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Scientia e sapientia: como encenar a doutrina com a mente e o coração

Artigo escrito por Anne Calland, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Introdução

A recente pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo instituto Ipsos, com 19.731 entrevistados pelo mundo, demonstrou que acreditar em Deus não significa necessariamente ser religioso. No Brasil, foram ouvidas cerca de mil pessoas, das quais 89% disseram crer em Deus, ou em um poder superior, enquanto 76% afirmaram seguir uma religião. Entre os brasileiros religiosos, 70% disseram ser cristãos (católicos, evangélicos e outras denominações) e 5% são filiados a outras religiões, enquanto 20% disseram não ter uma religião e 5% das pessoas preferiram não responder (BBC NEWS, 2023).

Em 2020, uma pesquisa do Datafolha indicou que 31% da população brasileira se declarava evangélica. Enquanto isso, um estudo do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cepid) da Universidade de São Paulo (USP) apontou que o número de templos protestantes passou de 62,8 mil, em 2010, para 109,5 mil, em 2019. Da mesma forma que cresceu, o protestantismo brasileiro também se diversificou, sendo categorizado pelos pesquisadores em três grupos principais: tradicionais (ou missionários), pentecostais e neopentecostais (BBC NEWS, 2023).

No entanto, observa-se que o crescimento exponencial não parece ser acompanhado pelo aprofundamento e robustecimento da teologia pregada e praticada pelos que se dizem evangélicos no Brasil. As igrejas brasileiras parecem oscilar entre três formas de conceber a doutrina: teologia propositivo-cognitivista,  eminentemente teórica, teologia expressivista-experiencial, focada na subjetividade, e teologia linguístico-cultural, centrada nas práticas eclesiais. Tais abordagens reducionistas terminam por reacender a aparente dicotomia entre teoria e prática na teologia cristã, gerando a impressão de que o nocivo contraste entre doutrina e vida é real. 

Em contrapartida, Kevin Vanhoozer professor de teologia sistemática na Trinity Evangelical Divinity School, em Chicago, Estados Unidos, em sua obra O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã, propõe a superação dessas visões ao apresentar sua teologia canônico-linguística. Diante disso, este artigo visa analisar como a proposta apresentada por Vanhoozer de conciliar scientia e sapientia pode contribuir para que a igreja brasileira aprenda a deleitar-se em Deus e glorificá-lo.

A metáfora do teodrama

Dado que a igreja contemporânea não foi testemunha direta da presença de Cristo, surge a indagação sobre para onde ela deve orientar sua fé e buscar uma compreensão mais aprofundada do que professa. A partir da metáfora teatral, Vanhoozer propõe uma reavaliação metodológica das Escrituras, da doutrina e da prática cristã, abordando-as sob a perspectiva do drama e da encenação.

O autor dedica sua obra a explicar como oevangelho — autodoação de Deus em seu Filho por meio do Espírito — é inerentemente dramático, uma questão de sinais e discursos, ação e sofrimento” (VANHOOZER, 2016, p. 34). Em seu livro, a Bíblia é percebida como instrumento da economia comunicadora do Deus trino e uno, não se limitando meramente à revelação de informações, mas se tratando de práticas comunicadoras divinamente comissionadas, às quais o Espírito conduz a igreja, para que esta possa participar do teodrama e obter entendimento (VANHOOZER, 2016, p. 245).

Desse modo, encenar o teodrama não se restringe à esfera intelectual do crente, mas compreende uma convocação do leitor a fazer parte do que Deus está realizando no mundo. Conforme Vanhoozer destaca: “o drama da doutrina visa a um discurso verdadeiro e uma ação correta: é para a glória de Deus que tudo se fala, tudo se pratica” (VANHOOZER, 2016, p. 245). Como explica João Calvino, a vida cristã não se reduz à declaração verbal, pelo contrário, envolve vivência íntima e piedosa, não especulativa, mas existencial:

Temos dado o primeiro lugar à doutrina, na qual se contém nossa religião, uma vez que nossa salvação tem nela o ponto de partida. Mas, é necessário que ela nos seja penetrada no coração e nos seja traduzida no modo de viver, e nos transforme a tal condição que não nos seja infrutífera. Se com razão os filósofos se inflamam contra aqueles que, professando uma arte que deva ser-lhes a mestra da vida, a convertem em falatório sofístico, e os excluem ignominiosamente de sua congregação, com quanto mais razão teremos de detestar esses sofistas fúteis que se contentam em tagarelar o evangelho com os lábios, evangelho cuja eficácia deveria penetrar nos mais profundos afetos do coração, arraigar-se na alma e afetar o homem por inteiro, cem vezes mais do que as frias exortações dos filósofos (CALVINO, 2006, p. 158).

Assim, a teologia tem uma tarefa dupla: “ser uma scientia exegética e uma sapientia prática” (VANHOOZER, 2016, p. 245). Com a primeira, o teólogo entende a cruz de Cristo sob a ótica do teodrama mais amplo, com a segunda, ele se apropria de sua identidade em Cristo.

Scientia: a exegese do cristodrama

Kevin Vanhoozer explica que o cânon é considerado normativo para a teologia cristã, porque esta diz respeito à relação pactual de Deus com a  humanidade e é o cânon que documenta essa aliança (VANHOOZER, 2016, p. 151). Assim, é primordial fazer a exegese do texto sagrado, buscando o uso que Deus faz do texto. Não se trata apenas de analisar o conteúdo do que Deus disse, mas “discernir a intenção comunicadora por meio da análise linguística de um texto em seus contextos canônico, literário e histórico” (VANHOOZER, 2016, p. 265).

Aqui reside a falha da abordagem teológica propositivo-cognitiva: sugerir que é possível ser um teólogo competente apenas dominando a linguagem e a literatura dos textos canônicos. A suposição de que é suficiente retirar abstrações do significado do texto e organizá-lo em um sistema conceitual é falha. Como resultado deste método, frequentemente obtém-se um conhecimento formal e rígido, por diversas vezes utilizado como ferramenta de divisões e disputas de poder.

Por sua vez, na metodologia canônico-linguística, é necessário estar atento tanto à pluralidade de ações quanto de contextos. “O drama é considerado dialógico: uma conversa de aliança entre a Palavra de Deus e as palavras de profetas, rei, sacerdotes, apóstolos, discípulos, crentes e incrédulos” (VANHOOZER, 2016, p. 287). Assim, sendo diversas as vozes e os gêneros literários, a interpretação de cada texto requer uma consideração minuciosa da complexidade literária e dos fatores históricos. Além disso, transcende a mera compreensão histórico-gramatical, propondo a exegese como vivência das práticas canônicas. Em suma, como explica Vanhoozer:

Ação comunicadora divina é a melhor classificação, e há vários motivos para isso: (1) ela supera a dicotomia pessoal/propositivista, visto que ação comunicadora é tanto “dizer” quanto “fazer”; (2) ela corresponde à descrição bíblica de Deus como agente comunicador que faz muitas coisas com as palavras além de transmitir conhecimento; (3) ela explica melhor a diversidade existente nas próprias Escrituras, isto é, a pluralidade de forma literárias; (4) ela enriquece a noção de autoridade canônica ao enfatizar que a igreja ocupa-se não só do conteúdo propositivista (i.e. verdades reveladas), mas de todas as coisas que Deus está fazendo pela via da comunicação nas Escrituras para administrar sua aliança; (5) ela nos incentiva a ver a Bíblia como meio pelo qual nos relacionamos pessoalmente com Deus e temos comunhão com ele” (VANHOOZER, 2016, p. 293).

Desse modo, ocupar-se do cânon é deixar-se ser ocupado pela presença e ação comunicadora de Deus, envolve ver, sentir e provar a verdade de Jesus Cristo, revelada nos diversos textos bíblicos, indo para além da intratextualidade e envolvendo-se com o mundo exterior.

Sapientia: a continuidade do cristodrama

A perspectiva sapiencial da teologia enfatiza a íntima conexão entre conhecimento e amor. Nesse sentido, a teologia não apenas fornece o entendimento sobre o teodrama, mas também instrui a viver o caminho, a verdade e a vida. Como escreve o apóstolo João, em sua primeira epístola:

Ora, sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele, verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou (1 Jo 2:3-6).

Desse modo, participar apropriadamente do drama da redenção exige uma resposta adequada tanto ao texto bíblico quanto à diversidade de contextos contemporâneos nos quais a igreja está inserida (VANHOOZER, 2016, p. 256). Diante desse desafio, é necessário evitar dois extremos que se candidatam a resolver a questão: de um lado, os que tentam recriar o cristianismo primitivo e, de outro, aqueles que deixam a contemporaneidade controlar a teologia. 

Por um lado, os primeiros não conseguem reproduzir com fidelidade os padrões de ação presentes na Bíblia e falham em lidar com situações inéditas da atualidade. Os segundos, por outro lado, concentram-se em ajustar as Escrituras à experiência humana, em vez de tentarem conformar a experiência humana à palavra que a antecede (VANHOOZER, 2016, p. 269).

A proposta canônico-linguística estabelece que, para o cristianismo ser encenado corretamente hoje, é preciso fidelidade servil e liberdade criativa. Assim, a teologia, como forma de razão prática canonicamente ordenada, apresenta as seguintes características: é prosaica, conectando-se com o ordinário e buscando enxergar a história de Deus envolvida na integralidade da vida. É fronética, direcionando-se à ação, traduzindo o conhecimento de Deus na prática. E é profética, porque orienta a vida de acordo com a realidade escatológica do evangelho (VANHOOZER, 2016, p. 323).

Simon J. Kistemaker, ao comentar o texto bíblico de 1 João 2:3-6, afirma que:

Conhecer Deus implica aprender sobre ele, amá-lo e também experimentar o seu amor. Adquirimos conhecimento de Deus quando nos esforçamos para fazer sua vontade nas experiências reais da vida. Conhecê-lo, portanto, significa viver em perfeita harmonia com ele ao obedecer à sua lei (KISTEMAKER, 2006, p. 339).

Assim, a finalidade da teologia canônico-linguística é capacitar o discípulo, em qualquer circunstância, a discernir e aplicar Cristo como a sabedoria prática de Deus. “A teologia fornece direções para deliberar bem a respeito do que Deus fez em Cristo e de como devemos viver à luz do evangelho a fim de viver bem com os outros diante de Deus” (VANHOOZER, 2016, p. 339).

Conclusão

Nenhum período, cultura ou denominação consegue encenar fielmente o teodrama. Tanto o racionalismo, que interpreta a fé através das verdades universais da razão, quanto a busca por uma experiência religiosa mística, e ainda o ativismo que tenta demonstrar amor através de obras de justiça, revelam-se insuficientes para conceber o desenvolvimento de uma teologia que esteja simultaneamente enraizada no cânon e sensível ao contexto contemporâneo.

Conforme fartamente demonstrado por Kevin Vanhoozer, a doutrina fornece direção para a continuação do teodrama nas novas situações culturais. A teologia é o projeto de corresponder, com palavras e ações, ao que é/está em Cristo. Quando os discípulos vivem a realidade da criação renovada, eles participam da verdade, bondade e beleza de Jesus (VANHOOZER, 2021, p. 161).

A abordagem canônico-linguística, com todos os seus pormenores e desafios, precisa ser uma espécie de horizonte a ser alcançado por cada comunidade cristã, valorizando as práticas locais da igreja, mas sempre submetendo a experiência à verdade, sendo orientada e iluminada pela doutrina bíblica, recuperando o drama teológico através de uma perspectiva canônica de totalidade das Escrituras (MIGUEL, 2024).

Sem dúvidas, será notável a mudança se a igreja brasileira utilizar-se da abordagem canônico-linguística para, finalmente, obedecer à ordem de Romanos 12.2: “e não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.


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Referências Bibliográficas

BBC NEWS BRASIL. O que explica a multiplicação de templos evangélicos no Brasil. BBC, 12 jul. 2023 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgl7x0e0lmo/. Acesso em: 03 fev. 2024.

BBC NEWS BRASIL. Por que o Brasil está no topo de ranking de países onde mais se acredita em Deus. BBC, 11 jul. 2023 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29r21r69j8o/. Acesso em: 03 fev. 2024.

BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA. Almeida Revista e Atualizada. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil. São Paulo: Cultura Cristã, 2018. 2240p.

CALVINO, João. As Institutas. Tradução: Waldyr Carvalho Luz. Edição Clássica, vol. 3. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2006. 464 p.

KISTEMAKER, Simon J. Tiago e Epístolas de João: Comentário do Novo Testamento. Tradução: Susana Klassen. 1  ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2006. 560 p.

MIGUEL, Igor. Fórum Avançado 01. Invisible College, 2024. 1 vídeo (1:21:28). Disponível em: https://hubinvisiblecollege.com.br/course/tutoria-avancada-2024.

NUNES, Mateus de Matos. O conceito de ortodoxia cristã na teologia canônico-linguística: uma proposta de superação dos reducionismos interpretativos por Kevin Vanhoozer. Invisible College, 21 fev. 2020. Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/o-conceito-de-ortodoxia-crista/. Acesso em: 04 fev. 2024.

RIGOLIN, Mateus Victor. Teologias em cenas ordinárias. Invisible College, 10 fev. 2022. Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/teologias-em-cenas-ordinarias/. Acesso em: 04 fev. 2024.

VANHOOZER, Kevin J. e STRACHAN, Owen. O pastor como teólogo público: recuperando uma visão perdida.. Tradução: Márcio L. Redondo. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2021. 256 p.

VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 512 p.