Escrito por Leonardo Leone Alves, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2021
O que significa ser um artista verdadeiramente livre? Trata-se de uma questão de exercer as vontades sem amarras? De ter autonomia? Ou algo mais está em jogo?
Liberdade pode significar muitas coisas, porém é difícil imaginar alguém declarando que se opõe fundamentalmente a ela. Pelo contrário, a palavra liberdade carrega uma força emotiva poderosa, despertando fortes emoções nas pessoas. Até Jesus, ao falar sobre liberdade, agitou seus ouvintes:
Jesus dizia, pois, aos judeus que criam nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém; como dizes tu: Sereis livres? (Jo 8:31-33)
“Somos livres” é a resposta que ressoa ao longo dos séculos, em especial no mundo atual, fortemente influenciado pelo movimento Renascentista e pelos ideais do Iluminismo. Hoje se ouve nitidamente o grito de liberdade daqueles que desejam ser senhores, com suas próprias regras.
A liberdade individual, sem normas, sem amarras, sem regras, perpassa pela substituição da visão teológica de mundo para uma visão racional do indivíduo. Nesta, o homem exerce sua liberdade para ganhar autonomia para si e operar de forma independente em relação a Deus.
No que se pode chamar de liberdade humanística, celebra-se a libertação do indivíduo não só das restrições dogmáticas da moralidade religiosa, mas também das restrições da existência de um Deus transcendente.
Foi nesse contexto que o holandês Hans R. Rookmaaker percebeu que existem duas visões contrastantes de vida, uma baseada na rebelião e permissividade e a outra fundamentada na liberdade descortinada por Jesus. Em seu livro Filosofia e Estética, encontra-se o seguinte pensamento:
Pois a “pessoa mundana” quer ser senhora e mestra, autônoma, sem nenhuma restrição a si mesma. Tal pessoa quer construir um mundo a partir do próprio pensamento, controlar a natureza, a fim de exibir sua perícia, e está preocupada em primeiro lugar com a grandeza da humanidade, desejando reivindicar a soberania que a rigor pertence a Deus. (ROOKMAAKER, 2018, p. 20)
E prossegue afirmando que:
Se não amam a Deus de coração e não o reconhecem como Criador — para não mencionar sua paternidade — então, em última análise, é o “eu” que estão buscando. Querem manter e realizar sua própria liberdade, servir esse eu e a todas as tendências que vivem em seu coração. (ROOKMAAKER, 2018, p. 32)
Em outras palavras, se os desejos do coração do homem estão postos no Criador, há liberdade, mas se seus afetos estão direcionados para alguma parte da criação, ou para si mesmo, há escravidão.
Logo, a pretensa liberdade fundamentada no movimento humanístico da autonomia do indivíduo, distante do Criador, do Deus transcendente, gera profundas consequências para a arte.
Como resposta, impactado pela filosofia cosmonômica de Herman Dooyeweerd, em especial nas esferas de normas dadas por Deus, Rookmaaker defende que o artista, para ser livre, ele precisa saber antes de tudo que a arte tem uma estrutura. Que o universo é uma criação organizada e essa organização possui leis e uma ordem própria advinda do Criador. Assim dispõe Rookmaaker, citado por Michael Card:
Há normas para a arte como parte da criação de Deus. Sem elas, a arte seria um nome vazio, sem sentido. Dizer que uma pessoa recebeu uma sensibilidade para com a arte a beleza (todos num certo sentido têm), que ela foi agraciada com um forte senso de subjetividade acerca do que é artisticamente correto, não é outra coisa senão dizer que ela recebeu o entendimento de certas normas de que Deus estabeleceu em sua criação, o mundo em que vivemos. (ROOKMAAKER apud CARD, 2004, p. 141)
Qualquer artista que se liberte dessas normas descobre apenas uma liberdade falaciosa, que o conduz à escravidão e ao conflito com a realidade.
Declaram-se independentes de tudo que está fora deles mesmos; querem ser seu próprio legislador e criador. Mas quando fazem isto entram em conflito com a realidade criada, com a ordem do mundo em que foram postos. A realidade não se permite ser usada desse jeito, ser “forçada” pelos caprichos do “individuo supostamente livre”. (ROOKMAAKER, 2018, p. 33)
Rookmaaker continua afirmando que:
Se se recusam a honrar o Deus transcendente e criador de todas as coisas, as pessoas inevitavelmente vêm a ter uma falsa compreensão da realidade e já não podem ver a realidade em sua estrutura e ordem como dada por Deus. (ROOKMAAKER, 2018, p. 37)
O que parece ser liberdade é morte. Só tem aparência de liberdade, mas muito em breve se revelará como uma prisão.
Tudo porque no coração do homem há um poder que o conduz contra as normas estabelecidas por Deus, de modo que ser livre sem Deus é apenas uma liberdade para satisfazer os desejos do coração pecaminoso. Nesse sentido, Rookmaaker assevera:
Para este propósito, tentam pôr a natureza, com todas as suas leis, a seu serviço, a fim de dominá-la como um [proverbial] déspota oriental. Não há mais nenhuma conversa sobre liberdade, mas, antes, uma obediência submissa à sua “natureza”. (ROOKMAAKER, 2018, p. 33)
Quanto aos compromissos do coração humano, o autor David Naugle faz uma importante menção ao filósofo Herman Dooyeweerd:
Quando Dooyeweerd fez a descoberta bíblica da importância central do coração como a raiz religiosa da existência humana, uma grande transição tomou lugar em seu pensamento e a regra da razão foi destronada. (NAUGLE, p.49, | posição 984-985)
O coração simbolizaria o aspecto transcendental do ser humano, que não pode ser reduzido a um dos aspectos da realidade.
A condição do coração é o que Dooyeweerd chama de “motivo-base religioso” (grondmotief), que determina a substância das teorias e a constituição das cosmovisões. De acordo com o professor holandês, existem dois motivos-base religiosos fundamentais, “dois norteadores centrais operativos no cerne da existência humana”. Um é nascido do espírito de santidade e o outro, do espírito de apostasia. O motivo-base do Espírito Santo é derivado da Palavra-revelação divina e a chave para a compreensão da Bíblia: “o motivo da criação, queda e redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo”. O motivo-base da apostasia leva para longe do Deus verdadeiro e culmina em idolatria: “Como dynamis (poder) religioso, ele leva o coração humano em uma direção apóstata, e é a fonte de toda divinização da criatura. (NAUGLEK, p. 51,| posição 1012-1021)
Portanto, o problema mais profundo do ser humano é o coração, não o raciocínio. O homem é um ser religioso. Há um coração e este ou adora a Deus, ou é guiado por ídolos (elementos da criação, até mesmo a razão).
Rookmaaker propõe então que a liberdade só pode ser encontrada em Cristo e que é uma liberdade para o artista ser criativo:
Essa liberdade só pode existir se for baseada no amor de Deus e ao nosso próximo, e se nos tornarmos novos homens por meio da obra completa de Cristo e do Santo Espírito, que nos é concedido. Sem essa base a liberdade pode facilmente significar estar livre de Deus e, consequentemente estar livre para satisfazer a vontade de todos os desejos do coração pecaminoso do homem não resgatado. (ROOKMAAKER, apud CARD, 2004, p. 140)
O artista é livre para trabalhar na medida da liberdade que se ganhou na redenção de Cristo. É uma liberdade que transcende as liberdades humanas desejadas neste mundo, proporcionando uma correta experiência da realidade. As normas não atuam negativamente, criando barreira, antes demonstram a grandiosidade da criação:
Essas normas não são empecilhos quando queremos viver na liberdade cristã; elas são parte do nosso mundo e da nossa natureza. Somente quando o homem se rebela e não quer ser criatura, quando quer ser Deus e não homem, é que ele se sente preso a essas normas. Para os que amam ao Senhor e se alegram com sua criação boa e linda, essas normas oferecem a oportunidade de viver em liberdade para criar. (ROOKMAAKER apud CARD, 2004, p. 142)
A verdadeira liberdade se exerce dentro das normas dadas por Deus para a vida. Essa é a liberdade a que se deve agarrar. Como Paulo escreve: “Portanto, estejais firmes e não se deixem carregar novamente pelo jugo da escravidão”, o que significa manter a fé naquele que abre os olhos para realidade como Deus criou.
A arte cristã é a arte concebida, e cujas normas são positivadas, sob a orientação da fé cristã que procede de uma atitude religiosa dirigida para Deus e para Cristo. Portanto, somente se os corações estão verdadeiramente em Cristo podemos esperar arte cristã. (ROOKMAAKER, 2018, p. 73)
O artista verdadeiramente livre, cria em resposta ao ato criativo primário. O artista livre responde de forma apropriada a norma do seu do criador, procurando maneiras positivas de expressar uma verdadeira visão da realidade — uma realidade maior que a natureza, maior que o próprio homem. O artista verdadeiramente livre glorifica o Criador.
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Referências bibliográficas
CARD, Michael. Cristo e a criatividade: rabiscando na areia. Trad. Jorge Camargo. Viçosa, MG: Ultimato, 2004.
NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Editora Monergismo. 2017. E-book Kindle.
ROOKMAAKER, Hans R. Filosofia e estética. Trad. William Campos da Cruz. Brasília: Editora Monergismo, 2018.