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A ilusão persistente do homem-flecha

Num conhecido texto da tradição filosófica, Resposta á questão: O que é o Iluminismo?, Immanuel Kant disse que a palavra de ordem do iluminismo estava na coragem do homem em se servir do teu próprio entendimento. O homem deveria sair de sua condição de menoridade, da qual ele próprio seria o culpado. Tal menoridade, para Kant, consistia na sua incapacidade de pensar por si mesmo e sempre necessitar de outrem. Mas, isso seria, de fato, possível? Faz sentido pensar numa pretensa autonomia do entendimento humano?

UMA FLECHA LANÇADA

A aclamada série Dark, da Netflix, inicia os seus primeiros minutos com uma reflexão sobre a intrigante frase de Albert Einstein: “A diferença entre passado, presente e futuro é só uma ilusão persistente”. Ela provoca a intuição. Confronta uma das noções mais elementares no que diz respeito ao modo como apreendemos a realidade. Entretanto, não é nosso propósito aqui discutir a frase de Einstein ou fazer o leitor perguntar se a ficção de Dark não pode estar certa de alguma maneira — para o bem da nossa sanidade, esperamos que não — mas ter a frase como um bom ponto de partida para a nossa reflexão.

Numa seção interessantíssima do seu livro Inteligência Humilhada, intitulada “O miserável homem-flecha”, no capítulo em que trata da epistemologia monergista, Jonas Madureira desenvolve uma importante pensamento cujo ponto de partida é o pressuposto teológico da insuficiência humana. Com isso ele quer dizer que “o homem, desde a sua origem, é um ser necessitado da graça de Deus e, mesmo após a Queda, ele permanece necessitado da graça, ou seja, permanece insuficiente” (2017, p. 74). O homem é, por natureza, dependente do favor de Deus, e essa condição se explica pela sua insuficiência: o homem não foi feito para ser a medida de todas as coisas e viver por si mesmo, à revelia do Criador. A noção de uma pretensa autonomia humana não passa, portanto, de uma ilusão persistente.

Essa mesma ideia, como nos lembra Jonas Madureira, se encontra presente numa das passagens mais conhecidas das Confissões de Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti” (1984, p. 15). O coração é como uma flecha lançada. Essa metáfora descreve algo implícito na tradução deste trecho do bispo de Hipona e que por isso passa despercebido ao leitor: Com “fizeste-nos para Ti” Agostinho quer dizer que o homem foi criado com uma direção. A inquietude do coração mostra que ele é como uma flecha que está sempre em movimento. O repousar do coração é precisamente quando a flecha atinge o seu alvo. Jonas coloca da seguinte maneira:

“Em outras palavras, Deus nos criou como uma flecha lançada em sua própria direção, o que significa que o “coração inquieto” não é outra coisa senão uma disposição  ou inclinação natural que movimenta o homem todo para Deus, sua origem e seu destino. O Criador nos fez para ele [fecisti nos ad te], e, como girassóis que naturalmente  se inclinam para o sol, assim também o nosso ser é naturalmente orientado para se satisfazer nele. Essa inclinação já indica que o homem é, por natureza, insuficiente para ser feliz e se constituir como um ser que se baste a si mesmo.” (2017, p. 75)


A INQUIETUDE DO CORAÇÃO E O SEU LUGAR DE DESCANSO

A inquietude do coração só pode satisfazer-se verdadeiramente em Deus. O pecado corrompeu a sua direcionalidade, mas não destruiu a sua inclinação natural (2017, p. 76). Com a Queda os homens perderam de vista o único alvo de sua existência, “pois, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus nem lhe deram graças; antes, seus raciocínios tornaram fúteis e seu coração insensato se obscureceu” (Rm 1:21). Essa obscuridade só deixa de existir quando o coração, uma vez perdido, e persistentemente iludido por si mesmo, é encontrado pela graça de Deus.


REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. Coleção Espiritualidade.

MADUREIRA, Jonas. Inteligência Humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.