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Os deuses das fake news

Escrito por Raquel Eline da Silva Albuquerque, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020

INTRODUÇÃO

O livro de Neil Gaiman, Deuses Americanos, parte da premissa de que os deuses são alimentados pelas crenças das pessoas. Assim, explora a ideia de que muitos deuses morrem ou se fortalecem à medida de sua popularidade. Hoje em dia, com as redes sociais, temos uma disputa aberta por visualizações, curtidas e influência. É o campo onde também tem sido travado a batalha das ideologias.

O autor canadense David Koyzis apresentou elucidativa análise e crítica das ideologias contemporâneas de um ponto de vista cristão. Seu principal  argumento é de que as ideologias tem sua raiz na categoria bíblica da idolatria, uma visão reducionista da realidade social que evidencia um de seus aspectos, em detrimento dos demais.

Nesse cenário, uma análise do fenômeno que tem sido chamado de fake news pode demonstrar que essa produção tem um caráter operativo para a conquista de corações e mentes. Mesmo que esteja presente em tantos quantos forem os segmentos sociais, é na arena política que melhor vemos seus contornos, especialmente, nos pleitos eleitorais. E, finalmente, cabe perguntar qual é o papel da Igreja nessas disputas? É a proposta deste artigo.

O QUE SÃO IDEOLOGIAS?

Conforme proposto por Koyzis, segue-se a tradição de que a ideologia é um tipo de falsa consciência. Ainda que assim não sejam vistas por seus defensores, é razoável admiti-las uma vez que assim são consideradas diante de análises sociais. Em seu livro, restringe sua análise ao liberalismo, conservadorismo, nacionalismo, democracia e socialismo mesmo reconhecendo que existam outras. A partir disso, Koyzis identifica cinco pré-requisitos para o surgimento das ideologias.

O primeiro, é que as ideologias tem suas raízes em nos primórdios das tradições filosóficas, em geral, a partir de uma simplificação, tal qual uma reciclagem em que se aproveita um material dando-lhe uso completamente diverso do que foi originalmente pensado. Dessa maneira, postulou que a ideologia é um “tipo popularizado de teoria ou filosofia política normativa” (p. 29).

Surpreendentemente, o segundo pré-requisito é a pregação do evangelho cristão. Mesmo que o evangelho se oponha a toda falsa consciência, o cristianismo dá margem ao surgimento de falsos messias. Dada sua concretude histórica, uma vez vista de forma distorcida, abre espaço para alternativas terrenas.

Em terceiro, aparece a secularização da fé cristã. Uma separação dualista entre o sagrado e o mundano que nega a totalidade do evangelho e concede ao homem um protagonismo no conhecimento da realidade.

O quarto pré-requisitos é de que as “ideologias pressupõem a  possibilidade de movimentos políticos de massa” (p. 30). Antes reservada aos filósofos e estudiosos, o debate político só foi ampliado após o século 19. Se o socialismo foi difundido por meio de panfletos à classe do proletariado, os quarenta anos da Guerra Fria trouxeram a discussão ideológica para a disputa cultural, “como uma batalha pelo coração e pela mente das massas pelo mundo afora” (p. 31).

O quinto e último pré requisito apontado é o “aperfeiçoamento drástico das tecnologias a que os governos e os movimentos e partidos políticos têm acesso” (p. 31). Chegamos, finalmente, a essa intersecção dos temas propostos em que as fake news tem tido o caráter operativo da disseminação de ideologias e, ao mesmo tempo, das idolatrias.

FAKE NEWS E AS ELEIÇÕES

As mentiras sempre existiram. E sempre estiveram nas eleições. Entretanto, o avanço tecnológico de big data, as redes sociais e a midiatização da nossa sociedade potencializaram esses fenômenos e as desinformações tem ganhado destaque e influência decisivas nas eleições.

O escândalo chamado Cambridge Analytics que expôs a manipulação de posts do Facebook aos quais os eleitores eram expostos mediante cálculo algoritmo e reconhecimento de padrões de comportamento, demonstrou a fragilidade de direcionamento na tomada de decisões que deveriam ser livres. Aqui no Brasil, as últimas eleições deram ensejo a abertura de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para apuração de utilização de fake news e sua influência nos resultados da eleição.

E se por um lado é preocupante que a característica das fake news seja a deturpação – leve ou exagerada – de fatos, já se compreendeu que é o seu caráter enganador de desinformação, e sim na construção de um discurso polarizado. Porque o que estará em jogo não será apenas saber o que é verdade ou não, mas de produzir o sentimento de torcida… ou até mesmo de fanáticos religiosos.

E A IGREJA?

Em meio a essa torrente de ideologias, fake news e idolatrias é urgente o papel da Igreja em apontar os reducionismos e até mesmo os falsos deuses erigidos como o individualismo, a tradição, a nação, a democracia e o Estado.

Infelizmente, a Igreja brasileira ainda não entendeu essa missão, como bem diagnosticou o Reverendo Pedro Dulci:

Tudo isso corrobora o fato de a igreja cristã brasileira ser imatura em sua teologia pública e prática política. Quando entramos nos jogos de polarizações – seja a favor, seja contra esta ou aquela estrutura política -, evidenciamos que nosso culto de domingo não tem conseguido direcionar nossas decisões de segunda a sexta-feira. Não faz sentido que um discípulo do Deus vivo se comporte nas relações públicas de poder da mesma maneira que um devoto de falsos deuses. Agarrar-se com devoções religiosas a uma ideia, uma plataforma política ou até mesmo uma figura pública é a forma não cristã de fazer política. Quando observamos as comunidades cristãs locais assumindo essa preferência idólatra, estamos testemunhando nossa imaturidade teológico-política. O Brasil precisa urgentemente adquirir certa capacidade de análise filosófica que o habilite a entender como se posicionar em meio a tantas devoções religiosas. À semelhança do apóstolo Paulo em Atenas, precisamos saber o que fazer diante de tantos falsos deuses quando formos apresentar o evangelho aos filósofos do areópago. (DULCI, 2018, p. 92)

Assim, estamos diante de um desafio gigantesco de apresentarmos a nossa própria comunidade de fé o pluralismo político da fé cristã como visão de mundo com as melhores condições de contribuir para o florescimento humano.

CONCLUSÃO

Há algo bem maior em disputa do que o resultado das próximas eleições. Voltando ao livro de Neil Gaiman, é interessante trazer uma frase de um dos antigos deuses, Odin, preocupado com a disseminação de novas deidades:

Existem novos deuses crescendo nos Estados Unidos, apoiando-se em laços cada vez maiores de crenças: deuses de cartão de crédito e de auto-estrada, de internet e de telefone, de rádio, de hospital e de televisão, deuses de plástico, de bipe e de néon. Deuses orgulhosos, gordos e tolos, inchados por sua própria novidade e por sua própria importância.

As ideologias desempenham esse papel de falsear a consciência da realidade e disfarçar as idolatrias às quais estamos apegados em busca de salvação, ou de um mundo melhor. À Igreja, cabe apontar para aquele que é o caminho, a verdade e a vida, Jesus!


BIBLIOGRAFIA

DULCI, Pedro. Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2018.

KOYZIS, David. Visões & Ilusões Políticas: uma análise & crítica cristã das ideologias contemporâneas. Tradução de Lucas G. Freire. São Paulo: Vida Nova, 2014.