Artigo escrito por João Alberto Lins de Lima, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2024
A igreja de Cristo, desde sua fundação no primeiro século, passou — e passa até hoje — por uma série de problemas externos e/ou internos. Alguns anos depois da ascensão de Jesus aos céus, diversas controvérsias já faziam parte da igreja, de modo que a comunhão entre judeus e gentios era marcada por uma série de discussões acerca de doutrinas secundárias à fé cristã, principalmente no que tange às questões relacionadas à liturgia e à maneira como a igreja deveria atuar no meio em que foi plantada (CAIRNS, 1988).
Não por acaso, grande parte das respostas teológicas de Paulo (por mais sistemáticas e lógicas que possam parecer para nós hoje) tinham como finalidade demonstrar como a identidade cristã jamais pode ser confundida por atos ou obras exercidas pela comunidade (aparência). Antes, são as obras do próprio Cristo que justificam os pecadores, de modo que as nossas obras (justificadas em Cristo) são agora consequências e não a causa do que nos torna cristãos (KELLER, 2012). Entretanto, o problema é que, para os ouvintes de Paulo (e para nós hoje), muitas vezes ainda vivemos uma fé marcada mais pelo que vemos do que pelo que ouvimos.
Ainda que as nossas obras sejam boas de fato, se o intuito está em promover boas aparências, isso, na verdade, acaba sendo uma espécie de vida pelas obras, que, por mais belas que sejam, produzem camadas de auto justificação (KELLER, 2012). Como consequência, a obra de Cristo passa a ser algo secundário tanto na vida da comunidade quanto na daqueles que buscam amar/conhecer a Deus por meio do labor teológico. Nesse contexto, a teologia ganha ainda mais sentido e significado, pois seu propósito não está em promover argumentos analíticos, tratando Deus como um objeto impessoal e passivo; antes, tem por objetivo tornar ainda mais concreto como o Deus Trino nos convida para um relacionamento, sendo a igreja a plataforma teológica visível dessa verdade (MCGRATH, 2005).
Entretanto, o conhecimento doutrinário, quando colocado acima de um encontro pessoal com Deus (sendo esse um risco que todos nós corremos, como cristãos), acaba, na verdade, fazendo com que o objetivo principal de amar/conhecer a Deus se torne secundário na peregrinação teológica, de modo que Deus passa a ser visto mais como um mero objeto de pesquisa do que o centro pelo qual enxergamos toda a realidade (BERKHOF, 2017). Como consequência, o homem deixa de reconhecer que todo conhecimento teológico adquirido por ele seja fruto de seu encontro com Deus (por meio da Escritura e ação do Espírito Santo), passando a se orgulha de seu próprio labor teológico, sendo esse um tipo de idolatria bastante comum no meio reformado (STEVENS, 1995).
Isso é ainda mais evidente no que tange à propagação do Evangelho por meio das mídias digitais. Não por acaso, um dos grandes debates teológicos feitos no Brasil recentemente avalia se a representação de Cristo a partir de obras audiovisuais (como séries e filmes) quebra ou não uma das leis estabelecidas no Decálogo, onde uma parte considerável da ala reformada brasileira defende que há um rompimento de dessa lei. Ainda que o objetivo desse artigo não seja discutir o conceito de idolatria de forma pormenorizada, grande parte dessas discussões no meio reformado (a despeito da sua legitimidade), acabam, na verdade, implicando em debates que dizem mais respeito ao campo da teologia em si (no que tange aos conceitos doutrinários) do que na real prática dos conceitos formulados no ambiente comunitário, sendo esse, inclusive, uma das grandes formas de legalismos cometidos pelas igrejas reformadas (da qual faço parte).
Contudo, a pergunta é: qual seria a solução para esses tipos de dilemas? Como a própria teologia sistemática reformada pode ser utilizada como um “antídoto” contra essa intoxicação visual legalista presente nas igrejas reformadas no Brasil? Acredito que o teólogo Herman Bavinck tem muito a contribuir no que tange a essa desintoxicação visual das igrejas reformadas no Brasil a partir das suas obras dogmáticas que visam estabelecer uma ortopraxia condizente com sua dogmática.
Portanto, esse artigo tem por objetivo pontuar algumas características presentes na teologia sistemática desse teólogo holandês, trazendo lições bastante úteis para entendermos como a teologia sistemática pode ser uma ferramenta valiosa para o crescimento doutrinário e devoto das igrejas reformadas brasileiras, de modo a reprimir um dos grandes males presentes em nosso tempo, o legalismo.
Ainda que a teologia de Herman Bavinck tenha sido construída no espaço (holandês) e no tempo (século XIX-XX) diferentes do nosso, toda sua dogmática é marcada por princípios apriorísticos que, mesmo distantes de nós — em termos culturais, étnicos e geográficos que compõem a igreja brasileira ou até mesmo latino/americana —, podem ser harmonicamente aplicados ao nosso contexto atual, caracterizado pela busca de uma espécie de “espiritualidade fragmentada” marcada por uma ênfase em discussões pontuais acerca de questões seculares que pouco tem a ver com atividade da própria comunidade nesses cenários, gerando mais problemas do que soluções no que tange à nossa evangelização em um país tão miscigenado como o Brasil (VEENHOF, 2006; DULCI, 2024).
Esse tipo de postura acaba sendo, na verdade, uma visão teológica antagônica ao pensamento reformado, implicando em uma espécie de visão dualista entre o mundo e a igreja, sagrado e profano, lei e graça. Esses dilemas que vivemos hoje foram os mesmos dilemas no qual o teólogo holandês vivia dentro de sua igreja, que — a despeito de ser uma comunidade calvinista por definição — era marcada por uma profunda espiritualidade reformada pietista (BAVINCK, 2012, p. 12; DULCI, 2024).
Dessa forma, sua resposta tinha por objetivo promover a construção de uma teologia orgânica, teleológica, trinitária, cristocêntrica, cristotélica, progressiva, histórica, teocêntrica e voltada para uma igreja católica (na melhor acepção da palavra) que fosse capaz de correlacionar sua visão teológica com a cultura de seu tempo, levantando objeções que diziam respeito não só ao comportamento dos indivíduos de seu entorno, mas também a fazer uma avaliação de quão próximo à própria igreja poderia estar (em seu comportamento) do seu entorno cultural (marcado por uma vida fragmentada e dicotômica) do que do seu Senhor (EGLINTON, 2011; CHAUNY, 2013; RAGUSA, 2017).
Sendo assim, grande parte de sua dogmática também tinha como objetivo promover uma “renovação” que afetaria positivamente as relações da tradição reformada com outras tradições teológicas, bem como com as outras comunidades cristãs (BERKOUWER, 1979), construindo pontes em vez de muros. Esse e outros teólogos (ditos neocalvinistas) deram um pontapé para construção de um movimento que — a despeito de sua tradição — era capaz de produzir uma teologia inovadora centrada em uma “graça restauradora da natureza”, sendo esse, inclusive, o início de um vigoroso motivo filosófico de grande relevância para a renovação dos debates acerca da doutrina da criação na teologia contemporânea (VEENHOF, 2006, p. 3).
Outro ponto bastante característico da teologia sistemática bavinckiana está na sua construção de uma dogmática centrada na teologia bíblica da aliança. A promessa do Deus conosco é o que confere o cerne da teologia da aliança, no qual toda e qualquer dogmática, quando vista ao longo dessa história, fornece os arcabouços teológicos necessários para que toda sistematização feita pelo Bavinck tenha como pressuposto uma organicidade e teleologia que, juntas, conferem uma leitura orgânica das Escrituras, de modo que toda análise da prática da igreja esteja pautada não em regras relacionadas à tradição eclesiástica, mas sim, ao caráter de Deus em suas três pessoas, sendo Cristo o cabeça de uma nova raça da qual todas as doutrinas procedem (VENEMA, 2008).
Em outras palavras, toda resposta dada pela igreja em relação ao seu comportamento e ética tem como pressuposto uma aliança estabelecida pelo próprio Deus, de modo que nossas atitudes são, na verdade, uma tentativa/compromisso de representá-lo (sermos a sua imagem e semelhança) devido à nossa nova natureza estabelecida única e exclusivamente pelo próprio Deus (EGLINTON, 2011). Essa concepção que Bavinck propõe, estabelecida a partir da aliança, aponta para mais um atributo presente em sua teologia sistemática, a saber, uma ênfase de que a realização dos atos de Deus ao longo da história por meio das alianças funciona como uma espécie de doxologia primitiva, de modo que toda sua sistemática visa destacar as maravilhas de Deus (HOCKING, 2011).
Dessa forma, pode-se resumir que esse motivo teológico é, na verdade, uma base para que a comunidade seja capaz de expressar a própria teologia sistemática como um importante elemento de sua confessionalidade pautada em uma teologia presente do Antigo ao Novo Testamento, fazendo com que a igreja de Cristo não se restrinja à discussão sobre conceitos filosóficos abstratos, mas tenha como mandato cultural expressar como o Deus conosco está presente em cada situação da vida na comunidade por meio da doutrina, não deixando de apontar falhas no cumprimento de atividades relacionadas fora da comunidade, mas também entendendo que toda e qualquer teologia pública deve ser feita num sentindo unidirecional, partindo do seio da igreja para fora. Dessa forma, o corpo de Cristo passa ser uma espécie de “lugar de fala”, em vez de buscar sua autonomia nos ambientes para-eclesiásticos.
Acreditamos que o estudo teológico é fundamental para todo cristão, e não apenas para pastores ou líderes. Afinal, a teologia nos ajuda a seguir a Cristo em todos os aspectos da nossa vida!
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Referências
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Trad. Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
CAIRNS, Earle Edwin. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1988.
CHAUNY, Pierre-Sovann. Trinity and Organism: Towards a New Reading of Herman Bavinck’s Organic Motif. European Journal of Theology, v. 22, n. 2, 2013.
DULCI, Pedro. Ortodoxo e moderno: as contribuições de Herman Bavinck. Invisible College. Programa de Tutoria Essencial. Goiânia. 2024. 1 vídeo (06:32-13:19). Disponível em: https://hubinvisiblecollege.com.br/login.
EGLINTON, James. Bavinck: Dogmatics and Ethics. Scottish Bulletin of Evangelical Theology, v. 29, n. 1, p. 1-3, 2011.
HOCKING, Jeffrey S. The Promise of Herman Bavinck’s Doctrine of Revelation: Theology beyond Dogmatism and Relativism. The Kuyper Center Review, Volume 2: Revelation and Common Grace, v. 2, p. 73, 2011.
KELLER, Timothy. Center church: Doing balanced, gospel-centered ministry in your city. Zondervan, 2012.
MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd publicações, 2005.
RAGUSA, Daniel. The Trinity at the Center of Thought and Life: Herman Bavinck’s Organic Apologetic. Mid-America Journal of Theology, v. 28, p. 149-75, 2017.
STEVENS, R. Paul. Living theologically: toward a theology of Christian practice. Themelios, v. 20, n. 3, p. 4-8, 1995.
VEENHOF, Jan. Nature and grace in Bavinck. Pro Rege, v. 34, n. 4, p. 10-31, 2006.
VENEMA, Cornelis P. Covenant and election in the theology of Herman Bavinck. Mid-America Journal of Theology, v. 19, p. 69-115, 2008.
BERKHOF, Louis. Systematic theology. Lulu.com, 2017.