Escrito por João Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria – Turma Avançada
INTRODUÇÃO
A economia não é um terreno neutro, deslocado de outros aspectos da vida. Porém, descrições econômicas atuais parecem colocá-la num céu à parte, autônoma e forte o suficiente para trilhar seu próprio caminho. “O mercado está preocupado”, diz a manchete do jornal, como quem procura só descrever uma situação.
Cornelius Van Til, teólogo de Princeton, afirma em Graça Comum e o Evangelho que “a própria descrição é uma explicação” (VAN TIL, 2018: 54). É óbvio que uma proposta meramente descritiva esbarra na própria impossibilidade, ad aeternum, por isso são feitas escolhas, acordos, recortes que afunilam a perspectiva e permitem a observação. Neste sentido, discutiremos como a economia, aliada ao desejo de progresso, tornou-se a legisladora, a promotora, e a juíza sobre a sociedade moderna; e como a Igreja de Jesus Cristo pode se posicionar diante dela.
1. PRIMEIRAS ANÁLISES
Muitas análises econômicas modernas foram feitas desde o que se chamou, no século XVIII, de Revolução Industrial. Max Weber, Adam Smith e Karl Marx são alguns nomes bastante conhecidos por muitos de nós hoje por suas respostas às questões econômicas que surgiram a partir de 1750. Apesar das diferentes respostas, muitas vezes bastante antagônicas na superfície, como entre marxistas e liberais, é possível, cavando um pouco mais fundo, percebermos que ambas as perspectivas possuem ao menos um fator comum. E não qualquer um, mas algo que fundamenta toda a estrutura que conhecemos em ambas as propostas: a fé no progresso.
Quem nos ajuda neste sentido da reflexão é o economista holandês Bob Goudzwaard, especialmente na inspiradora obra Capitalismo e Progresso – um diagnóstico da sociedade ocidental. Em sua análise, um ponto inicial que podemos destacar é uma das possíveis definições de capitalismo, resgatada do economista austríaco Joseph Schumpeter, que “o definiu como uma forma ou um método de mudança econômica” (GOUDZWAARD, 2019: 25). Isso nos interessa, pois aponta para uma transformação decisiva na sociedade, entre o período final da baixa Idade Média e já no início da modernidade industrial. Entre esses dois períodos o vislumbre é de uma aguda mudança de paradigmas, barreiras muito bem estabelecidas são superadas e descobre-se uma nova sociedade. Estes são os anos do Renascimento, acompanhados pela Reforma Protestante, que deram à sociedade uma visão horizontalizada, onde o ser humano era capaz de organizar a própria vida, e reorganizá-la quantas vezes julgasse interessante – em contraste com a estabelecida visão verticalizada, onde o status quo social estava dado, apontando indistintamente para o céu. Ou seja, no medievo, o mundo estava organizado como deveria ser, e cada um contentava-se com a posição social em que se encontrava; a partir do Renascimento o Homem viu-se diante da possibilidade de progredir, desenvolver-se, e isso deu a ele uma nova perspectiva, otimista em relação a si mesmo e à natureza. Aliás, esta, não era mais tão somente o lugar de habitação do Homem, mas o seu local de desenvolvimento. E isso é empolgante, o Homem está livre para dominar.
Esta nova perspectiva retira do horizonte a ideia de Providência, ligada à esperança cristã, e dá ao Homem da Renascença uma base particular, autônoma, – a iniciativa e o empreendimento. Isso, é claro, possui características práticas, que falaremos mais a frente, porém, é preciso dizer o que tudo isso significou na mente e no coração do Homem moderno.
Já que o desenvolvimento autorreferente do Homem era a regra da estrutura social, o que a fundamentava mais profundamente? Bem, Bob Goudzwaard fala sobre três “provedores de significado”, que servem como guias do próprio progresso. São eles, o crescimento econômico, a inovação tecnológica e os avanços científicos (cf. GOUDZWAARD, 2019: 200).
Chama-nos a atenção a força com a qual este tripé se estabeleceu, não só na estrutura social, mas nos corações dos Homens, que estavam agora dispostos a orientar-se por eles. Para compreendermos esse fenômeno talvez possamos fazer uma breve aproximação com a imagem que o teólogo norte-americano John Frame trata em sua obra: o triperspectivismo.
Segundo a teologia de Frame, “o conhecimento da Lei de Deus, o do mundo, e o do eu são interdependentes e, em última instância, idênticos” (FRAME, 2010: 105), ou seja, Deus, a situação e o eu, são perspectivas distintas do conhecimento e do significado buscado pelos Homens, que só podem ser conhecidos olhando para as relações de uns com os outros. Este olhar abrangente é necessário, portanto. Seguindo o argumento de Frame, erramos quando julgamos conhecer algo apenas por uma das perspectivas. Em teologia, se enfatizamos o aspecto da Lei, nos tornamos legalistas; caso nos concentremos apenas no aspecto do eu, caímos no experiencialismo vazio; e, se nos debruçamos nos aspectos do mundo, vamos ao encontro do relativismo. Do mesmo modo, não se faz ciência sem uma norma externa, apenas sobre uma das perspectivas.
Retomando a proposta de Goudzwaard e os seus produtores de significado, entendemos sua força quando compreendemos que juntos eles constituem um olhar triperspectivista, como Frame focaliza, sobre a realidade do Homem moderno. O tripé da modernidade responde aos anseios do conhecimento humano onde o avanço científico autônomo dita a norma (perspectiva normativa), a tecnologia molda o ambiente (perspectiva situacional), e o crescimento econômico transforma e satisfaz o indivíduo (perspectiva existencial). Assim, o coração do Homem está pleno de significado e pronto para agir num novo projeto de sociedade, suas ansiedades normativas, situacionais e existenciais, foram unidas sob a égide da fé no progresso.
2. FÉ NO PROGRESSO
Goudzwaard assinala que essa estrutura social fundamenta empreendedores, investidores e consumidores. Os processos de produção e consumo além do valor do trabalho e do ócio também são afetados e ressignificados. Toda a prática social aponta para o progresso a partir de si. Nas palavras dele:
“A sociedade ocidental revela os traços de uma sociedade fechada ou túnel. No período de dois séculos, ela se cristalizou como um sistema fechado e funcional de normas, valores, instituições e padrões comportamentais em benefício do desenvolvimento econômico, tecnológico e científico contínuo que equiparamos à liberdade social e ao avanço cultural” (GOUDZWAARD, 2019: 200).
Estamos diante, portanto, de um sistema abrangente e orientado desde as raízes para a crença irrestrita no progresso. Por isso dissemos no início do primeiro capítulo que as propostas de marxistas e liberais não são tão diferentes quanto parecem. Ainda que seus edifícios difiram, “marxismo e capitalismo são como irmãos que se odeiam e se invejam. Ambos são descendentes diretos da fé iluminista no progresso” (Goudzwaard, 2019: 101).
O que nos assalta, afinal, é que o capitalismo e o progresso não são sistemas suficientes. Não correspondem àquilo que se propõe, e mesmo a pretensa liberdade que o gerou agora parece tolhida, como consequência imediata das relações ditas autônomas. Inicialmente nos deparamos com 3 questões que mostram a insuficiência prática do sistema. Em primeiro lugar temos o limite do meio ambiente – até quando teremos recursos naturais suficientes para a manutenção do progresso num ritmo cada vez mais avassalador? Em segundo lugar, a própria vulnerabilidade do sistema pode ser comprovada tendo em vista os índices de desemprego, má distribuição de bens, inflação, e outros desequilíbrios econômicos que gritam por intervenção externa – política-governamental. E em terceiro lugar, a insuficiência do ser humano enquanto agente ativo e passivo das atividades e movimentos do progresso. Nesse sentido há um esgotamento humano, em todas as áreas, como a familiar, afetiva, profissional, existencial. Parece que a fé na própria autodeterminação tornou-se um fardo pesado demais para o ser humano carregar, e nos novos arranjos de fé, por sermos incapazes de produzir um solo fértil e um destino seguro, terminamos reféns, de nós mesmos.
Apontamos até aqui que a questão que envolve o capitalismo e o progresso no desenvolvimento do ocidente não diz respeito apenas a ajustes estruturais sociais, como boa parte das análises descritivas se propõem a fazer, mas trata das questões últimas do coração e da alma humana, que chamamos de motivos religiosos coração, seguindo a tradição reformacional holandesa. “Tornou-se evidente que o motivo do progresso não era apenas um dos muitos motivos possíveis para a ação, mas que revelava inegáveis implicações religiosas” (GOUDZWAARD, 2019: 170). Portanto uma perspectiva meramente situacional, que busca medidas paliativas como novos investimentos ou correção de juros, não toca o problema. Tampouco as filosofias e ideologias de resposta aos problemas como o existencialismo e a dialética materialista dão conta da raiz da situação.
Nossa responsabilidade ante toda essa conjunção é irmos direto ao cerne do problema, a orientação religiosa que assumiu o progresso. Não será a primeira vez que o povo de Deus é chamado a eliminar ídolos e a contaminação da idolatria, porque no final das contas é disso que se trata.
Seguindo a metáfora da sociedade fechada, podemos nos espelhar em Bob Goudzwaard e propor a abertura da sociedade, para que saiamos desse ciclo que atualmente, ainda que com medidas corretivas posteriores, acaba alimentando mais ainda o problema principal. Contudo, para efetivação dessa abertura, não bastam planos bem definidos, “não se trata de um objetivo; em vez disso, trata-se de um processo” (GOUDZWAARD. 2019: 202), justamente porque o problema não é estrutural, já que “nenhuma estrutura da sociedade pode ser tão boa a ponto de poder superar o mal que há no homem” (GOUDZWAARD, 2019: 203).
Lembrando da associação que fizemos com o triperspectivismo de John Frame, o processo de abertura da sociedade precisa, evidentemente, penetrar pelas três direções, redirecionando-as para a direção correta da fé em Deus. A norma da fé aponta para Deus e isso é inegociável, a perspectiva situacional não pode ser estruturada na tecnologia que molda o estilo de vida mas em valores morais, e a perspectiva existencial não pode reduzir o ser humano a um consumidor do mercado, mas restaurar sua individualidade como imagem de Deus. Diz Goudzwaard:
“A abertura é mais do que isso [um plano], tanto no escopo quanto na penetração. Ela toca a sociedade na sua totalidade, pois envolve não apenas uma mudança em toda a perspectiva social e na ideia de sentido e significado em toda perspectiva social e na ideia de sentido e significado (na dimensão religiosa), mas também no estilo de vida e nos valores sociais (na dimensão cultural), bem como na distribuição de tarefas e responsabilidades na sociedade (na dimensão estrutural). As estruturas sociais […] estão enraizadas numa cultura e numa crença sobre o significado da vida humana.” (GOUDZWAARD, 2019: 203).
CONCLUSÃO
Por fim, de toda nossa discussão, algo precisa ficar cristalizado. É preciso fazer as perguntas certas, e chegar ao centro da questão. As respostas só serão certeiras se as perguntas também forem, e isso é imprescindível. Bons ajustes que mantém a fé do ser humano no progresso sequer tangenciam o problema, e é aí que precisamos dedicar nossos esforços.
A economia, o progresso, o trabalho, a produção e o consumo não são terrenos neutros que olhamos de fora, ingenuamente. Talvez este pensamento seja um dos causadores dos atuais problemas que enfrentamos. A responsabilidade moral da Igreja de Jesus Cristo é de colocar todas as coisas, e a si mesmo, diante de Deus, para que em todas elas Ele seja glorificado, e o ser humano não seja nem mais nem menos do que deve ser. Só assim se supera a angústia do Homem que até então olhou para si mesmo e se viu saturado e insuficiente. Só em Cristo todas as coisas podem ser satisfeitas, desde agora e para sempre.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRAME, John. A doutrina do conhecimento de Deus. Tradução de Odayr Olivetti. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010.
GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e Progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Traduzido por Leonardo Ramos. Viçosa: Ultimato, 2019.
TIL, Cornelius Van. Graça Comum e o Evangelho. Traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.