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Facetas do gnosticismo contemporâneo

Artigo escrito por Aimeê Eduarda Vieira Borges, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024


Introdução

A jornada do herói, padrão narrativo de tantas ficções, tem sido cada vez mais inserida nas histórias cotidianas, com diálogos que seguem a seguinte estrutura: uma pessoa sai a uma aventura, enfrenta uma crise, recebe um grande ensinamento e se transforma através da experiência, palestras de negócios, e discursos políticos. Conversas comuns são conduzidas por esta trajetória, formando o imaginário que cerca parte da sociedade. 

Assim, surgem figuras públicas emblemáticas e polêmicas, que instruem a partir destes arcabouços, com lições de vida que consideram imprescindíveis. A maioria de seus ensinamentos são encaixados em dramatizações de histórias pessoais e íntimas, de onde surgem grandes jargões, como “deixa ele acessar”, “este é o código”, “baixar o download”, “destrave a sua mente”, mobilizando o grande público. Estas personas assumem um lugar único, de sábios, intelectuais e vencedores, marcando seu discurso de um palavreado extremamente cognitivista. Elas constroem a imagem de detentores de uma verdade especial. 

De modo muito sutil, a igreja vem aderindo a este modelo expositivo, cujas pregações são cercadas de pausas dramáticas, repetição de palavras, interação com a plateia e longas histórias pessoais que trazem grandes ensinamentos. Algumas destas estratégias são artefatos importantes da retórica e, em si, são bons instrumentos, mas, ao serem deturpadas por aqueles que as utilizam, trazem grandes perdas ao ambiente eclesiástico, pois o público, encantado pela utopia, é apresentado a áureas superiores, cujas preleções são frutos de uma revelação maior que lhe fora entregue, ao qual ninguém jamais havia pensado, algo secreto, que pessoas simples não teriam acesso. Antes, seria necessário que estes interviessem e os entregassem. Igualmente, é possível notar como o desenvolvimento da doutrina sagrada enfrentou tal cenário em tempos passados e como o desdobramento destes empreendimentos influenciaram no surgimento de uma das mais antigas heresias, o gnosticismo. 

As origens do gnosticismo

O gnosticismo foi um sistema de pensamento que objetivava atingir a verdadeira gnose, ou conhecimento verdadeiro (FREZZATO, 2018, p. 43). Aplicado ao cristianismo, a salvação seria alcançada pelo conhecimento de determinados ritos e verdades, apreendidas por uma intelectualidade correta e obras cognitivas. As origens do gnosticismo estão associadas à filosofia antiga de Platão, à literatura judaica e aos escritos apócrifos do cristianismo primitivo (FREZZATO, 2018, p. 43). Enquanto precursor da filosofia grega, Platão postulou que o verdadeiro conhecimento não estaria no mundo sensível, mas no mundo das ideias. Para alcançá-lo, as pessoas teriam de se desfazerem dos sentidos e serem iluminadas pelas ideias perfeitas já adicionadas ao homem de forma inata. No entanto, não seriam todos os que conseguiriam realizar tal empreendimento, somente alguns eleitos (FREZZATO, 2018, p. 45). Já a influência judaica para o estabelecimento do gnosticismo estava no entendimento que o conhecimento verdadeiro da lei de Deus dependia de uma interpretação feita por alguns eleitos e iniciados (SESBOUÉ; THEOBALD, 2006, p. 39). Os escritos deuterocanônicos que acompanham esse sistema foram Evangelho de Felipe, o Evangelho de Pedro, Evangelho da verdade e outros que não foram inseridos ao cânon bíblico (FRANGIOTTI, 2004, p.  32). 

Como Jaroslav Pelikan descreveu, nenhum dos pais da igreja era judeu e, portanto, havia uma transição inevitável do cristianismo acontecendo na história da igreja, fato que trouxe diversas consequências (2016, p. 34). Dado que os autores hebraicos, carregados de seus próprios símbolos, vocabulários e categorias já não existiam mais, a fé se inseriu em uma cultura diferente e os saberes clássicos, helenísticos e estoicos, ou seja, pagãos, sintetizaram-se com o evangelho. Porém, por maiores que fossem as semelhanças estruturais com as religiões politeístas, as autoridades eclesiásticas da época não abriram mão da concepção correta de Deus e seus atributos. Isso fez com que essas ideias não fossem adotadas pela cristandade, declarando como hereges todos os que proclamassem um evangelho diferente daquele postulado pelo Senhor Jesus e seus apóstolos. Esta luta dogmática foi construída dentro da tradição, que transmitia vividamente as afirmações de fé da comunidade cristã (SESBOUÉ; THEOBALD, 2006, p. 20).  

Lobos transvestidos de mestres

No evangelho segundo Mateus, Jesus alerta seus discípulos acerca dos falsos profetas, dizendo que eles se apresentam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores (Mt 7:15). Diante disso, o Senhor orienta seus fiéis a examinarem os frutos produzidos, pois é a partir deles que se pode conhecer aquele que fala. Afinal. nem todo o que proclama o nome de Deus entrará no seu Reino (Mt 7:16-23). De modo semelhante, é preciso estar atento às dinâmicas contemporâneas com aparência de verdade, mas que no fim são caminhos que levam à morte. 

É interessante perceber quão perto o gnosticismo dos primeiros séculos está da vivência atual, pois o mesmo discurso de caráter especulativo e popular se repete cotidianamente. Os adeptos do gnosticismo presente no mundo antigo declaravam ter um conhecimento mais profundo do que os crentes comuns; e se envolviam em problemas filosóficos e religiosos com soluções divergentes da verdade divina (BERKHOF, 1992, p. 44-45). Seus dilemas, derivados do paganismo e não do cristianismo, estavam em torno do ser absoluto e da origem do mal. Atualmente, as questões mudaram, centrando-se nos indivíduos e apresentando temas como autoajuda, prosperidade material, crescimento pessoal, propósito, resiliência e autoridade. Assuntos que não são essenciais ao cristianismo, mas reverberações do pensamento autocentrado contemporâneo, que veem nos personagens e passagens bíblicas o meio de alcançar o imaginário dos interlocutores. Seja na igreja, seja em palestras, o linguajar moderno e positivista forma um discurso persuasivo, cujos precursores se comparam a Salomão e sua riqueza, considerando suas atitudes excêntricas análogas às de Jesus. Todavia, ao lidarem com o público, os tratam como plebeus frente a tiranos, não espelhando de modo algum a imagem mansa e humilde que Cristo declarou com seu viver, sofrer e morrer. 

Já o tom popular do gnosticismo clássico se dava pela influência massificante, com ritos simbólicos, cerimônias especiais e ensino de fórmulas mágicas, que supostamente eram necessárias e eficazes contra o poder do pecado e da morte, além de serem o meio de acesso à bem-aventurança do mundo vindouro, ditos que as pessoas acreditavam como genuínas verdades (BERKHOF, 1992, p. 44-45). Não é surpresa para ninguém como isso se repete claramente, em masterclass que prometem revelar os “segredos do sucesso”, ou em reuniões religiosas cujos ensinos arrastam multidões, firmando-se em elementos e símbolos extrabíblicos. Diante destes símbolos, a ideia de cura divina, libertação e salvação é corrompida a fins totalmente individuais, sem considerar a comunidade de fé, as perspectivas escriturísticas sobre os temas ou ainda a correta interpretação dos textos bíblicos usados para sustentar as ministrações. Frente aos ouvintes, embora haja aparência de piedade, seu poder é negado (2 Tm 3:5). Como na igreja de Laodiceia, eles dizem: “Sou rico, estou bem de vida e não preciso de nada”, sem se aperceberem que são infelizes, pobres, cegos e nus (Ap 3:17). Agindo dessa forma, eles se tornam inimigos da cruz de Cristo, pois o “deus deles é o seu ventre, e a glória deles está naquilo que deveriam se envergonhar, visto que só pensam nas coisas terrenas” (Fp. 3:19). 

Igreja, coluna e firmeza da verdade

 A igreja, firmada em Cristo Jesus, foi instituída por Ele como coluna e firmeza da verdade e na história cumpre seu papel contra as mentiras que querem se hospedar como parasitas em seu interior. Por meio dos pastores-teólogos, o gnosticismo foi refutado e no seio da comunidade de fé se ergueram apologistas, como Irineu, um dos pais da igreja. A partir desta heresia, eles se prepararam e colocaram em circulação as regras de fé e limitaram o cânon, excluindo os falsos evangelhos, atos e epístolas (PELIKAN, 2016, p. 47). Houve também um avanço doutrinário, com a formação da doutrina da Criação, demonstrando a continuidade do evangelho na história da revelação, firmando o entendimento da origem e seu cumprimento em Jesus (PELIKAN, 2016, p. 87). Isso possibilitou que os cristãos compreendessem que o Deus criador era também o seu redentor, o qual, desde o princípio via todas as coisas como boas (GONZÁLEZ, 2015, p. 49). 

Diferente do popular e especulativo mistério da gnose, o evangelho foi apresentado aos irmãos como a experiência e esperança da salvação (GONZÁLEZ, 2015, p. 49), não baseada em homens detentores da verdade secreta, mas disponível em Jesus, o autor e consumador da fé (Hb. 12:2). Afirmou-se também as  categorias bíblicas: lei e evangelho, promessa e cumprimento, criação e salvação, fortalecendo a coerência interna do cristianismo. 

Conclusão 

Portanto, assim como o cristianismo primitivo firmou todo seu ensinamento na fé que há em Cristo Jesus, a partir das Escrituras sagradas e do culto a Deus, a igreja contemporânea precisa reafirmar estes pressupostos, sem abrir mão das doutrinas sagradas que compõem a crença cristã. Com bravura e cuidado, o rebanho de Deus deve ser defendido destas astutas ciladas do inimigo. 


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Referências

BERKHOF, Louis. A história das doutrinas cristãs. Tradução: João Marques Bentes e Gordon Chown. São Paulo: PES. 1992.

BÍBLIA. Língua Portuguesa. Bíblia King James 1611. BV Books. Niterói, RJ: Editora BV Films, 2017. 1120 p.

FRANGIOTTI, Roque. História das heresias (séculos I-IV):conflitos ideológicos dentro do cristianismo. 4ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.

FREZZATO, Anderson. Gnosticismo: Um resgate conceitual motivado pela exortação apostólica gaudete et exsultate. Revista Eletrônica Espaço Teológico., v. 12, n. 22, p. 43-53, 2018.

GONZÁLEZ, Justo. Uma breve história das doutrinas cristãs. Tradução: José Carlos Siqueira. São Paulo: Hagnos, 2015.

PELIKAN, Jaroslav. A tradição cristã – vol. 1: uma história do desenvolvimento da doutrina. Tradução: Lena Aranha e Regina Aranha. São Paulo, 2016.

SEBOÜÉ,  Bernard;  THEOBALD,  Christoph. Histórias dos dogmas. Tradução: Aldo Vannuchi. São Paulo: Loyola,  2006.

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