Escrito por João Luiz Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021
INTRODUÇÃO
A busca pela verdade segue sendo um dos empreendimentos mais importantes desde muito cedo na história da civilização ocidental. Apesar do termo verdade denotar algo sólido e confiável, é comum que na caótica pós-modernidade nos deparemos com uma versão líquida da expressão, nos termos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Fluidez é outra expressão corrente que carrega essa mesma ideia, de algo que não deve durar. Assim, a verdade é pulverizada numa infinidade de narrativas, contradições e interesses nas mãos dos indivíduos.
A verdade é um paradoxo1 em nossos dias. Apesar de estarmos cientes da sua importância, da superioridade da verdade sobre a mentira e da impossibilidade de existência pacífica num mundo de inverdades, falhamos em produzi-la. Desejamos que a verdade triunfe, porém, ao tratá-la como algo próximo de uma decisão particular, caímos no que N.T. Wright chama de paradoxo.
De fato, a verdade parece estar esfacelada. Falta-lhe a unidade que torna sua presença clara e imprescindível na sociedade. A unidade que acolhe em comunidade e permite aos seres humanos olharem para o mesmo horizonte de significado e esperança.
1 – VERDADE FRAGMENTADA
Cristãos habituados aos problemas e dilemas pós-modernos, como Kevin Vanhoozer, trazem uma discussão que merece seu lugar à mesa. Isso precisa ser dito, visto que para muitos pós-modernos o cristianismo — e qualquer outra religião — tornou-se assunto de foro íntimo. É verdade que o cristianismo fala em Revelação, e o desenvolvimento da doutrina da revelação ocupa um capítulo extenso na história do cristianismo desde os patriarcas hebreus. Isso pode levar muitas mentes pós-modernas a desacreditá-lo ou reduzir sua importância, mas elas estão enganadas.
Vanhoozer apresenta o seu método teológico em O drama da Doutrina, e, ciente de todo o imbróglio pós-moderno, “visa um discurso verdadeiro e uma ação correta: é para a glória de Deus que tudo se fala, tudo se pratica”. Nessa afirmação algumas questões começam a ficar mais claras. Primeiramente destacamos que um discurso verdadeiro está direcionado a uma ação também verdadeira. Teoria e prática andam juntas, o que impossibilita abstrações ideais que pouco têm a ver com a realidade concreta. Um segundo ponto de destaque está no que é pressuposto, ou seja, não há verdade por si só, mas apenas a verdade que procede de algo ou alguém. Se abrirmos mão da procedência divina da verdade, recairemos no dilema pós-moderno.
Vanhoozer continua, dizendo que:
A abordagem canônico-linguística3 da teologia […] enfatiza as práticas cristãs […], mas sem excluir as alegações de verdade cognitiva. Uma teologia que promove o amor a Deus de toda força, mente e coração demanda dados propositivos, imaginações poéticas e iniciativas práticas a fim de responder de modo adequado ao Tatwort4 do evangelho5.
O que Vanhoozer está propondo é uma abordagem ampla do conhecimento verdadeiro, pressuposto em Deus, que fala e age. Uma perspectiva que não anula as faculdades cognitivas, tampouco a força do coração e da imaginação, e não desconsidera a situação real e concreta onde a verdade precisa aparecer. Ao mesmo tempo que não anula nenhuma dessas categorias, também não reduz o conhecimento, a verdade e a existência a qualquer um desses aspectos.
Muitos problemas da pós-modernidade com a verdade são resultados de uma sobreposição de um desses elementos sobre os demais. Excluindo Deus como pressuposto da verdade e do conhecimento, restam apenas seus fragmentos. Ao enfatizar apenas a força do coração, vemos surgir o subjetivismo, e suas ramificações como o romantismo e o existencialismo. Por outro lado, se dermos mais vazão à cognição em detrimento do coração, veremos o fundacionalismo, o propositivismo, além outras divisões do racionalismo, inclusive o ceticismo e o niilismo, dado o fracasso da razão. Nesse ambiente os fragmentos de verdade surgem e se cristalizam na mente e imaginário dos indivíduos, justamente porque falta a eles o único elemento capaz de unificá-los. Algo que para a proposta cristã está bastante claro.
2 – O AMBIENTE DA VERDADE
Continuando com a fala de Kevin Vanhoozer, lemos que: “A teologia deve fazer mais do que realizar um contato cognitivo com a realidade divina, ela deve fazer um contato de aliança”6.
Uma afirmação como essa ressoa em todo o escopo teológico cristão, da apologética à doutrina de Deus, da história à teologia do culto. Partindo do pressuposto de que Deus é a origem da verdade e do conhecimento, o ponto de convergência de toda a verdade, sendo Ele a própria verdade, e considerando os seres criados como os entes para os quais Deus se dirige, a verdade só pode ser resultado de uma comunicação que parte de Deus em direção aos seres humanos, do Criador para o mundo criado.
É importante ressaltar que numa relação de Aliança o conceito de autonomia do mundo criado perde força diante da realidade de um Deus Criador e comunicador. Os esforços humanos em direção à autonomia, seja da razão, seja dos desejos e vontades, constitui-se como rebeldia, desacordo com a Aliança, à qual estamos inescapavelmente unidos.
É dentro desse relacionamento de Aliança, portanto, que a verdade se manifesta, é nesse ambiente relacional que Deus se dispõe, e se comunica, onde os seus atos de fala encontram as suas criaturas. Aliás, essa disposição de Deus para com as suas criaturas nos leva ao centro fundamental de toda a existência.
Quem nos ajuda nisso é o filósofo e ministro norte-americano do século XVIII Jonathan Edwards. Em um trecho de O fim para o qual Deus criou o mundo ele diz:
Mas o amor de Deus pode ser tomado num sentido mais estrito, como sendo a mencionada disposição geral de comunicar o bem, visando objetos particulares. O amor, no sentido mais estrito e apropriado, pressupõe a existência do objeto amado, pelo menos na ideia e expectativa, representado na mente como futuro7.
O que Edwards está dizendo é que o amor de Deus é essa disposição de comunicar o bem, e para tal, ele cria os “objetos particulares” aos quais este mesmo amor é comunicado. Em primeiro lugar, podemos compreender que a existência do universo não se dá na autonomia do universo em si mesmo. Ainda que ao observarmos a natureza vislumbremos sua beleza, o cosmo ordenado e a maneira como tudo se ajusta perfeitamente, nada disso surge da impessoalidade da matéria, e menos ainda de um deus descompromissado. Estamos diante de um Deus que se dispôs a amar, e o resultado é um mundo em Aliança.
Essa disposição de Deus Edwards chama muitas vezes de emanação, fato que levou seus leitores a desconfiarem de haver no seu pensamento, resquícios de ideias neoplatônicas8, o que comprometeria em certo sentido a ideia de comunicação, conforme a entendemos. Contudo, Edwards parece fazer uso da expressão como um sinônimo de comunicação, o ato no qual Deus comunica a plenitude de seu ser9, e não deve ser confundido com a categoria neoplatônica. Num artigo de 2020, a doutora em biologia e filósofa Lisanne Winslow destaca dois pontos importantes que nos ajudam a desvencilhar as perspectivas de Edwards desse problema. Diz ela, que:
Deus não emanou seu próprio Ser, resultando assim uma criação. Em vez disso, é a comunicação do conhecimento, santidade, alegria e infinitas excelências de Deus que estão incorporadas na Criação, que foi criada ad extra e ex nihilo10.
Durante a obra, percebe-se que esses dois elementos constituem a perspectiva da Edwards a respeito da Criação. Primeiro, a Criação é distinta do Criador, desde sempre. Em segundo lugar, a Criação não se dá a partir de nenhuma matéria pré-existente, nem mesmo do próprio Ser de Deus, ainda que ela carregue os traços da plenitude de Deus, fato que era caro a Jonathan Edwards. Já no final da obra, Edwards diz: “Quando estava prestes a criar o mundo, Deus teve respeito pela emanação de sua glória, que é de fato a consequência da criação, tanto em relação a si mesmo quanto em relação à criatura”11. O neoplatonismo exigiria exatamente o contrário, que a criação fosse consequência da emanação.
Tudo isso configura um ambiente onde o conhecimento e a verdade sobrevivem, sem definharem por falta de raízes. Ainda no século XVIII, Jonathan Edwards disputava com racionalistas e naturalistas, como o empirista John Locke e o filósofo George Berkeley, que despiu a existência e colocou toda a realidade na mente do indivíduo, e mesmo Isaac Newton, que transformou todo o universo numa engrenagem perfeita. Edwards olhou para a Criação de Deus de maneira diferente, e muito mais aguda. Percebeu que a natureza sem Deus é uma terra seca, mas no ambiente certo, a filosofia poderia reencantar-se, e reencantar o mundo. Edwards não estava interessado em responder aos anseios da filosofia natural, porque compreendeu que a realidade não é uma máquina autônoma, como julgam os naturalistas. Antes era um cristão comprometido com as verdades da revelação, interessado e competente em ciências naturais para reconhecer na natureza criada o brilho da verdade revelada, comunicada, emanada do Criador.
CONCLUSÃO
O ambiente metodológico do saber teológico é o ambiente do todo unificado. Não é só propositivo, só subjetivista ou apenas argumentativo. Isso pode ser estendido para toda a realidade, visto tratar não somente da teologia enquanto disciplina, mas da relação de Aliança entre Deus e sua Criação.
Vanhoozer diz que “o que Deus estava fazendo, está fazendo, e fará em Cristo, é o critério supremo da adequação dramática, o critério supremo tanto da verdade quanto da bondade e da beleza”12. Edwards, diz: “sua plenitude é recebida e retribuída. Aqui se constata tanto uma emanação quanto uma reemanação. A refulgência brilha sobre a criatura e no interior dela, e é restituída à fonte de luz”13.
O único ambiente, portanto, onde a verdade surge é o ambiente onde a ação — emanação/comunicação — de Deus constitui o seu critério supremo. Em contrapartida a essa disposição de Deus está a ação-resposta do ser humano, sobre quem a luz brilhou. Sua participação será em resposta, restituindo a luz que o iluminou à sua fonte original. A pós-modernidade compreendeu que a verdade não é uma coleção de proposições fundacionais, mas falhou em reconhecer que ela não pode surgir do interesse de um ser humano desenraizado da origem da sua existência.
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1. Cf. WRIGHT, N.T. Indicadores Fragmentados: como o cristianismo compreende o mundo. Tradução de Paulo Benício. Rio de Janeiro/RJ: Thomas Nelson Brasil, 2020.
2. VANHOOZER, K. O drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo/SP: Vida Nova, 2016, p. 255.
3. Abordagem canônico-linguística é a expressão utilizada por Kevin Vanhoozer para representar seu método teológico, especialmente na obra citada.
4. Vanhoozer usa a expressão do teólogo católico-romano Hans Urs von Balthazar com o significado de “palavra-ação”, ou, “palavra-feito”, esse movimento que ele chama de “atos de fala de Deus”, visto que ambos — ato e fala — não podem ser radicalmente distintos.
5. Ibid. p. 255.
6. Ibid. p. 257.
7. EDWARDS, Jonathan. O fim para o qual Deus criou o mundo. Tradução Almiro Pisetta. São Paulo/SP: Mundo Cristão, 2017, p. 43.
8. Alguns anos antes de Edwards, em Cambridge, floresceu um grupo de pensadores que ficou conhecido como Platonistas de Cambridge, fato que pode ter reforçado uma leitura de Edwards a partir de categorias neoplatônicas.
9. Ibid. p. 38.
10. WINSLOW, Lisanne. A Great and Remarkable Analogy: The Onto-typology of Jonathan Edwards. Yale University New Directions in Edwards series. In Press Vandenhoek and Ruprecht Press, 2020, s/n, Tradução nossa.
11. Op. Cit. p. 138.
12. Op. Cit. p. 257.
13. Op. Cit. p. 138.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro/RJ: Jorge Zahar Ed., 2004.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. Tradução de Edgar Orth. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004.
EDWARDS, Jonathan. O fim para o qual Deus criou o mundo. Tradução Almiro Pisetta. São Paulo/SP: Mundo Cristão, 2017.
VANHOOZER, K. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução de Daniel de Oliveira. São Paulo/SP: Vida Nova, 2016.
WINSLOW, Lisanne. A Great and Remarkable Analogy: The Onto-typology of Jonathan Edwards. Yale University New Directions in Edwards series. In Press Vandenhoek and Ruprecht Press, 2020, s/n.
WRIGHT, N.T. Indicadores Fragmentados: como o cristianismo compreende o mundo. Tradução de Paulo Benício. Rio de Janeiro/RJ: Thomas Nelson Brasil, 2020.