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O Deus que humaniza e o humanismo que desumaniza

Ensaio escrito por Mariana Guzzoni, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024


As explicações para os questionamentos que a humanidade busca responder em todas as épocas têm sua semente na ruptura e desconexão ocorrida no Éden. Ali, a semente do humanismo foi lançada no coração do homem, envolta numa promessa de florescimento da autonomia de si, do outro e de Deus, assim como da realidade criada e estabelecida por Ele. Desse modo, o homem, que já era imagem de Deus, foi enredado pela voz enganosa da serpente – conhecida também como o pai da mentira – que, relativizando e distorcendo a palavra divina, lhe prometeu a possibilidade de ser como Deus. Nessa perda da percepção de seu Criador e de si mesmo, o homem deixou seu coração ser enraizado por incredulidade, cobiça e orgulho. 

A Queda traz uma narrativa enganosa sobre o eu humano, de forma que “por causa de sua queda em pecado, o homem, em um sentido específico, perdeu a imagem de Deus (alguns teólogos chamam este sentido de o estrito ou funcional)” (HOEKEMA, 2018, p. 21). A serpente traz uma falsa narrativa de que os serem humanos podem ser autônomos e independentes, podendo construir sua existência, sentido e valor à parte de Deus. 

Dessa forma, o homem experimenta uma alienação em suas relações fundantes: com Deus, o seu Criador; consigo mesmo e com o outro, numa deturpação da forma de ver e perceber a si mesmo e ao outro; com a ordem natural e cultural, numa desordem de seus amores e vocações, bem como numa dificuldade de enxergar a vida e de vivê-la com coerência. Logo, o coração humano tornou-se um solo fértil para as sementes de filosofias e ideologias contrárias a Deus que lhe seriam lançadas e frutificariam, não dando, contudo, bons frutos. 

No período denominado Idade Média, as pessoas encontravam-se imersas em grandes conflitos. A Igreja, que foi chamada para ser luz aos povos, levando as boas-novas da redenção, viveu um período sombrio, transgredindo os princípios e verdades bíblicas, o que gerou um desvirtuamento da fé, um monopólio dos clérigos com relação às Escrituras, uma Igreja sem evangelho, e, portanto, sem redenção. Assim, cultura, arte, educação, lazer, trabalho, política, economia, fé e todas as demais esferas da vida foram desvirtuadas e fracionadas. Nesse sentido, R.C. Sproul ensina: “Entre a síntese clássica de Tomás de Aquino no século treze e o alvorecer da era da razão no século dezessete, mudanças dramáticas alteraram o cenário da civilização ocidental. Mudanças na religião, na teoria política, nas ciências e na estrutura econômica reduziram o mundo medieval a ruínas” (SPROUL, 2002, p. 79).

O mundo medieval apontou para a Queda, com pouco acesso à luz. Neste cenário, uma Reforma vinha sendo construída por muitos séculos antes, com o ensino da verdade do evangelho por muitos homens fiéis, que deram sua vida em prol das boas notícias da redenção e denunciaram os equívocos da Igreja Católica Romana. A Palavra de Deus foi a arma com a qual se batalhou para libertar a mente e coração das pessoas, consoante Hebreus 4:12 bem expressa: “Pois a palavra de Deus é viva e poderosa. É mais cortante que qualquer espada de dois gumes, penetrando entre a alma e o espírito, entre a junta e a medula, e trazendo à luz até os pensamentos e desejos mais íntimos”.

Desse modo, a Reforma Protestante libertou o evangelho para as igrejas, restabelecendo a Bíblia, com seus princípios e verdades para o povo, que agora poderia ter acesso às Escrituras, bem como discernir e repudiar as práticas errôneas ou heréticas, tais como as indulgências. Assim, o homem estava livre para voltar-se, de coração e mente, ao seu Criador e Nele reencontrar todo o seu sentido e valor. E foi o que muitos fizeram.

Infelizmente, grande parte da humanidade preferiu libertar-se de Deus, elegendo a si própria — e toda a sua racionalidade — como o sentido último da existência. O homem buscaria em si respostas, sentido, valor e significância. Assim, o humanismo surgiu como um fruto maduro da semente lançada no Éden da autonomia humana, onde o homem acatou a voz da serpente em sua ilusão e utopia de que poderia ser o seu próprio deus, bem como poderia viver no mundo de Deus sem Deus.

Logo, a visão do homem de si mesmo passou a ser autorreferenciada, porquanto, perdendo a sua verdadeira imagem, ele tentou encontrar sentido, valor e significância em si mesmo ou no outro. O seu trabalho, arte, cultura, ciência, política e todo o exercício de seu mandato cultural não é mais em consonância com a realidade criada, tampouco com o Criador de todas as coisas. Assim, à medida que a crença em Deus vai sendo abandonada do centro da vida, a crença no homem toma o lugar de Deus. O humanismo tentou liberar o homem de sistemas, mas o aprisionou em si mesmo, pois o homem livre de Deus é prisioneiro de si. 

No final, o humanismo desumaniza o homem, pois este não foi criado por si mesmo, mas foi feito à imagem de um Outro: Deus. Tendo em vista que o homem foi criado como teorreferente, o seu coração sempre estará vazio e insaciável à procura da sua real imagem, de quem realmente é. Muito mais que pura razão, ou emoção, ou fidúcia, o homem é imagem de Deus. Tal imagem não é restaurada num movimento filosófico que busca na razão a explicação de todas as coisas, que coloca o homem no centro, afastando sua verdadeira imagem ainda mais. 

Porém, há boas notícias, porquanto, nem no Éden, nem na Idade Média ou na Idade Moderna, tampouco atualmente, o homem foi deixado por sua própria conta para se conhecer por si mesmo e se autossalvar. Mesmo com sua insistência por autonomia, Deus se revela ao homem, como Francis Schaeffer explica com primor:

O esforço do homem em declarar a sua autonomia privou-o da realidade das coisas. Não lhe resta nada que lhe dê segurança quando a sua imaginação o leva para além das estrelas, se não há nada que possa garantir a distinção entre a realidade e a fantasia. Mas, a partir da epistemologia cristã, esta confusão chegou ao fim, a alienação foi curada. Este é o ponto nevrálgico do problema do conhecimento e ele não poderá ser resolvido enquanto o nosso conhecimento não se encaixar sob a máxima do Deus pessoal infinito trino que existe e que não está em silêncio. Quando isto acontece, e somente quando isto acontece, o dilema da epistemologia simplesmente não existe (SCHAEFFER, 2017, p. 128).

Portanto, conclui-se que as Escrituras contêm a narrativa única que responde aos questionamentos de uma vida pós-queda, mostrando-se a mais coerente quanto ao ser humano – sua identidade e valor. É o que dá ao homem uma forma distinta de olhar a totalidade da realidade com base nas Escrituras, como bem expressa Nancy Pearcey: “a Palavra de Deus torna-se os óculos que oferecem nova perspectiva sobre todos os pensamentos e ações” (PEARCEY, 2006, p. 27).

Somente a redenção de Cristo Jesus pode libertar o homem da escravidão, colocar a si mesmo como centro ou sentido último da vida, bem como clarificar o engano de fazer do humanismo um projeto sagrado e religioso, cuja consequência é toda sorte de disfunções e disforias que colhemos na atualidade. A fé cristã oferece um caminho sobremodo excelente: crer que Deus criou todas as coisas, incluindo o ser humano, o qual pode encontrar sua identidade, valor e vocação no Deus que o criou à sua imagem e semelhança, para que, assim, experimente do pleno florescimento em tudo o que é, pensa, cria e faz, conforme Anthony A. Hoekema ensina: “Na obra da redenção, Deus restaura graciosamente sua imagem no homem, tornando-o uma vez mais igual a Deus em seu amor, fidelidade e disposição para servir aos outros. Porque os seres humanos são criaturas, Deus deve restaurá-los à sua imagem — esta é uma obra da graça soberana” (HOEKEMA, 2018, p. 21).


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Bibliografia

HOEKEMA, Anthony A. Criados à imagem de Deus. Trad. Heber Carlos de Campos. 3ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, 288 p.

PEARCEY, Nancy. Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Trad. Luís Aron. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, 526 p.

SCHAEFFER, Francis A. O Deus que se revela. 3ª ed. Trad. Gabrielle Greggersen. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, 144 p.

SPROUL, R.C. Filosofia para iniciantes. Trad. Hans Udo Fuchs. 1ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.