Ensaio escrito por Yann da Silveira Vieira Lessa, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2024
Introdução
O debate sobre o lugar da razão está presente por toda a história da igreja; não seria diferente no período da Reforma. Martinho Lutero e Erasmo de Roterdã protagonizaram um debate sobre a autonomia do homem e a sua capacidade em alcançar a salvação sem o auxílio divino. Vemos no humanismo renascentista, especialmente em Erasmo, uma confiança nas capacidades intelectuais e morais do ser humano. A Reforma, por outro lado, baseando-se nas Escrituras e numa leitura agostiniana, defenderia a falência noética e moral do homem, que necessita da graça para ser salvo.
O Humanismo de Erasmo
Erasmo de Roterdã (c. 1467-1536) é considerado um dos mais importantes escritores humanistas do Renascimento. Era um humanista cristão. McGrath caracteriza assim o humanismo:
[…] o humanismo é essencialmente um projeto cultural que recorria à Antiguidade Clássica como modelo de eloquência. O importante era o retorno ad fontes (o retorno ‘às fontes’). Esse lema latino implementou a visão do retorno da cultura moderna ocidental às fontes da Antiguidade, permitindo que suas ideias e seus valores revigorassem e renovassem aquela cultura.1
Tal ênfase no retorno às fontes fez Erasmo publicar, em 1516, o Novo Testamento em grego, texto que seria utilizado por Lutero em sua tradução bíblica para o alemão. Também fez muitas traduções confiáveis dos Pais da Igreja. Segundo Nicodemus, o alvo de Erasmo “[…] era simplificar o Cristianismo, exaltar a razão e enfatizar a moralidade em vez do ritualismo que prevaleceu na Idade Média”2. O movimento humanista encarava com bons olhos a Reforma, já que estava criticando a instituição da Igreja Católica e também defendia o princípio de retorno às fontes originais. Porém, este diálogo entraria em conflito quando, em 1524, Erasmo publica o livro Sobre o Livre Arbítrio3. Lutero logo o contesta, escrevendo Sobre Arbítrio Escravo4. Aqui se vê a clara distinção entre o Renascimento e a Reforma Protestante, uma distinção que diz respeito ao próprio entendimento da natureza humana. Como resume Shelley:
As diferenças entre a Reforma e a Renascença estão justamente nisto, na visão que tinham do homem, uma vez que os reformadores pregavam o pecado original do homem e viam o mundo como um lugar caído em relação ao plano original de Deus, ao passo que a Renascença tinha uma visão positiva da natureza do homem e do universo em si.5
O agostinianismo de Lutero
As contestações de Lutero são duras, o que é característico de seus escritos. Ele nega completamente a ideia do livre arbítrio. Seguindo a tradição agostiniana e conhecendo os embates entre o hiponense e Pelágio, ele defendeu uma visão antropológica negativa, negando as capacidades salvíficas do ser humano.
“[…] estamos todos debaixo da condenação divina, em face da pecaminosa desobediência de Adão. Estamos todos sujeitos a esta condenação, desde o nosso nascimento, incluindo aqueles que são possuidores do ‘livre-arbítrio’ — se é que pessoas assim existem! De que outra forma então poderia o ‘livre-arbítrio’ nos ajudar, senão a pecar e a merecer a condenação?6
Lutero foi um defensor do bom uso da razão, como é possível averiguar por seu plano educacional. Contudo, a razão não teria qualquer valor para auxiliar o ser humano a alcançar o conhecimento de Deus. “Alguns dos homens mais bem instruídos deste mundo têm considerado as verdades espirituais como bobagem. De fato, quanto mais brilhantes têm sido as suas mentes, mais ridículas lhes parecem ser as verdades espirituais”7. Não é pela inteligência que o homem alcança Deus. Ou Deus se revela e cura a cegueira espiritual do ser humano, ou ele está fadado a permanecer em sua morte espiritual. Lutero chega a pensar que Erasmo foi além de Pelágio na defesa da liberdade para a salvação.
Os pelagianos também fizeram isso. Mas você os ultrapassa! Eles distinguiam em duas partes o ‘livre-arbítrio’ — o poder de compreender a diferença entre as coisas e o poder de escolher entre elas. Porém, para você o ‘livre-arbítrio’ tem o poder de escolher coisas eternas, embora seja totalmente incapaz de entendê-las.8
O erro de Erasmo foi muito semelhante ao de Pelágio. Ambos possuíam uma visão elevada de Deus como Criador, mas tinham dificuldade em ver os efeitos da Queda. A negação do pecado original e da morte espiritual levariam ambos a um cristianismo humanista, confiante nas capacidades humanas. Todos poderiam escolher pecar ou não pecar. O homem renascentista não precisa de Deus. Sua religião possui ética, mas perde os contornos soteriológicos. O homem perdido de Agostinho-Lutero tem noção da sua dependência para com Deus e desconfia da bondade de seus pensamentos; já o homem de Pelágio-Erasmo é mais confiante de suas capacidades e mais propenso a um uso independente da razão. Pode-se perceber que o Renascimento inicia o processo de formação do homem divinizado, que se desenvolveria séculos depois.
Conclusão
Agostinho, ao refletir sobre os erros de Pelágio em sua obra A Graça, diz que “esta natureza apresenta-se tão decaída que não reconhecê-lo é o maior pecado”9. O homem moderno cai na grande miséria de não reconhecer sua própria miserabilidade. Apesar das semelhanças entre a Reforma e o Renascimento, o projeto humanista se distancia da visão bíblica. O debate entre Erasmo e Lutero marca a separação clara entre a ética cristã, dependente da graça de Deus, e a ética humanista, autônoma e confiante no alcance da razão humana.
1 MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005. 664 p. p.75.
2 LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus Intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 288 p. p. 167.
3 No original em latim: “De Libero Arbitrio Diatribe Sive Collatio”.
4 No original em latim: “De Servo Arbitrio”.
5 SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo: uma obra completa e atual sobre a trajetória da igreja cristã desde as origens até o século XXI. Tradução de Giuliana Niedhardt. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018. 560 p. p. 337.
6 LUTERO, Martinho. Nascido Escravo. 2ª edição. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2007. 139p. Edição do Kindle. p. 31.
7 Ibid., p. 52.
8 Ibid., p. 52-53.
9 AGOSTINHO, Santo. A Graça (I). Coleção Patrística. Tradução de Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998. 314 p. Edição do Kindle. p. 162.
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Referência bibliográfica
AGOSTINHO, Santo. A Graça (I). Coleção Patrística. Tradução de Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998. 314 p. Edição do Kindle.
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 288p.
LUTERO, Martinho. Nascido Escravo. 2ª edição. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2007. 139p. Edição do Kindle.
MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd Publicações, 2005. 664p.