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Rastreando o conceito de cosmovisão: do pensamento filosófico às tradições disciplinares

Resenha crítica escrita por Amanda Diniz Vallada, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


NAUGLE, David. Cosmovisão: a história de um conceito. Tradução de Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2017. E-book. 535 p.


David Naugle, nascido em 1952 e falecido em 2021, foi professor de Filosofia na Dallas Baptist University (DBU) por quase três décadas. Em sua formação, Naugle conquistou dois doutorados – um em Teologia Sistemática, pelo Dallas Theological Seminary, e outro em Humanidades, com concentração em Filosofia e Literatura Inglesa, pela University of Texas. Na DBU, Naugle atuou como professor e gestor administrativo, merecendo destaque seu trabalho para estabelecer oportunidades semanais para que palestrantes tratassem no campus de temas variados, especialmente os que contemplavam a interface fé e cultura1.

Além de vários artigos acadêmicos, Naugle escreveu três livros, dentre eles Cosmovisão: a história de um conceito, lançado originalmente em inglês em 2003, e traduzido em 2017 pela Editora Monergismo. Nesta resenha, vamos examinar como o livro é organizado e dividido, bem como entender quais são as contribuições dos capítulos de um livro que se propõe ao empreendimento ambicioso de investigar o surgimento, desenvolvimento e usos de um conceito tão caro e comum aos cristãos atualmente. Estruturalmente, o livro está organizado em 11 capítulos, além de prefácio, prólogo, epílogo, dois apêndices e uma apresentação inicial escrita pelo filósofo inglês Arthur Holmes.

Nos dois primeiros capítulos, o autor procura traçar o cenário de fascínio que o conceito de cosmovisão tem representado nas últimas décadas, tanto para o evangelicalismo (tema do primeiro capítulo), quanto para o catolicismo e a ortodoxia oriental (tema do segundo capítulo). Sobre isso, Naugle diz que é um equívoco que os protestantes evangélicos pensem que “a ideia de uma cosmovisão bíblica ou cristã é um traço unicamente seu. Na verdade, esse padrão de pensamento também existe de forma única no catolicismo romano e na ortodoxia oriental” (p. 58).

O objetivo do autor no capítulo três é apresentar estudos filológicos a respeito da palavra em língua alemã, Weltanschauung, o significante que primeiro representou o significado de cosmovisão. Em seguida, do quarto ao sexto capítulo, Naugle se dedica aos usos desse conceito por diferentes comunidades filosóficas, do século XIX ao XX, passando por nomes como G. H. Hegel, Søren Kierkegaard e Friederich Nietzsche, no capítulo quatro, por Edmund Husserl, Karl Jaspers e Martin Heidegger, no capítulo cinco, e por Ludwig Wittgenstein, Donald Davidson e outros filósofos pós-modernos, no capítulo seis.

Depois de tratar das comunidades filosóficas, o autor se volta, nos capítulos sete e oito, às ressonâncias e/ou dissonâncias que a ideia de cosmovisão tem encontrado nas ciências naturais e sociais. Esse esforço de extrapolar a disciplina filosófica se justifica porque 

o conceito migrou do seu domicílio filosófico para fixar residência em uma grande variedade de empreendimentos, especialmente nas ciências naturais e sociais. Na medida em que as formas básicas de conceber o mundo e o lugar dos seres humanos nele afetam o modo como os domínios natural e social são entendidos, a importância da cosmovisão nessas disciplinas é difícil de ser superestimada (p. 236).

Se nos primeiros oito capítulos Naugle estava preocupado em fazer uma historiografia do conceito de cosmovisão, sua preocupação nos capítulos finais é responder às inquietações da comunidade cristã sobre a validade e razoabilidade desse conceito para o serviço cristão. Desse modo, no capítulo nove, o autor trata de aspectos teoréticos do conceito, de maneira a direcioná-lo a uma naturalização cristã, ou, em outras palavras, a deixá-lo cativo a Cristo. No capítulo dez, por sua vez, Naugle (p. 404) se dedica a refletir sobre cosmovisão como uma estrutura semiótica internalizada que cria um universo simbólico responsável por modelar práticas humanas e estabelecer horizontes de perspectivas interpretativas sobre essas práticas.

Por fim, no último capítulo, o autor sintetiza as contribuições dadas ao longo do livro, retomando o que ele chama de benefícios e perigos filosóficos, teológicos e espirituais da produtividade do conceito de cosmovisão. Caminhando para o encerramento, Naugle apresenta três conclusões a que podemos chegar após a leitura do livro: 

A primeira é que a cosmovisão tem desempenhado um papel extraordinário nos pensamentos cristão e moderno. A segunda é que ela é uma das concepções intelectuais centrais nos últimos tempos. A terceira é que ela é uma noção de máxima, se não final, importância humana, cultural e cristã. Na verdade, é [a] terceira conclusão que explica as duas primeiras (p. 422).

Diante dessas características do livro, é preciso destacar que ele não se mostra uma leitura fácil para quem tem pouca familiaridade com os temas discutidos. Na verdade, o livro tem características acadêmicas – isto é, demanda do leitor certos conhecimentos prévios sobre filosofia, principalmente, mas também sobre antropologia, psicologia e história das ciências naturais. Muito embora o autor explique de maneira básica vários conceitos e categorias teóricas, e sempre, de forma muito bem-vinda, nos encaminhando a outras referências nas notas e nos apêndices, a proposta do livro não é ser uma leitura introdutória para quem é leigo nesses temas.

Esse aspecto do livro não é necessariamente uma ressalva, afinal, em suas primeiras páginas, lemos que a proposta do livro não é de fato ser introdutório, mas um “estudo extensivo e interdisciplinar sobre o conceito de cosmovisão” (p. 13). Entender como dois séculos de pensamento filosófico usam, aplicam, rejeitam, se aproximam, se afastam da palavra e conceito cosmovisão é certamente um empreendimento laborioso, tal como o é compreender como diferentes campos disciplinares das ciências sociais e naturais se relacionam com a cosmovisão. Naugle, contudo, é capaz de oferecer uma análise suficientemente detalhada do uso de cosmovisão pelas comunidades filosóficas e tradições disciplinares do Ocidente. Sem dúvidas, o leitor que se empenhar na leitura desse livro terá, ao concluí-lo, recebido uma potente oportunidade para se aprofundar nos estudos de cosmovisão.

1 Para conhecer mais o trabalho de David Naugle, confira: https://www.dbu.edu/naugle/personal-information.html. Acesso em 02 de março de 2024.