Escrito por Daniel Ponick Botke, estudande do Programa de Tutoria Filosófica 2021
A leitura isolada do chamado argumento ontológico de Anselmo de Cantuária pode dar a impressão ao leitor de uma tendência intelectualista e renascentista presente neste filósofo medieval. A simples leitura de que não há como negar a existência de um ser maior sobre qualquer outro ser, tornando assim a existência de Deus necessária, pode parecer um racionalismo puro e estéril de qualquer fé, um conhecer para crer. E esta de fato foi a leitura recorrente e predominante deste gigante medieval. No entanto, esta é uma leitura um tanto quanto desonesta da obra desse profícuo filósofo. A simples leitura de sua obra Proslógio logo revela a ausência desta razão independente na busca de fatos para crer, mas encontramos nesta obra uma mistura de ascese com revelação divina, um elevar-se e um quebrantar-se, uma busca e um clamor para ser buscado.
Anselmo, assim como qualquer ser humano, é um filho do seu tempo. Percebemos em diversos trechos do Proslógio sua clara influência de Platão e Aristóteles. Em alguns trechos na sua busca por Deus, que é o ser supremo, ele beira o unitarismo, assemelhando-se muito ao pensamento do primeiro motor:
Não há, portanto, partes em ti, Senhor. Não és múltiplo, mas, pelo contrário, de tal modo és uno e idêntico a ti mesmo que em nada te diferencias de ti mesmo. Pelo contrário: és a unidade mesma, que nenhum intelecto pode dividir. (Cantuária, 2016)
Em outros trechos podemos perceber a influência de Platão em sua obra, colocando o mundo das ideias de na mente do Criador, o qual seria a fonte perfeita de tudo que percebemos em partes na realidade. Em outros momentos podemos perceber sua preferência e elevação do espiritual sobre o material, em uma clara desvalorização da matéria. E, por fim, vemos uma clara referência a ideia da Luz inacessível proveniente de Platão, ao mesmo tempo que esboça uma tentativa de ascese espiritual a esta luz inacessível:
Mas decerto habitas uma luz inacessível. E onde está essa luz inacessível? Ou como terei acesso a esta luz inacessível? Quem me guiará e conduzirá a essa morada de luz para que nela te veja? Por meio de que sinais? Nunca te vi, Senhor meu Deus, não conheço tua face. (Cantuária, 2016)
Mas ao mesmo tempo podemos observar em seus escritos outra influência, também de um filósofo, mas desta vez de Agostinho. Sua influência pode ser percebida em dois momentos. Em primeiro lugar, na forma de escrita filosófica do Proslógio, não em sentenças proposições dialéticas, mas muito semelhante ao estilo das Confissões de Santo Agostinho. Em segundo lugar, podemos ver a influência de Agostinho no anseio de Anselmo de conhecer o eterno, mas ao mesmo tempo sabendo que não consegue alcançá-lo. Podemos ver esta influência em trechos do Proslógio, como:
Anseia por ver-te e demasiado dista a tua face. Deseja ter acesso a ti e tua morada é inacessível. Anseia por encontrar-te e ignora onde vives. Gostaria de procurar-te e desconhece os traços de teu rosto. Senhor, és o meu Deus e meu Senhor e jamais te vi. Fizeste-me e refizeste-me, concedeste-me todos os bens que possuo e ainda não te conheci. Enfim, fui feito para ver-te e ainda não alcancei a finalidade de meu nascimento. (Cantuária, 2016) [Grifo nosso]
Neste trio de influências observadas em Anselmo, obviamente três dentre tantos nomes que podem ser arrolados aqui, podemos perceber algumas coisas. Em primeiro lugar que ele era filho do seu tempo, como não poderia deixar de ser. Como contemporâneo da Escolástica ele era constantemente apresentado a sínteses entre Platão e as Sagradas Escrituras. Mas ao mesmo tempo, podemos ver uma ambiguidade em sua postura. Ao mesmo tempo que ele diz que quer se elevar ao eterno, dando uma ideia de ascese platônica ao mundo das ideias, que estaria no eterno, ele confessa que não pode fazê-lo por si mesmo. Ao mesmo tempo que ele usa o termo luz inacessível para se referir a Deus, um termo platônico, ele não somente fala sobre esta luz inacessível, demonstrando que ela não é de toda inacessível, como também pede por auxílio da própria luz para acessar o que seria inacessível.
Seja-me permitido volver meus olhos para a tua luz, ao menos de longe, ao menos do fundo de meu abismo. Ensina-me a buscar-te, mostra-te a quem te busca, porque não posso buscar-te se não me ensinas o caminho. Não posso encontrar-te se não te mostras a mim. Que eu te busque desejando-te, que eu te deseje buscando-te, que eu te encontre amando-te, que eu te ame encontrando-te. Reconheço, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagem, para que me lembre de ti, para que pense em ti, para que te ame. Mas tão destruída está ela por obra dos vícios, tão escurecida pelo fumo dos pecados, que não pode alcançar o fim a que fora destinada, a não ser que a reformes e renoves. Não tento, Senhor, penetrar tua profundidade, pois a ela de modo algum pode comparar-se minha inteligência; mas desejo, na medida de minhas forças, compreender tua verdade, em que crê e que ama meu coração. Pois não busco entender para crer, mas creio para entender. Creio, com efeito, pois, se não crer, não entenderei. (Cantuária, 2016) [Grifo nosso]
O que queremos demonstrar com isso é que aqueles que consideraram Anselmo de Cantuária tão somente um filho do seu tempo, que buscava fatos da existência de Deus para que pudesse crer nele, que buscava conhecer para crer, não fazem jus a obra deste gigante medieval, ou por desconhecimento da sua obra completa, se atendo apenas ao argumento ontológico que é uma mísera fração de seus escritos, ou por real desonestidade intelectual.
O que dizer, portanto, de Anselmo? Foi um exímio teólogo que conseguiu se desvencilhar de todas as influências do seu tempo? Certamente não. Como já demonstramos aqui, ele era de fato filho do seu tempo, o que é inevitável, todos somos, todos nós temos nossas influências. Mesmo que muitas vezes não consigamos observar quais são estas agora, caso alguém no futuro se dê ao trabalho de ler nossos escritos, certamente conseguirá identificar muita pós-modernidade em nós, se é que esta era ainda assim será chamada por eles.
Não queremos dizer com isso que é normal ser filho do seu tempo e precisamos dar um “desconto para Anselmo”, ao invés disso queremos demonstrar que, além de filho do seu tempo, Anselmo era um piedoso filho de Deus. Como ele mesmo escreveu: “Pois não busco entender para crer, mas creio para entender. Creio, com efeito, pois, se não crer, não entenderei.” (Cantuária, 2016). Sua busca não era provas para que pudesse crer em Deus, mas uma vez crendo, buscava “conhecer e prosseguir em conhecer o SENHOR” (Os 6.3). Aqueles que taxam Anselmo de Escolástico pura e simplesmente, tem de admitir pelo menos sua ambiguidade. Tem de admitir que sua ascese ao “mundo das ideias” é auxiliada pelo Senhor das ideias, que o seu conhecer de Deus, é um conhecimento revelado por Ele ao homem, criatura sua, criado a sua imagem.
O que queremos dizer com tudo isso, é que Anselmo de Cantuária nos ensina a forma como nós, cristãos, devemos fazer filosofia, que é de joelhos. Devemos buscar conhecimento clamando aquele que é a fonte de todo saber. Devemos buscar a Luz que ilumina a todos os homens clamando que ela nos ilumine a nós. Devemos nos humilhar, para que pela sua misericórdia, Deus nos eleve a Ele.
Ao fim do Proslógio, Anselmo não exulta a razão e o conhecimento por ele produzido, não exulta ao argumento ontológico, mas exulta e Glorifica o Deus trino que se revela a criaturas como eu e você. Que possamos assim trabalhar, de joelhos, buscando auxílio daquele que é o único merecedor de toda honra e Glória, o Deus Eterno, o Pai de Luz, o Deus triúno. A Ele a Glória Eternamente. Amém.
Que Deus nos ajude, amém
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BIBLIOGRAFIA
ANSELMO de Cantuária, Santo. Proslógio. Trad. Sérgio de Carvalho Pachá. Porto Alegre-RS: Concreta, 2016.