Escrito por Irving Damasceno, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021
INTRODUÇÃO
Artistas lutam com um problema inerente ao reconhecimento por suas obras: a limitação. Ao atingirem a “fama” com determinada obra, acabam sendo reconhecidos apenas por elas e suas outras obras (tão boas quanto, ou até melhores) acabam sendo menosprezadas. Com filósofos e teólogos isso não é diferente: às vezes um autor é responsável por guinadas em várias linhas de pensamento, mas acaba sendo reconhecido apenas por uma delas. O autor que trataremos nesse artigo é um grande exemplo disso. Autor de várias obras, Anselmo viria a se tornar conhecido (majoritariamente) por uma obra que mais gerou atrito: o Proslogion. Contudo, nosso objetivo ao longo desse trecho, será mostrar que, além do argumento ontológico, Anselmo produziu conteúdos variados – inclusive no próprio Proslogion, que normalmente é reduzido à sua apresentação do argumento da existência divina. Anselmo produziu muito mais, e abençoou a igreja com muito mais do que apenas o uso da lógica para “comprovar” a existência divina.
ANSELMO E O ARGUMENTO ONTOLÓGICO
Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109) foi um filósofo-teólogo conhecido (mas não tanto) da Idade Média. Tornou-se monge aos 27 anos e depois viria a se tornar o primeiro arcebispo de Cantuária (após a conquista da normanda da Inglaterra). Grande estudioso, escreveu várias obras, mas uma em especial veio a causar muito conflito ao longo de toda a história da filosofia: o Proslogion. Anselmo já vinha construindo sua argumentação acerca da existência divina desde o Monologion, uma obra anterior, de fato1. Contudo, é na segunda que o argumento toma a sua forma clássica, a forma ontológica (nomeado de Argumento Ontológico por Kant, séculos depois).
Nos capítulos iniciais do livro, Anselmo já expõe a sua argumentação. De forma clara e simples, Stephen Evans resume o argumento dessa forma:
“Mesmo para negar a existência de Deus, o tolo deve ter uma compreensão do conceito de Deus. Deus pelo menos deve existir como uma ideia na mente do tolo. Que ideia é essa? Anselmo diz que Deus é o maior ser possível, “um ser do qual nenhum maior pode ser concebido.” No entanto, Anselmo afirma que, se concebo Deus como o maior ser possível, não devo acreditar que ele existe apenas em minha mente. Obviamente, um ser que existisse na realidade e na minha mente seria maior do que um ser que existe apenas na minha mente. Portanto, dizer que Deus existe apenas em minha mente é dizer que o maior ser possível não é o maior ser possível. Deus deve existir na realidade, e o tolo é um tolo porque a própria ideia de Deus que o tolo deve possuir para negar a existência de Deus mostra que Deus deve existir.”2
Esse argumento não foi algo tão bem recebido mesmo em sua época. Um monge contemporâneo de Anselmo, Gaunilo, escreveu a ele uma contra-argumentação clara e direta, levantando muitos pontos que via como incoerentes da argumentação de Anselmo. O ponto mais famoso da manifestação de Gaunilo é a ideia da “ilha perfeita”. Observe:
“Então, segue a famosa ilustração de Gaunilo, da ilha perdida. Tal ilha é a melhor de todas as ilhas. Suas riquezas e delícias são inestimáveis. Ora, portanto, se o argumento ontológico fosse válido, poderíamos concluir: “Você não pode mais duvidar da existência dessa ilha desconhecida, que é a mais excelente de todas as ilhas, uma vez que você não mais tem dúvida de que ela está em seu entendimento. E uma vez que é mais excelente não tê-la só no entendimento, mas que ela exista no entendimento e na realidade, por isso, ela tem de existir. Pois, se não existir, qualquer terra que realmente exista será mais excelente do que ela; e assim, a ilha já entendida como sendo mais excelente, não será mais excelente”.3
O argumento de Anselmo foi sujeito a muitas outras críticas ao decorrer da filosofia, mas também teve defensores em todas as épocas. Depois de Gaunilo, Aquino, Hume, Kant, Bertrand Russell, Michael Martin e muitos outros rejeitaram a prova. Entretanto, Descartes, Spinoza, Leibniz, Hegel, Whitehead, Hartshorne, Norman Malcolm e Alvin Plantinga aceitaram várias formas dela.4 Mesmo que o argumento possa ser errado, mostrar algum erro provou-se algo difícil ao longo da história. Como é típico dos argumentos filosóficos, cada tentativa de refutar o argumento atraiu seus próprios refutadores.
A EXTENSÃO DO PROSLOGION
Como mostrado, o argumento ontológico inicia a obra do autor e é digno de muitas críticas (ou louvores). Entretanto, nossa defesa é para que vejamos o Proslogion como um todo. A princípio, o texto não é dirigido a não-cristãos secularizados pós-iluminismo. Precisamos entender que a obra foi escrita para leitores cristãos professos. Anselmo redige sua obra em formato de confissões a Deus e, já no começo do texto, declara: “eu creio para que possa entender”. Então, precisamos ver o texto como possuindo um ponto de partida cristão (apesar de Anselmo dizer que dirige sua argumentação “ao tolo que diz ‘não há Deus’” [Sl 14.1]).
Entretanto, a obra segue com uma profundidade teológica muito maior ao longo de sua redação. Ele parte do argumento em prol da existência divina para argumentos direcionados às dúvidas quanto a ontologia desse Deus. Ele trata questionamentos da época (que continuam sendo questionamentos feitos até hoje), como, “como Deus pode ser misericordioso e impassível?” ou “como pode castigar alguns e perdoar a outros?”, à luz das Escrituras, explicando a realidade de quem Deus é.
Então, por mais que discordemos do argumento ontológico do autor, não podemos negar a grandiosidade teológica e piedosa da obra ao longo do texto e como ele levanta algumas das discussões que mencionamos acima e que discutiremos a seguir.
A princípio, no capítulo 7, Anselmo tenta responder a essa pergunta: “como Deus é onipotente embora muitas coisas lhe sejam impassíveis?”. A resposta de Anselmo é breve, mas sagaz: fazer o mal não é poder, mas impotência – por isso não há “poder para fazer o mal”, mas sim uma “impotência” que faz com que sejamos dominados e façamos o mal.
Muitas vezes lidamos com esses questionamentos. Vemos uma pretensa liberdade que não-cristãos possuem, aparentemente vivendo uma vida sem renúncia, e sentimo-nos tentados a renunciar à vida cristã em prol dessas “alegrias terrenas”. O que Anselmo faz é nos mostrar que o poder fazer o mal (o que não agrada a Deus) não é potência, mas impotência. Fazer aquilo que não nos convém não é poder, mas é fraqueza – afinal, “quanto mais poderoso é neste sentido, tanto mais fortes são contra ele o infortúnio e a perversidade, e tanto mais ele é fraco contra elas. Assim, pois, Senhor nosso Deus, tu és verdadeiramente onipotente, porque nada podes no que é fruto da impotência e nada pode contra ti” 5 .
Um pouco mais adiante, no capítulo 10, Anselmo toca no ponto da justiça. Muito se discute sobre “como um Deus justo pode perdoar alguns e condenar a outros?”. Desde Anselmo essas perguntas já eram feitas e ele abordou-as de uma forma clara e concisa: quando castiga o mau (o pecador) Ele o faz porque é justo – afinal, todos merecemos esse castigo. Contudo, quando Ele perdoa alguns, Ele também é justo – pois a vontade dEle está se conformando com a bondade dEle e não com os merecimentos deles.
Anselmo aqui reitera o monergismo, ao negar qualquer participação nossa na salvação: “Ao perdoares os maus, és justo segundo a tua justiça, e não de acordo com as nossas obras, assim como és misericordioso segundo aquilo que somos, e não segundo aquilo que és”6 .
ECOS AGOSTINIANOS
O primeiro arcebispo da Cantuária é o autor desse período da Idade Média cujos escritos estão mais próximos de Agostinho7. Frame ressalta sua argumentação acerca da causalidade (Deus como primeira causa), da Trindade e da relação fé e razão como pontos de contato entre a teologia Agostiniana e a Anselmiana. Contudo, talvez um dos pontos mais próximos é a relação conhecimento de Deus e a alegria.
O primeiro arcebispo da Cantuária é o autor desse período da Idade Média cujos escritos estão mais próximos de Agostinho7. Frame ressalta sua argumentação acerca da causalidade (Deus como primeira causa), da Trindade e da relação fé e razão como pontos de contato entre a teologia Agostiniana e a Anselmiana. Contudo, talvez um dos pontos mais próximos é a relação conhecimento de Deus e a alegria.
Já na finalização do livro, Anselmo roga:
Eu te suplico, Senhor: faz com que eu te conheça, com que eu te ame, a fim de que eu encontre em ti toda a minha alegria. E se neste mundo não posso alcançar a plenitude dessas coisas, que ao menos elas cresçam em mim a cada dia até alcançarem a plenitude. Que neste mundo cada instante me eleve mais ao conhecimento de ti, até chegar o momento de sua plenitude. Que meu amor por ti aumente nesta vida e na outra atinja a plenitude, a fim de que aqui a minha alegria na esperança seja sempre maior, e aí seja plena junto a ti. Senhor, por intermédio de teu Filho nos ordenas, ou, antes, nos aconselhas a que peçamos e prometes que receberemos, a fim de que nosso gozo seja perfeito.8
O teólogo reconhece que, para que sua alegria seja plena, é necessário o conhecimento do Pai. Antes disso, ele manifesta que esse conhecimento de Deus só é possível por uma revelação direta dEle – que se revelou ao longo da história culminando com o envio do Seu Filho amado. E ele então conclui:
Peço-te, Deus veraz: faz com que eu receba, para que a minha alegria seja plena. Que seja este o objeto das meditações de minha alma e das palavras de minha língua. Que seja este o objeto do amor de meu coração e das palavras de minha boca. Que minha alma disso tenha fome, que minha carne disso tenha sede, que minha substância inteira o deseje, até que entre no gozo de seu Senhor, Deus uno e trino, bendito por todos os séculos. Amém.9
CONCLUSÃO
Você pode não concordar com o argumento ontológico, contudo, é inegável a preciosidade da obra de Anselmo. Seu confessionário direto com o Pai vai muito além de uma argumentação acerca de sua existência, e passa a ser uma exposição acerca da natureza revelada do Autor da criação. Anselmo reconhece que Deus é a própria vida, e afirma: “És, pois, a própria vida pela qual vives, a sabedoria pela qual és sábio, a bondade pela qual és bom para com os bons e os maus, e assim por diante com os demais atributos”10. A declaração do filósofo é o reconhecimento de que a existência divina é uma direta correlação com Seus atributos. E que, muito além de compreender a lógica da existência, o cristão deve se debruçar sobre o conhecimento da ontologia divina – conhecer quem Ele é, e não só testificar a sua existência. Para que desse conhecimento prossiga uma mudança de vida, uma metanoia completa. Afinal, você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem — e tremem! (Tg 2:19 – NVI).
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NOTAS
1. EVANS, C. Stephen. A history of western philosophy: from the pre-Socratics to Postmodernism. 1. Ed. Downers Grove : InterVarsity Press, 2018, p.156-157.
2. Ibid., p. 157-158.
3. CLARK, Gordon Haddon. De Tales a Dewey. Tradução: Wadislau Gomes. 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 220.
4. FRAME, John M. A history of western philosophy and theology. 1. Ed. Nova Jersey: P&R Publishing, 2015, p. 137.
5. ANSELMO de Cantuária, Santo. Proslógio. Tradução: Sérgio de Carvalho Pachá. Porto Alegre: Concreta, 2016. Kindle Edition, LOC 892.
6. Ibid., LOC 932.
7. FRAME op. cit., p.128-129.
8. ANSELMO op. cit., LOC 1125.
9. Ibid, LOC 1139.
10. Ibid, LOC 957.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. Patrística – Confissões – Vol. 10. Tradução: Maria Luiza Jardim Amarante. 1. Ed. São Paulo: Paulus Editora, 1997.
ANSELMO de Cantuária, Santo. Proslogio. Tradução: Sérgio de Carvalho Pachá. Porto Alegre: Concreta, 2016. Kindle Edition.
AUDI, Robert. The Cambridge dictionary of philosophy. 3. Ed. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2015.
CLARK, Gordon Haddon. De Tales a Dewey. Tradução: Wadislau Gomes. 1. Ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
EVANS, C. Stephen. A history of western philosophy: from the pre-Socratics to Postmodernism. 1. Ed. Downers Grove : InterVarsity Press, 2018.
FRAME, John M. A history of western philosophy and theology. 1. Ed. Nova Jersey: P&R Publishing, 2015.
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental – Volume 2: Filosofia medieval. Tradução: Carlos Alberto Bárbaro. 2. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.