Escrito por Leonardo Aragão, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada 2020
INTRODUÇÃO
Estamos sempre com pressa. É isso que a vida nas grandes metrópoles revela. Bastaria alguns minutos na Avenida Paulista ou nos metrôs de Nova York para perceber que todos estão com pressa pra chegar em algum lugar. Mas será que a pressa é o modus operandi do ser humano ou fomos domesticados? O presente artigo pretende fazer uma análise da possível raiz dessa pressa, relacionando-a a hiperprodutividade e a fé ocidental no progresso.
1. A FALSA LIBERDADE DO DEUS PROGRESSO
É no fim da Idade Média, com o começo do Renascimento, do mercantilismo, das grandes navegações, que podemos começar a traçar as raízes da fé moderna no progresso.
Até aquele momento, existiam algumas barreiras na sociedade que impediam uma fé no progresso como a temos hoje, mas com o tempo, uma a uma, elas foram derrubadas. Não é à toa que este é o mesmo período em que costumamos traçar a mudança da Idade Média para a modernidade. É o rompimento dessas barreiras que permite o surgimento de uma nova ordem social, como aponta Bob Goudzwaard.1
A ideia de Goudzwaard, que abre portas para toda a análise feita por este na obra Capitalismo e Progresso, é que os sistemas econômicos e seus desenvolvimentos são filhos da cultura social (ou, no mínimo, expressões desta).2 Assim sendo, o capitalismo como o temos hoje é fruto de uma série de desenvolvimentos e circunstâncias práticas e culturais, que são os rompimentos destas barreiras.
A primeira barreira que Goudzwaard aponta é a barreira da igreja e do céu. A Idade Média via um mundo caído e sem significado. Condenado a pecaminosidade eterna, a menos que fosse direcionado para o céu. Por isso a sociedade medieval era totalmente verticalizada, hierárquica. Voltada única e exclusivamente para o céu, esquecendo-se das “coisas terrenas”.3
Contra essa visão, misturaram-se Reforma Protestante e humanismo. Contudo, o humanismo cristão de Calvino permanecia afirmando a importância da Lei de Deus para a vida e para a economia enquanto os outros humanistas se muniam de uma visão diferente para o homem, como Peter Gay afirma: “o homem é livre, o dono do seu destino, não preso ao seu lugar numa hierarquia universal, mas capaz de todas as coisas”.4 O homem renascentista nascia livre e autônomo.
A segunda barreira é a do destino e da providência. Influenciada por Agostinho, que tirou a ideia de providência dos estóicos, a sociedade medieval cria que o Deus criador era também aquele que sustentava toda a existência e a guiava em direção ao seu julgamento.5
A ideia de um destino e providência vindos de um ser que não o eu logicamente se torna uma barreira para o homem autônomo que faz o seu próprio destino. Como afirma, Goudzwaard: “A construção dessa sociedade não tolera a imagem de um Deus que governa o mundo, que estabelece o destino dos homens e mulheres, e nos momentos da própria escolha interfere diretamente nos assuntos deles com o seu juízo.”.6
Por isso a sociedade moderna progressivamente escanteia um Deus que provê e sela destinos e escolhe para si um deus que não se envolve com sua criação. É a ideia deísta. Deus é uma hipótese não mais necessária para a sociedade ocidental. É nesse espírito que nasce a economia clássica de Adam Smith (que, não coincidentemente, era deísta).7
Passando pelo domínio da natureza, pela lei natural, é possível que de Smith o mais danoso seja a influência para o nascimento do utilitarismo. É no utilitarismo que “a busca pela maior posse possível de bens à custa do menor esforço de trabalho é declarada como sendo a priori uma questão eticamente correta.”.8 Dessa forma, o utilitarismo casa-se harmoniosamente com o objetivo de rápido crescimento econômico e com a fé no progresso.
A terceira e última barreira que se rompeu foi a do paraíso perdido. Os homens tem uma nova visão de futuro, essa é a utopia imanente, é a ideia que encontra fontes já na obra de Thomas More (“Utopia” – 1516). É a nova Jerusalém alcançada por meio do progresso.9
É não só ao olhar para trás e ver tudo que o progresso ocasionou na sociedade e interpretar esses avanços como positivos, mas principalmente ao passar a entender o progresso como o meio de atingir esse futuro totalmente plausível que o progresso deixa de ser um elemento social e torna-se uma fé propriamente dita. Torna-se a certeza daquilo que não se vê.10
Aqui então a fé cristã e a fé no progresso tornam-se inimigas. Não só porque “os pensadores iluministas confessavam uma fé própria” mas também porque confessavam que
“(1) o homem não é depravado por natureza; (2) o fim da vida é a vida em si, a boa vida na terra em vez de vida santa depois da morte; (3) o homem é capaz, guiado apenas pela luz da razão e da experiência, de aperfeiçoar a boa vida na terra; e (4) a primeira e essencial condição para a boa vida na terra é a libertação da mente dos homens dos laços da ignorância e da superstição, e os seus corpos da opressão arbitrária das autoridades sociais constituídas.”11
Com o passar do tempo diferentes eventos se relacionam com a fé no progresso. As revoluções industriais ligam o progresso à tecnologia, o materialismo científico de Marx também está totalmente ligado à fé no progresso, além das evoluções no próprio sistema capitalista, como Goudzwaard aponta na segunda seção de seu livro.
O grande problema da fé é que o ídolo torna-se Senhor. É por conta disso que Bob afirma: “Em vez de ser o criador do progresso, o homem está cada vez mais tornando-se servo dele.”.12
Com o avanço do progresso, a sociedade passa a se organizar em seu redor e, por isso, o homem, que tinha o progresso como seu aliado, agora é seu escravo. O homem não usa o progresso, é usado por ele. Se um dia o apóstolo Paulo disse que o deus desconhecido do templo de Atenas era o Deus vivo, dessa vez os homens fizeram do progresso seu deus.
2. SOCIEDADE DO CANSAÇO
Com a realocação da utopia na passagem do pensamento moderno para o pós moderno, como aponta Roel Kuiper ao dizer que na pós modernidade “Utopia é um lugar no mapa do ambiente experimental subjetivo de cada pessoa.”13, o progresso deixa de ser só externo, mas torna-se também interno. Agora, progredir rumo a nova Jerusalém torna-se também progredir rumo à plena satisfação pessoal.
É aqui que nos cabe o ótimo diagnóstico de Byung-Chul Han: vivemos a sociedade do cansaço.
É possivelmente por conta da idolatria do progresso que “A sociedade do século XXI”, como aponta Chul Han, “não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção.”.14
Como o próprio filósofo sul-coreano aponta:
“Já habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produção. A partir de determinado ponto da produtividade, a técnica disciplinar ou o esquema negativo da proibição se choca rapidamente com seus limites. Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é substituído pelo paradigma do desempenho ou pelo esquema positivo do poder, pois a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento.”15
De alguma forma a sociedade precisa continuar mudando, progredindo, produzindo. É aí que a sociedade escravizada pelo deus progresso utiliza-se, nas palavras de Chul Han, da “violência neuronal” ao levar o homem a crer que produzir o máximo possível torna-se produzir a máxima satisfação pessoal.
O homem se torna hiperprodutivo. Não é coincidência que os funcionários mais premiados são os que batem as metas, alcançam os objetivos e maximizam o desempenho. O homem agora está sempre com pressa. Pressa para alcançar seus objetivos, para ir de um local a outro. Pressa, pressa, pressa. O deus progresso engoliu a preocupação ética, ambiental ou qualquer outra que fique em seu caminho.
Bom seria que a hiperprodutividade parasse aí. Temos uma geração que se sente culpada ao não produzir. Que não consegue parar de comprar porque a idolatria do progresso usa quaisquer meios necessários para não perder seu lugar. Temos uma sociedade do cansaço.
O paradigma reinante agora é de que o homem é totalmente capaz e não há impossibilidades reais que o alcancem. O homem totalmente autônomo do renascimento, do iluminismo, permanece na pós modernidade. Mas agora, ao ser confrontado com a única opção de obedecer a si e com a obrigação de ser “ele mesmo”, o homem pós moderno torna-se depressivo. Ao homem pós moderno não foi dada a opção de falhar.16
O homem agora é o eu-que-produz. Mesmo a imagem do homem de si mesmo está relacionada com a sua necessidade imputada de produzir. Como o salmista declama no salmo 115, os que adoram ídolos tornam-se como eles. É por ter sua própria imagem baseada no seu progresso que o homem vive em competição com os seus pares e parece ser incapaz de pensar em apenas subsistir.
Ao obedecer ao ídolo criado deu-se também o processo de individualização como apontado por Roel Kuiper.17 O eu-que-produz é um homem que se afastou de todas as suas relações. É o homem que abandonou alianças para estabelecer contratos. O escravo da produtividade na busca por só obedecer a si também acaba por se relacionar só consigo.
Indo além, a hiperprodutividade causada pela idolatria do progresso torna o homem incapaz de compreender a realidade. Afinal, como Herman Dooyeweerd aponta, é impossível realmente compreender a realidade se desprezarmos a experiência comum.18 É aí que a pressa, a hiperprodutividade e a sociedade ultrapositiva geram um problema também epistêmico. As crescentes doenças que acometem a tantos são causadas por essa incapacidade do homem de lidar com a realidade comum. Parece que a sociedade hiperprodutiva esqueceu-se do que costumavam dizer os antigos: e quem disse que a vida é fácil?
3. ADORANDO UM OUTRO
No afã de conquista e na ignorância da própria condição e da realidade que o cerca, o homem se frustra com sua própria impossibilidade. Mas, de fato, o único remédio para reverter uma sociedade do cansaço é por meio da derrubada dos ídolos para que se estabeleça uma cosmovisão não reducionista que consiga abranger a realidade de um cosmos caído. Não há outra maneira de escapar da violência neuronal se não por meio da adoração ao único que é digno de ser adorado. Só dessa forma o homem pode fugir dos enganos ao reconhecer sua própria impossibilidade e as limitações de uma sociedade afetada pela queda.
Enquanto formos escravos do deus progresso, que se manifesta de diferentes formas, não devemos ter qualquer esperança de fugirmos de uma sociedade do cansaço. Talvez isso explique o espírito acadêmico pós moderno que não tem mais a mesma preocupação de resolver os problemas, antes, acha prazer na atividade acadêmica ainda que não seja capaz (em sua própria concepção de mundo) de apontar qualquer horizonte de verdade.
É aqui que uma verdadeira antropologia bíblica e uma visão cristã a respeito do fim dos tempos é capaz de fazer o que a pós modernidade não fez: achar uma esperança genuína mesmo reconhecendo a impossibilidade de uma sociedade perfeita, e, por conta dela, envolver-se social e politicamente de maneira não utópica e efetiva.
Enquanto o homem continua buscando uma utopia imanente, dessa vez por meio do progresso, um cristão, não reducionista e não idólatra, não pode ser sugado pela pressa e pelo anseio pelo progresso pois essa é a receita para uma sociedade do cansaço.
CONCLUSÃO
Portanto, pode-se concluir que gradualmente a fé no progresso tornou-se parte essencial da sociedade ocidental gerando uma forma específica de capitalismo voraz. O rompimento de cada uma das barreiras herdadas da Idade Média é parte fundamental da evolução do capitalismo para a forma que temos hoje. É possível ainda apontarmos a fé no progresso como a causa de um homem com pressa e hiperprodutivo, o que causa uma verdadeira sociedade do cansaço.
Só por meio da derrubada do progresso como deus é que o homem pode achar uma saída para a sociedade do cansaço, ao se ver como mais do que o eu-que-produz e não ser mais escravo do progresso, gerando um engajamento cultural não idólatra e por isso não reducionista.
NOTAS
1. Goudzwaard, p. 33.
2. Goudzwaard, p. 27.
3. Goudzwaard, p. 39.
4. Peter Gay (1967-1969) apud Goudzwaard, p. 42.
5. Goudzwaard, cf. p. 44,45.
6. Goudzwaard, p. 47.
7. Goudzwaard, p. 49.
8. Goudzwaard, p. 57.
9. Goudzwaard, p. 66.
10. Goudzwaard, cf. p. 62-67.
11. Carl Becker (1932) apud Goudzwaard, p. 69.
12. Goudzwaard, p. 139.
13. Kuiper, p. 74.
14. Han, p.15.
15. Han, p. 16.
16. Han, p. 18.
17. Kuiper, cf. p. 101-121.
18. Dooyeweerd, p. 60.
REFERÊNCIAS
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Trad. Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.
GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Trad. Leonardo Ramos. Viçosa, MG: Ultimato, 2019.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada/ Petrópolis, RJ: Vozes, 2019. Edição do Kindle.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Trad. Francis Petra Janssen. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.