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Inteligência Artificial e ética cristã: uma reflexão sobre o capital moral e os desafios tecnológicos contemporâneos

Artigo escrito por Débora Soares de Oliveira Coelho, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2024


Introdução

O advento da Inteligência Artificial (IA) marca um ponto crucial na história da tecnologia, oferecendo oportunidades e desafios sem precedentes. Desde sua concepção, a IA tem o potencial de transformar vários aspectos da vida humana, desde a maneira como trabalhamos e nos comunicamos até a forma como entendemos a própria natureza da inteligência. No entanto, com essas oportunidades é imprescindível que perguntemos como essa ferramenta afeta a forma como interagimos com o mundo ao nosso redor, levantando, assim, a importantes questões éticas. 

Em A humanidade diante da superinteligência: reflexões sobre autonomia e maldade (COELHO, 2024) discorre-se sobre os desafios que surgem com o desenvolvimento de uma superinteligência artificial. No artigo, questiona-se a capacidade das máquinas de atribuir significado aos dados que processam. Ademais, aborda-se também a inclinação humana para a rebelião e o conflito, sugerindo que a superinteligência, como criação humana, reflete as intenções e imperfeições de seus criadores. Outrossim, destaca-se a necessidade de uma profunda reflexão ética sobre o impacto dessa ferramenta na humanidade.

Neste contexto, com o auxílio do conceito capital moral, como descrito por Roel Kuiper (2019), pretende-se oferecer, no presente artigo, uma perspectiva crítica para compreender a importância dos valores éticos para o desenvolvimento tecnológico. Para tal fim, serão analisadas as narrativas bíblicas de Noé e da Torre de Babel como metáforas para examinar a possibilidade de uma coexistência harmoniosa entre a fé cristã e a tecnologia, propondo uma abordagem que promova uma vida moralmente orientada. 

Desta forma, a partir de uma perspectiva teocêntrica, este artigo argumenta que a ética cristã deve guiar o desenvolvimento e a implementação da IA, salientando-se o mandamento de amar a Deus e ao próximo, o qual implica que as decisões no campo da inteligência artificial devem ser tomadas com a consideração da dignidade humana, de maneira a prevenir o uso de tecnologias que possam prejudicar ou desumanizar as pessoas. Portanto, é contundente que usemos a tecnologia para promover o bem-estar humano, respeitando os estatutos divinos.

Dispersão e preservação por meio do betume

Na obra, Deus, tecnologia e a vida cristã (2022), Tony Reinke aborda o papel crescente da tecnologia, bem como a relação complexa desta com a teologia. Sobre isso, o autor argumenta que “a história da humanidade é a história da tecnologia” (2022, p.9), ou seja, desde os primórdios o homem tem suas habilidades aprimoradas por meios de novas técnicas, podendo então, aumentar a sua influência, fortificar seus propósitos e servir a sociedade com seus talentos. Ademais, “A tecnologia é essencial para quem somos, em todas as épocas — desde a era do rifle semiautomático até a era do estilingue” (REINKE, 2002, p. 13). Isto posto, o literato nos insere na relação de Deus com a tecnologia por meio do “betume preto e pegajoso” (2002, p. 29), tanto na narrativa bíblica de Noé e o dilúvio como no enredo da Torre Babel, capacitando-nos para discernir quais condutas escolher frente às inovações tecnológicas.

Assim, após Deus dizer a Noé que destruiria a Terra com um dilúvio por causa do crescimento exponencial da maldade no coração do homem, Ele lhe ordena que construa uma arca. Após receber as orientações do projeto, Noé obedeceu à ordem divina usando piche para construir um fabuloso barco para salvar sua família e diversos animais do dilúvio. Para isso, fez-se necessário que esse personagem bíblico, durante pouco mais de um século, amplificasse seus conhecimentos tecnológicos de construções, a exemplo, a coleta de piche para betumar a colossal embarcação. De tal narrativa, depreende-se que as habilidades e a capacidade inovadora do homem estão sendo avultadas em consonância aos mandatos divinos.

Doravante, passados quase 150 anos após o dilúvio, encontramos os descendentes de Noé habitando o vale de Sinear. Contrariando a ordem bíblica para multiplicarem e povoarem a Terra, decidem permanecer juntos e construir uma cidade e uma torre. A possibilidade de tal empreendimento reside no fato de que esses homens conseguiram desenvolver a técnica de queimar palha com betume, criando assim, tijolos. Como Reinke argumenta, com as novas tecnologias, novas habilidades e novas possibilidades, aflora-se, então, um sonho urbano, proporcionado pelo mesmo piche para colar tijolos e assim, edificar uma torre rumo aos céus. Contudo, diferentemente de Noé, o homem agora lança-se de forma imprudente nesse desenvolvimento tecnológico do betume, desobedecendo à ordem de se espalharem pela terra. Os habitantes da cidade, liderados por Ninrode,

buscaram erigir um monumento que alcançasse os céus, visando obter poder, glória pessoal e independência de Deus. “O resultado foi uma cidade-templo para a rebelião humana […]. Babel era o novo epicentro global da adoração humana” (REINKE, 2022, p.32).

No entanto, tal ambição do homem não ameaça a Deus, pelo contrário, atrai o seu julgamento. O Senhor Soberano da Terra multiplicou a única língua que falavam, confundindo-lhes, e os dispersou pelo mundo criado. Deste modo, na diversificação das línguas em Babel, o Criador multiplicou culturas e “codificou no drama da humanidade diferentes maneiras de pensar e se relacionar com o mundo” (REINKE, 2022, p. 35). Associado a isso, frequentemente, a reação frente ao desenvolvimento tecnológico, com inteligências artificiais inseridas nesse contexto, resumem-se a: um temor do desconhecido, geralmente acompanhado por uma visão distópica do futuro, ou pura empolgação sobre as possibilidades acompanhadas por uma visão utópica do futuro.

Não obstante, “Deus é a gênese da inovação humana e o criador dos inventores humanos” (REINKE, 2002, p. 47), de maneira que o Senhor não foi surpreendido em Babel, bem como sua reação foi ao mesmo tempo, punitiva e protetiva. Porque, ao confundir a língua e espalhar o homem pela face da Terra, Deus multiplicou culturas e diversificou opiniões, permitindo então, que os pensamentos conflitantes do homem fossem uma maneira de regulamentar e restringir a adoção, de forma unânime, de qualquer tecnologia em um mundo amaldiçoado por causa do pecado. Destarte, podemos confiar que o Criador não permitirá que as invenções humanas ultrapassem os seus decretos soberanos, e que Ele continuará “se intrometendo” nas pretensões tecnológicas da humanidade.

Ainda assim, Babel nos ensina que as imaginações tecnológicas do ser humano são de natureza religiosa e o homem nunca deixará de ser culpado por suas aspirações arrogantes que buscam autonomia, poder ou tentativas de transcender sua natureza decaída. Portanto, tal narrativa sublinha a importância de uma abordagem ética no desenvolvimento e uso de tecnologias, alinhando-se com propósitos divinos e o bem-estar coletivo.

Capital moral e a tecnologia

As histórias de Noé e da Torre de Babel fornecem lições valiosas para enfrentar os desafios éticos contemporâneos apresentados pelas novas tecnologias, como a inteligência artificial, nosso interesse nesse artigo. Sendo assim, a concepção de “capital moral”, proposta por Roel Kuiper (2019) é crucial para considerarmos o impacto ético dessas tecnologias na coesão social e no bem-estar coletivo. Como capital moral, Kuiper entende “a capacidade (individual e coletiva) de estar junto ao próximo e ao mundo de uma forma preocupada” (2019, p.24).

Igualmente, a reflexão sobre a autonomia humana e os desafios éticos apresentados pela superinteligência, como discutido em A humanidade diante da superinteligência: reflexões sobre autonomia e maldade (COELHO, 2024), sublinha a necessidade de discernimento ético ao lidar com tecnologias avançadas. Portanto, as preocupações com o potencial uso maléfico dessa ferramenta reforçam a importância de manter um capital moral robusto, que possa guiar o desenvolvimento tecnológico de maneira responsável e ética. 

Do ponto de vista cristão, as tecnologias devem ser desenvolvidas e utilizadas de acordo com princípios éticos que respeitem a dignidade humana e promovam a justiça. Portanto, a sociedade moderna deve engajar-se em uma reflexão contínua sobre o impacto das inovações tecnológicas, assegurando que estas estejam alinhadas com valores éticos fundamentais que sustentam uma sociedade justa e coesa. O homem é convocado a preocupar-se com o mundo e a viver de maneira responsiva, de maneira que ele faça da sua “atividade criativa, uma atividade em que o homem está […] tentando fazer algo novo a partir do compromisso de amor” (KUIPER, 2019, p. 134).

Uma vez que, o contexto contemporâneo é caracterizado por um subjetivismo moral crescente, a verdade e os valores são vistos como relativos e dependentes das perspectivas individuais ou sociais. A ética cristã responde a esse desafio, pois proporciona uma moralidade objetiva baseada em princípios revelados por Deus, um arcabouço ético não suscetível às mudanças culturais ou às preferências individuais, mas firmadas em verdades transcendentais. Por exemplo, o mandamento bíblico de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mateus 22:37 e 39) confere um alicerce seguro para avaliar o desenvolvimento e o uso de tecnologias de IA. “O amor não é apenas necessário para as boas obras, mas também suficiente; ou seja, se nossa ação é motivada por um verdadeiro amor por Deus e pelo próximo, teremos cumprido a lei” (FRAME, 2013, p. 52).

Ademais, em uma sociedade pluralista, advinda de Babel, diferentes grupos podem ter visões divergentes sobre o que é eticamente aceitável. Por exemplo, o uso de drones para segurança nacional pode ser visto como uma medida necessária por alguns, enquanto outros podem considerá-lo uma invasão injustificada de privacidade. Consequentemente, sem uma base ética objetiva, a tomada de decisões pode se tornar arbitrária e suscetível a influências de poder e interesse. À vista disto, a partir do resumo do Decálogo podemos inferir que princípios como a não deificação da tecnologia, o respeito à dignidade humana e o reconhecimento da humanidade como portadores da Imago Dei são fundamentais para avaliarmos os efeitos positivos e negativos.

Desafios éticos contemporâneos com a IA 

O advento de tecnologias avançadas, como a IA, muitas vezes desloca o foco da ética para questões mais tangíveis como lucro e inovação. No entanto, é crucial questionar não apenas o “podemos”, mas o “devemos” em relação à utilização dessas tecnologias. A IA não apenas aumenta as capacidades humanas, mas também pode desumanizar e violar direitos fundamentais, se não for utilizada de forma responsável. A moralidade transcendente e os princípios éticos bíblicos oferecem um contraponto a essa tendência, orientando a prática tecnológica para o respeito à dignidade humana e o amor ao próximo.

O termo inteligência artificial refere-se a tecnologias capazes de executar processos de pensamento e raciocínio, bem como inclui habilidades de percepção, aprendizado, predição e manipulação de dados. Assim, a IA tem um profundo impacto na sociedade contemporânea, alterando nossa civilização e a maneira como interagimos entre nós, conosco e com Deus. Por conseguinte, carece considerar como os princípios bíblicos podem informar e guiar o desenvolvimento tecnológico. Ao invés de adotar uma postura neutra ou indiferente em relação ao crescimento da tecnologia, um cristão é chamado a engajar-se ativamente. Ele deve reinterpretar e renovar os princípios que o orientam com base em uma perspectiva teológica fundamentada.

É importante reconhecer que, historicamente, alguns cristãos reagem com temor aos avanços tecnológicos devido às implicações teológicas ou éticas desafiadoras. No entanto, uma compreensão mais profunda da doutrina da criação pode oferecer uma visão mais positiva, pois todo o universo foi criado por Deus com um propósito claro, além de ser governado de forma fiel e consistente por Ele. Essa convicção proporciona um fundamento para que os cristãos encarem o desenvolvimento digital como parte do mandato cultural dado por Deus à humanidade. Assim, o ser humano é chamado a utilizar sua capacidade de compreender e aprender para promover avanços tecnológicos que estejam em harmonia com os princípios éticos e morais cristãos. 

Dessarte, a ética cristã, firmada na Imago Dei, sustenta que cada ser humano possui um valor intrínseco. Assim sendo, conclama-se a responsabilidade em garantir que a tecnologia, incluindo a IA, seja desenvolvida e usada de maneira a promover o bem-estar humano e a proteger a dignidade e a privacidade de cada indivíduo. “Se o outro é o sagrado que consegue despertar o nosso amor, então também pode ser a base de uma existência criativa no mundo” (KUIPER, 2019, p.137).

Assim, o uso de IA deve, portanto, ser orientado por princípios que respeitem a dignidade humana. Isso inclui evitar a desumanização, como no caso de robôs substituindo humanos em funções que requerem empatia e compaixão, ou na utilização de IA para monitoramento invasivo de indivíduos. A perspectiva cristã sugere que, embora a tecnologia possa aumentar a eficiência e a produtividade, ela nunca deve comprometer os valores fundamentais de amor e respeito pelos outros. “Admirar a vida como dádiva põe um fim na projeção utópica e implica uma responsabilidade evidente pelo mundo no aqui e agora” (KUIPER, 2019, p. 137).

Outrossim, a implementação ética da tecnologia requer mais do que simples boas intenções; ela exige uma abordagem sistemática e bem planejada que considere as implicações sociais, econômicas e morais. A sociedade deve estar envolvida na discussão sobre o papel da IA. A ética cristã, centrada no amor ao próximo e na busca por justiça, pode ser um guia crucial para essas discussões. Ademais, a igreja tem a responsabilidade de salvaguardar a dignidade humana e promover o uso ético da ferramenta.

O desenvolvimento tecnológico tem o potencial de melhorar a vida de várias maneiras. Porém, é crucial lembrar que ela não responde aos anseios mais profundos do ser humano, como o significado da vida e questões existenciais. A tecnologia, por si só, não pode fornecer respostas para essas questões fundamentais; apenas uma cosmovisão que reconheça a dimensão espiritual e transcendental da existência humana pode fazê-lo.

Por fim, a perspectiva cristã afirma que, até a volta de Cristo, o homem tem a responsabilidade de continuar explorando e desenvolvendo o mundo, inclusive o campo da tecnologia. Esse mandato não deve ser cumprido com medo ou hesitação, mas com entusiasmo e energia, buscando sempre alinhar os avanços tecnológicos com os valores e princípios que promovem o shalom e a glória de Deus. A ética cristã sugere que os desenvolvedores e usuários de IA devem ser guiados por uma moralidade transcendente que prioriza o bem-estar humano e a justiça social. Isso envolve não apenas evitar o uso prejudicial desse artifício, mas também promover práticas que beneficiem a sociedade. A vida em comunidade e os relacionamentos interpessoais são fundamentais para a experiência humana. Portanto, a tecnologia não deve comprometer tais valores essenciais.

Conclusão

A Inteligência Artificial representa uma fronteira nova e desafiadora na interseção da tecnologia e da ética. Conforme essa ferramenta se integra na vida moderna, é essencial que abordemos suas implicações éticas com uma compreensão profunda e uma visão clara dos valores que queremos promover.

Destarte, o estudo das narrativas de Noé e da Torre de Babel, aliado à análise contemporânea dos desafios éticos de uma superinteligência artificial, revela a importância crucial do capital moral na era digital. Ao manter um compromisso com valores éticos e íntegros, é possível usar a tecnologia de forma que promova o bem-estar coletivo e a coesão social, evitando-se o uso imprudente de inovações tecnológicas. A integração da fé cristã com a tecnologia, proporciona um alicerce seguro para navegar os desafios morais do mundo moderno, garantindo que o progresso tecnológico seja verdadeiramente benéfico para toda a humanidade.

Em suma, a ética cristã nos lembra que somos mais do que um valor utilitário para a sociedade; somos seres criados à imagem de Deus, com uma dignidade inerente que deve ser respeitada. Nesta era da IA, é imperativo que as decisões éticas sejam orientadas por uma moralidade transcendente que priorize o bem-estar humano e a justiça. Assim, podemos garantir que o desenvolvimento tecnológico sirva ao bem maior da humanidade, honrando a Deus e promovendo uma sociedade justa e coesa.


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Referências Bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Almeida, Revista e Atualizada. 2ª ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 1710 p.

COELHO, Débora Soares de Oliveira. A humanidade diante da superinteligência: reflexões sobre autonomia e maldade. In: Blog Invisible College. Goiânia, 26 jul 2024. Disponível em: https://theinvisiblecollege.com.br/a-humanidade-diante-da-superinteligencia-reflexoes-sobre-autonomia-e-maldade/ Acesso em 01 ago. 2024.

FRAME, John M. A doutrina da vida cristã. Tradução: Jonathan Hack. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013. 976 p.

KUIPER, Roel. Capital moral: o poder da conexão da sociedade. Tradução: Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. 310p.

REINKE, Tony. Deus, tecnologia e a vida cristã. Trad.: João Paulo Aragão da Guia Oliveira. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2022. 342 p. E-book. 294p.