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Visão dividida: porque o pensamento dualista ainda é uma barreira ao avanço da igreja

Escrito por Stela Portes Soares, estudante do Programa de Tutoria – Turma Essencial 2021

O que o irmão faz na vida secular? É possível que você já tenha ouvido essa pergunta. Ela diz muito sobre a maneira de enxergar a realidade, que ainda hoje permeia a mente cristã. Trata-se de uma visão dualista. O dualismo é uma cosmovisão que divide a realidade em dois aspectos distintos: Sagrado e Secular (WALSH, MIDDLETON, 2010, p. 83). Há uma separação em um mundo espiritual bom e mundo material mau (GOHEEN, BARTHOLOMEW, 2008, p. 120). Advinda dos gregos, encontra em Platão e Aristóteles sua maior expressão que influenciou poderosamente o pensamento cristão (GOHEEN, BARTHOLOMEW, 2008, p. 90, 118). Essa visão grega dual da realidade permanece até hoje, inclusive dentro do evangelicalismo brasileiro.

Por meio deste artigo pretendo pontuar alguns aspectos do porquê essa maneira de pensar ainda é “pedra de tropeço” aos cristãos e, consequentemente, à igreja. É claro que não irei esgotar todos os motivos aqui, porém creio serem suficientes para sustentar a tese em questão.

Na visão dualista há uma supervalorização do aspecto espiritual (sagrado), em relação ao aspecto material (secular). A oração e a leitura da Bíblia seriam atividades sagradas e o lazer seria meramente secular. Da mesma forma, o pastor ou missionário estariam servindo a Deus em suas atividades e o professor estaria apenas exercendo uma atividade secular (GOHEEN, BARTHOLOMEW, 2008, p. 106). Essa separação é problemática, pois desconecta a fé com o restante da vida, levando o cristão a viver de forma fragmentada. Essa cosmovisão é conflitante com a cosmovisão bíblica, pois o que nos é oferecido através do teodrama divino não são fragmentos, e sim uma metanarrativa de criação, queda e redenção tecida em uma peça única. Tudo que Deus criou é, em sua essência, bom, mas foi corrompido pelo pecado, e no devido tempo será restaurado.

“Deus criou todas as coisas para que encontrem seu devido lugar em um mundo muito bom. Quer “sagrada”, quer “secular”, cada coisa criada foi manchada pelo pecado, e cada uma pode ser, e será, purificada e restaurada para estar em conformidade com a vontade de Deus” (GOHEEN, BARTHOLOMEW, 2008, p. 107).

No livro A visão transformadora, os autores Brian J. Walsh e J. Richard Middleton levantam algumas perguntas dentro do texto de Lucas 4.18-19, tais quais: “Onde, pois, está o evangelho? Onde estão as boas-novas personificadas culturalmente? Se o reino dos céus é chegado, porque os pobres não ouvem as boas novas? (…) Por que as igrejas não vivem pelo que confessam?” (WALSH, MIDDLETON, 2010, p. 81).

Essas perguntas têm suas respostas na fé cristã que não é aplicada na vida como um todo. Resultado de uma realidade fragmentada por uma cosmovisão dualista. É preciso recuperar o evangelho como a verdadeira narrativa do nosso mundo (GOHEEN, BARTHOLOMEW, 2008, p. 33), e isso inclui o ser humano por completo. Quando o cristão vive à revelia desta verdade, aquilo que ele faz fora do ambiente eclesiástico passa a não ter sentido dentro daquilo que ele crê. Parece não valer a pena se dedicar a ele com esmero e que a vida cristã nada tem a ver com as atividades ditas “seculares”. No entanto, se tudo o que fazemos, o fazemos para a glória de Deus, o trabalho, o lazer, a faxina da casa ou tudo mais tem a ver com a vida cristã. É preciso entender de uma vez por todas que:

“(…) o evangelho é verdade pública, universalmente válida, verdadeira para todas as pessoas e a para a totalidade da vida humana. Não é somente para a esfera pessoal da experiência ‘religiosa’” (GOHEEN, BARTHOLOMEW, 2008, p. 26).

A falta de uma visão integral da vida hierarquiza a realidade como se algumas esferas fossem mais importantes que outras. Essa ideia está em completo desacordo com as escrituras. Além disso, denuncia um entendimento incompleto dos efeitos da queda, que atingiu não somente algumas áreas da vida, mas toda a realidade. Realidade essa que no fim será restaurada em sua totalidade. Francis Schaeffer explica em seu livro A morte da razão que “do ponto de vista bíblico, a natureza é importante porque foi criada por Deus; por isso, não deve ser menosprezada (…) Tudo se integra no fato de que Deus nos outorgou na própria natureza uma dádiva excelente. Portanto, se o homem a desdenha (…) em certo sentido, o homem está desprezando o próprio Deus, já que despreza quem o criou” (SCHAEFFER, 2014, p. 15). O dualismo empobrece a experiência do cristão no mundo e sua relação com o próprio Deus, por consequência afeta a presença pública da igreja.

Dessa forma fica claro que é preciso ajustar as lentes para enxergar a vida integral e multifacetada que o Criador nos concedeu. Somente a partir da visão rica que a narrativa bíblica oferece, é que os cristãos e a igreja, conseguirão viver a missão de Deus de forma íntegra. Parafraseando Elisabeth Elliot: “Ser um profissional, pastor, mãe, seja o que for, não o faz um tipo diferente de cristão, mas ser cristão o faz um tipo diferente de pessoa, seja qual for sua função”. O pastor e professor Pedro Dulci nos lembra que a efetividade da fidelidade do nosso testemunho vai depender do quanto estamos preparados. É preciso estar bem alicerçado no conhecimento de Deus, e no conhecimento teológico. Uma compreensão clara da grande narrativa divina da criação, queda e redenção sendo a história do povo de Deus da qual eu e você fazemos parte. A criação (toda a realidade) em si, é boa, mas foi corrompida ao ser afetada pela queda e agora carece de restauração. A restauração chegará no devido tempo, mas até lá cabe a nós sermos presenças fiéis seja onde for, no trabalho, em casa ou na igreja.

“Deus criou o homem (e toda a criação) no seu todo, e o homem todo (e toda a criação) é importante.” (SCHAEFFER, 2014, p. 54)

Somente a partir deste entendimento, livre de dualismos é que o cristão, por sua vez, a igreja poderá avançar na missão (todo-abrangente) de anunciar de maneira fiel as boas novas.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

WALSH, J. Brian; MIDDLETON, J. Richard. A visão transformadora: moldando uma cosmovisão cristã. Trad. Valdeci Santos. 1. ed. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2010.

GOHEEN, Michael W.; BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à cosmovisão cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e contemporânea. Trad. Marcio Loureiro Redondo. 1. ed. São Paulo, SP: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2016.

SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. Trad. João Bentes. 2. ed. São Paulo, SP: ABU Editora; Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014.