Escrito por Marcio Lima, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021
O século XVIII foi marcado por uma revolução no pensamento cientifico. Os desdobramentos das descobertas de Isaac Newton levaram a uma modificação de nossa imagem do mundo. A natureza e o cosmos passaram a ser compreendidos como um mecanismo autônomo, regido por leis próprias, onde Deus se encontrava afastado do processo. No campo filosófico, o mundo pós newtoniano deu indícios de um desencantamento da realidade. Os filósofos começaram a desenvolver uma fé cada vez maior na razão humana, que, desenvolvida até seus limites lógicos, conduziria à iluminação. Cada vez mais se rejeitava a ideia de uma religião sobrenatural e a noção da existência de um plano divino voltado para algum fim pré-ordenado da humanidade. É nesse contexto que se encontram o filósofo e teólogo americano Jonathan Edwards (1703–1758) e o arquiteto francês Etienne-Louis Boullée (1728–1799). Sabemos que ambos foram influenciados pelas descobertas científicas de Isaac Newton e procuraram responder aos desafios do século XVIII a partir de suas áreas de atuação. A hipótese deste ensaio é que tanto Edwards quanto Boullée captaram o clima de desencantamento da realidade e procuraram mostrar, desde seus trabalhos, que o mundo era, na verdade, encantado. Todavia, nos parece que a fonte desse encantamento foi distinta para cada um deles. Nesse sentido, o ensaio propõe investigar quais as fontes desse encantamento do mundo tanto para Edwards quanto para Boullée.
O fim para o qual Deus criou o mundo, ou a filosofia encantada de Jonathan Edwards
Isaac Newton, que, além de ser um notável cientista, foi também um importante expoente da teologia natural, advogava a respeito da metáfora dos dois livros, sustentando que Deus se revela por meio da Escritura e da Natureza. Edwards também acreditava na união de ciência e religião. Para ele, havia muito espaço para um Deus pessoal no reino da física. Jonathan Edwards compreendeu o universo essencialmente como “uma emanação do amor e da beleza de Deus, de modo que tudo, até a matéria inanimada, era uma comunicação pessoal de Deus” (MARSDEN, 2015, p. 42). Edwards tinha um interesse grande por filosofia e ciência, teria lido com entusiasmo as novas teorias do filósofo inglês John Locke a respeito de como a mente processa ideais, bem como as descobertas inovadoras do físico Sir Isaac Newton (BYRD, 2021, p. 16). Seu fascínio pela natureza levou-o a observar a vida das aranhas, e a escrever um ensaio intitulado As maravilhosas e curiosas obras da aranha. Submeteu-o para publicação na Philosophical Transactions, vinculada à Sociedade Real de Londres, sociedade cientifica chefiada por Newton. No futuro, Edwards se voltaria para uma leitura filosófica da natureza. Em sua dissertação sobre O fim para o qual Deus criou o mundo, apresentaria desde o aspecto racional e também bíblico a criação como uma vitrine para os gloriosos atributos de Deus.
Para Jonathan Edwards, há uma relação intrínseca entre Deus e a natureza, ambas revelam a beleza, a excelência e a harmonia de Deus. Em seu caderno Imagens das coisas divinas, fica claro que o filósofo entendia que Deus usa esses dois meios para se comunicar com o ser humano. Essa foi sua forma de se opor às explicações materialistas do universo. “As leis naturais eram as leis divinas, e nada ocorria sem a presença de Deus” (BYRD, 2021, p. 37).
Entendemos que aqui se encontra a visão encantada de Edwards a respeito da realidade: Deus está presente no mundo, sustentando o universo. Para ele, “Deus realmente re-cria o universo do nada a cada momento” (BYRD, 2021, p. 37). Edwards, ao olhar para o céu e as nuvens, não via apenas a operação de leis naturais, mas percebia uma comunicação da excelência e beleza de Deus, no sol, na lua e nas estrelas. Para ele,
“o fim derradeiro visado por Deus [é] que pudesse haver uma gloriosa e abundante emanação de sua infinita plenitude de bem exteriorizado, ou fora de si mesmo; e que a disposição de se comunicar, ou difundir sua própria plenitude, foi o que o motivou a criar o mundo.” (EDWARDS, 2017, p. 39)
Jonathan Edwards soube conciliar as influências do empirismo e a ênfase científica na razão por parte do iluminismo com a perspectiva espiritual e confessional da autoridade das Escrituras segundo sua tradição reformada. A filosofia de Edwards pressupõe a transcendência que extrapola os limites do universo. Cristo é o princípio da inteligibilidade de toda a realidade. Edwards nos lembra que o significado último da realidade só pode ser encontrado para além do sol, apenas em Deus.
O cenotáfio de Newton e a arquitetura de Boullée, monumentalidade encantada
Etienne-Louis Boullée foi um arquiteto francês que projetou diversas obras icônicas para a história da arquitetura, embora muitas delas não tenham sido construídas. Boullée importava-se com a arquitetura para além da construção funcional ou abrigo para as intempéries. Reconhecia no labor arquitetônico a presença da poesia. Disse o arquiteto:
“Acredito sim que nossos edifícios, sobretudo os edifícios públicos, deveriam ser, de algum modo, poemas. As imagens que eles oferecem aos nossos sentidos deveriam despertar em nós sentimentos análogos ao uso para o qual esses edifícios são consagrados.” (BOULLÉE, 2005, p. 333)
A teoria de Boullée caracteriza-se pela investigação do efeito imagético dos corpos, pelos quais entende exclusivamente corpos geométricos regulares. Esses transmitem imagem da ordem por sua regularidade e simetria. O arquiteto também foi muito influenciado pelas pesquisas de Newton, que era quase que um guia espiritual para o iluminismo. A veneração iluminista-religiosa por Newton encontra uma expressão paradigmática no epitáfio a Newton composto por Alexander-Pope em 1732, que diz que “natureza e leis da natureza jazem escondida na noite; disse Deus faça-se Newton! E a luz se fez.” (POPE apud KRUFT, 2016, p. 340).
Para Boullée o conceito de natureza e o conceito de Deus parecem ser a mesma coisa, e sua manifestação ocorre na image da arquitetura. “A arquitetura torna-se uma ativação da natureza e o arquiteto o ativador da natureza” (KRUFT, 2016, p. 335). O projeto mais destacado de Boullée é o monumento a Newton, projetado em 1784. O cenotáfio é descrito com um hino que o próprio arquiteto escreveu, que diz: “Espírito sublime! Gênio vasto e profundo! Ser divino! Newton… determinaste a figura da Terra, eu concebi o projeto de te envolver com sua descoberta…” (BOULLÉ apud KRUFT, 2016, p. 335). A grande forma esférica do projeto caracteriza a terra e as descobertas de Newton. O mausoléu, que segundo a concepção de Boullée deveria abrigar os restos mortais de Newton, internamente era uma representação da abóboda celeste, evocando as estrelas do céu por meio de perfurações na cúpula superior (Figura 1):
Figura 1: Cenotáfio de Newton, visão diurna do interior. Etienne-Louis Boullée, 1784.
Durante a noite o espaço esférico deveria ser iluminado por uma grande e potente lâmpada (Figura 2). A esfera central do projeto tinha 150 metros de diâmetro. Provavelmente o arquiteto sabia que seu projeto ultrapassava as possibilidades de construção de sua época.
Figura 2: Cenotáfio de Newton visão do interior noturna, projeto de Etienne-Louis Boullée, 1784.
Para Boulée, a monumentalidade e incomensurabilidade seriam expressões da sublimidade da natureza, cuja grandiosidade se reflete na grandeza da arquitetura. Boullé projetou também, em 1793, um Templo para a razão¹, levando mais longe a ideia da esfera. No centro da instalação encontra-se uma estátua de Diana de Éfeso, a deusa da natureza e da fertilidade. O templo da razão torna-se simultaneamente templo da natureza (Figura 3):
Figura 3: Templo da Razão, visão interna, projeto de Etienne-Louis Boullée, 1793.
Fontes do encantamento do mundo, a persistência do transcendente
Assim como Jonathan Edwards fez leituras tipológicas relacionando as Escrituras e a natureza, foi também comum em certa arquitetura do século XVIII estabelecer princípios tipológicos. Buscou-se “conteúdos inerentes à forma do edifício como coisa em si, cuja função específica se insere num sistema de valores: a natureza, a razão, a sociedade e a lei (ARGAN, 1992, p. 37). Boullé foi um desses arquitetos que buscou tipologicamente representar na arquitetura o assombro da natureza. A escala de seus projetos, as referências à abóboda celeste, demonstram uma forma de encantamento diante da realidade. No entanto, esse encantamento parece se esgotar na ideia de sublime encerrado na imanência. Por conta da transformação do imaginário cósmico operado pelos desdobramentos das descobertas newtonianas, a natureza passou a figurar na imaginação ética e estética de nova maneira. A categoria filosófica e artística de sublime se desenvolveu. Para James K. Smith, isto é
“um exemplo de como o novo imaginário cósmico invocou um tipo de substituto da transcendência. O sublime é gerado por aquilo que Burnet descreve como excesso, estimulado pela infinitude dos céus, ou pelas montanhas altas, pelos vastos oceanos. O sublime então se torna de algum modo semelhante a (semi) transcendência imanente.” (SMITH, 2021, p. 118)
Entendemos que o projeto do cenotáfio de Newton é justamente o exemplo desse conceito de sublime aplicado à arquitetura, cujo interior seria uma representação monumental da abóboda celeste. Este projeto talvez seja uma revisão da compreensão da catedral cristã como representação do cosmos. Seu projeto, enquanto monumento, seria como arquitetura “sagrada” para além da igreja, uma arquitetura “sagrada” para a era moderna. Podemos ver essas mudanças na própria utilização da luz. Para Jonathan Edwards, luz é metáfora da glória de Deus, “que poderia, de modo tão natural e adequado, representar a emanação da glória interior de Deus” (EDWARDS, 2017, p. 127). Para Boullée, a luz é proveniente de um objeto elétrico, fruto da criação humana. Ele deixa claro ao colocar no centro do mausoléu a origem da iluminação, ou seja, o próprio gênio humano. O cenotáfio, embora iluminado, está vazio, sem presença alguma.
Compreendemos que tanto para Boullé quanto para Edwards o mundo era encantado. Embora a era do raciocínio cientifico apontasse cada vez mais para um desencantamento do mundo, essas duas figuras compreenderam que o ser humano dificilmente suportaria viver num mundo desencantado. Boullé buscou o encantamento na imanência, na arquitetura monumental e poética, bem como na natureza. Para Jonathan Edwards, o encantamento proporcionado pela natureza tem como fonte o Deus trino que sustenta toda a criação e é manancial de beleza. No entanto, cabe um questionamento à própria concepção filosófica de Jonathan Edwards. Embora tivesse consciência da presença de Deus na criação, seus textos deixam transparecer certa negligencia da bondade do mundo material. Ele diz:
“’Por que não deveríamos supor que [Deus] faz o inferior como imitação do superior e o material, do espiritual, como o propósito de ter uma semelhança e sombra deles?’ Para Edwards, Deus criou o mundo físico como uma sombra do mundo espiritual, crença filosófica essencial para Edwards” (BYRD, 2021, p. 31)
Poderíamos nos perguntar: O que seria das produções artísticas e arquitetônicas desenvolvidas sob essa visão encantada de Jonathan Edwards? O que seria pensar a beleza das artes e arquitetura com essa sensação assombrosa de encantamento como indicador da presença de Deus? Voltando nosso olhar para Boullée, embora seus projetos sejam excepcionais, ele reflete a filosofia de autonomia do mundo e do pensamento humano. O encantamento se esgota na ideia de sublime encerrado na imanência, desejo de transcendência sem o transcendente. O céu estrelado do cenotáfio, que representa o cosmos, contrasta com a catedral medieval, símbolo do cosmos habitado pela presença de Deus. Talvez contraste ainda com o tabernáculo ou o Templo de Jerusalém, edifício símbolo do cosmos, unindo céu e terra. O próprio Deus escolheu uma obra de arquitetura para apontar a realidade escatológica cósmica de que sua presença, anteriormente limitada ao Santo dos Santos, deveria se estender por toda a Terra. Qual a melhor forma de encantamento do mundo, senão aquela que entende que os ecos da nova criação já estão soando entre nós? De que este mundo não é sombra do mundo espiritual, mas realidade que aguarda a união plena de céu e terra numa bela cidade-jardim? Acreditamos que nossas obras de arte e arquitetura poderiam ser sinais dessa realidade encantada.
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¹ O Culto da Razão foi uma religião secular patrocinada pelo Estado na França, com fins de substituir a fé cristã durante a Revolução Francesa. Nenhum deus era adorado no Culto da Razão – o princípio orientador era a devoção à concepção abstrata da própria Razão. Celebrava diferentes princípios básicos de acordo com o local e a liderança: o mais famoso era a Razão, mas outros eram a Liberdade, a Natureza e a vitória da Revolução. Depois de dominar por apenas um ano, em 1794 foi oficialmente substituído pelo rival Culto do Ser Supremo.
Referências Bibliográficas
ARGAN, Giulio C. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo. Companhia das Letras, 1992.
BOULLÉE, Étienne-Louis. Arquitetura. Ensaio sobre a arte. Tradução de Carlos Roberto M. Andrade. São Carlos, Revista Risco EESC-USP, 2005, p. 98-104.
BYRD, James P. Jonathan Edwards para todos. Tradução Francisco Nunes. Viçosa, Editora Ultimato, 2021.
EDWARDS, Jonathan. O fim para o qual criou o mundo. Tradução Almiro Pisetta. São Paulo, Mundo Cristão, 2017.
KRUFT, Hasnno-Walter. História da Teoria da arquitetura. Tradução de Oliver Tolle. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2016.
MARSDEN, George. A breve vida de Jonathan Edwards. Traduçao de Francisco W. Ferreira. Sáo José dos Campos. Fiel Editora, 2015.
SMITH, James K. Como (não) ser secular: lendo Charles Taylor. Tradução de Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, Editora Monergismo, 2021.