumento de falhas nas últimas décadas pela insuficiência do extravasor, atingindo 50% dos casos de ruptura após o ano 2000. Esse aumento foi atribuído pelo ICOLD ao fato de que muitas barragens foram projetadas com uma cheia de projeto menor que a requerida, porque os dados hidrometeorológicos eram escassos e os métodos de cálculo eram inferiores aos padrões atuais e, logo, as cheias eram subestimadas.10

Conclusão

O trabalho do engenheiro de barragens envolve incertezas diante das quais é preciso tomar uma decisão. Apesar dos riscos inerentes a este tipo de estrutura, há princípios da hermenêutica que podem auxiliar o engenheiro, de forma análoga, a fazer um julgamento adequado do desempenho de barragens. Em resumo, é preciso ser cuidadoso na investigação da contextualização histórica da estrutura, conhecimento das fontes secundárias e julgamento das fontes primárias em relação à sua suficiência e à sua qualidade. Além disso, o engenheiro tem o dever de manter atualizado o seu próprio conhecimento conforme a evolução do estado da arte.

Jason Baehr, em seu trabalho The Inquiring Mind: On Intellectual Virtues and Virtue Epistemology (2012) propõe agrupamentos de virtudes intelectuais chave para o contexto da investigação, ou seja, “uma busca ativa e intencional da verdade” (BAHER, 2022). Dentre essas virtudes intelectuais, pode-se destacar a seguinte sequência tanto para uma boa hermenêutica como no processo de investigação do desempenho de uma barragem: reflexividade, observação cuidadosa, consistência, integridade intelectual, flexibilidade intelectual e perseverança. Portanto, o engenheiro precisa também desenvolver virtudes intelectuais para tomar decisões que favoreçam a segurança das barragens.


1 Risk Exposure and Residual Risk Related to Dams. FEMA, 2018. Disponível em: <https://www.fema.gov/sites/default/files/2020-08/fact-sheet_risk-exposure-residual-risk-related-to-dams.pdf>. Acesso em 31 de janeiro de 2024.

2 Gênesis 1:28 (ARA).

3 DE MELLO, V. F. B. Reflections on design decisions of practical significance to embankment dams. Géotechnique 27, No 3, 1977. p.279-280. Tradução minha.

4 KAISER; SILVA, apud CARNEIRO, Vanessa Soeiro. Por uma hermenêutica abrangente: o fazer hermenêutico aplicado às crianças. Invisible College, 2022. Disponível em: <https://theinvisiblecollege.com.br/por-uma-hermeneutica-abrangente-o-fazer-hermeneutico-aplicado-as-criancas/>. Acesso em 31 de janeiro de 2024.

5 GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do Antigo Testamento.Trad. Elizabeth Gomes. Editora Cultura Cristã, p. 91. Edição do Kindle.

6 ICOLD Incident database Bulletin 99 update – Statistical analysis of dam failures. Final Draft, 2019 (p. 22). Disponível em: <https://www.icoldchile.cl/boletines/188.pdf>. Acesso em 31 de janeiro de 2024.

7 Ibid, p. 20.

8 KIBBE, Michael apud DULCI, Pedro Lucas. Slides do Curso Jardinagem Cósmica. Aula 08 – Seleção do Tópico – Identificando aquilo que me espanta e me faz pensar, 2024, slide 107-108.

9 GREIDANUS op. cit., p. 86.

10 ICOLD op. cit., p. 46.

11 BAEHR, Jason apud DULCI, Pedro Lucas. Slides do Curso Jardinagem Cósmica. Aula 05 – Pesquisa com Virtude – Das responsabilidades epistêmicas às virtudes intelectuais, slide 65-67.


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Referências

Risk Exposure and Residual Risk Related to Dams. FEMA, 2018. Disponível em: <https://www.fema.gov/sites/default/files/2020-08/fact-sheet_risk-exposure-residual-risk-related-to-dams.pdf>. Acesso em 31 de janeiro de 2024.

DULCI, Pedro Lucas. Jardinagem Cósmica: Aula 05 – Pesquisa com Virtude – Das responsabilidades epistêmicas às virtudes intelectuais. Invisible College. Goiânia, 2024.

DULCI, Pedro Lucas. Jardinagem Cósmica: Aula 08 – Seleção do Tópico – Identificando aquilo que me espanta e me faz pensar. Invisible College. Goiânia, 2024.

BÍBLIA SAGRADA. Versão de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

CARNEIRO, Vanessa Soeiro. Por uma hermenêutica abrangente: o fazer hermenêutico aplicado às crianças. Invisible College. 2022. Disponível em: <https://theinvisiblecollege.com.br/por-uma-hermeneutica-abrangente-o-fazer-hermeneutico-aplicado-as-criancas/>. Acesso em 31 de janeiro de 2024.

DE MELLO, V. F. B. Reflections on design decisions of practical significance to embankment dams. Géotechnique 27, No 3, 1977. p. 279-280. Tradução minha.

GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do Antigo Testamento. Trad. Elizabeth Gomes. Editora Cultura Cristã. Edição do Kindle.

ICOLD Incident database Bulletin 99 update – Statistical analysis of dam failures. Final Draft, 2019 (p. 22). Disponível em: <https://www.icoldchile.cl/boletines/188.pdf>. Acesso em 31 de janeiro de 2024.