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De Arquimedes a Cristo

Escrito por João Luiz Uliana Filho, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2021

Introdução

Por volta de 287 a.C. nasceu Arquimedes, em Siracusa. Filho do astrônomo Fídias, dedicou-se às ciências, especialmente a matemática, à qual deu contribuições que são importantes até os dias de hoje. Dentre elas está o conceito de alavanca. Arquimedes descreveu um sistema onde uma haste reta apoiada sobre um ponto de apoio fixo conseguia mover mais facilmente objetos pesados. “Dá-me um ponto de apoio e eu levantarei a terra”, foi a frase dita por Arquimedes, que se tornou famosa, assim como a expressão ponto arquimediano, referindo-se ao ponto de apoio de uma estrutura, seja ela física ou teórica, como se convencionou1.

Nesse sentido, podemos falar sobre o ponto arquimediano da filosofia, ou seja, o ponto de apoio sobre o qual se sustenta todo o nosso edifício teórico filosófico. O glossário da obra No Crepúsculo do Pensamento Ocidental, de Herman Dooyeweerd, descreve como Ponto Arquimediano “um ponto vantajoso a partir do qual todas as coisas podem ser vistas na perspectiva correta”2. De fato, encontrar ou desenvolver o ponto de apoio do pensamento teórico foi, e ainda é, a tarefa de muitos pensadores, cristãos ou não. Qual a base do pensamento? Como se estrutura? Como se forma? Perguntas como essas são importantes para a filosofia. E, se é verdade que a filosofia é “a ciência do todo”3, ou, que “a filosofia é então a ciência que examina as totalidades”4, perguntar-se sobre o ponto arquimediano da filosofia é perguntar-se sobre o princípio fundamental das totalidades, onde se assentam as bases do pensamento teórico.

1. Algumas distinções e o problema cartesiano da fundamentação do conhecimento

Iniciemos com uma distinção. A filosofia não está equiparada às chamadas ciências particulares ou ciências especiais. Estas, dizem respeito ao que conhecemos como ciências matemáticas, ou a física, a botânica, a medicina, a geologia e o direito, como alguns exemplos. A filosofia, contudo, “em distinção de todas as ciências particulares, é uma ciência fundamental. Ela não é a combinação de todas as ciências particulares, mas é fundacional para as ciências particulares”5. Ou seja, a filosofia trata dos fundamentos que delimitam e expõem os problemas sobre os quais cada ciência particular irá dirigir seus esforços. Se cada ciência particular cuida de uma parte da realidade — a economia, do aspecto econômico da sociedade, por exemplo —, a filosofia dá a coerência entre todas as partes, o elo necessário.

Portanto, se a filosofia está no fundamento das ciências, e sendo ela também um empreendimento humano, é justo perguntar o que dá fundamento à própria filosofia. Muitos filósofos fizeram essa pergunta. Nela reside a verdade do conhecimento humano, aquilo que é possível conhecer, ou que garante um conhecimento válido, verdadeiro e rigoroso. Entre tais filósofos destaca-se a figura do francês René Descartes (1596 – 1650).

Tratando do problema doe um fundamento coerente e sólido para o conhecimento, Descartes insere-se historicamente como uma dobradiça, num momento de transição, na “fase inicial da Era Moderna”6, como dizem alguns historiadores. Num trecho bastante incisivo, Pannenberg nos ajuda a entender as razões da importância do pensamento cartesiano:

“Descartes constitui-se no vulto fundante mais importante no início da filosofia moderna, porque ele não só realizou uma refundamentação da metafísica, o que antes dele já havia sido tentado por outros, entre os quais se destaca Nicolau de Cusa, mas porque o seu embasamento da filosofia tornou-se ponto de partida para um desenvolvimento filosófico continuado. Na visão da historiografia filosófica alemã desde o século XIX, Descartes aparece sobretudo como precursor de Kant e seu subjetivismo epistemológico. A filosofia natural de Descartes, orientada no ideal de descrição matemática da natureza, estava baseada, segundo Max Frischeisen-Köhler e Willy Moog, na ‘consciência da soberania do ato construtivo de pensar. O sujeito pensante constrói por si mesmo, em liberdade e a partir da sua própria riqueza, o novo sistema cultural’. O autor prossegue dizendo que o ser humano encontraria ‘apenas em si o centro inabalável de toda realidade e verdade: a partir do eu conquistamos o mundo”7.

A citação assevera muitas críticas a Descartes, mas é verdade que nem todos os críticos concordam com elas. Segundo dizem, a função do pensamento teórico não teria sido bem compreendida pelos leitores mais apressados, visto que o cogito ergo sum seria apenas um passo intermediário na estrutura do pensamento, que teria como fundamento a inegável existência de Deus — este, portanto, seria a realidade mais evidente. Além disso, é justamente aí que Descartes se separa de Aristóteles e Tomás de Aquino, no sentido das provas da existência de Deus. Para Descartes, não se chega a Deus — menos ainda a uma prova de Deus — através daquilo que é menos evidente do que o próprio Deus.

2. O problema do autoconhecimento

Ainda que as críticas mais pesadas a Descartes possam ser exageradas, o estado das coisas permanece. Se, num processo pedagógico, Descartes exclui o conhecimento revelacional de Deus, para, ainda que por um tempo, caminhar sozinho, e só encontrar Deus ao final do processo, a razão seguirá sendo o ponto arquimediano da estrutura de apreensão da realidade.

Vejamos como Descartes desenvolve a questão nas Meditações.

Na Segunda Meditação, Descartes coloca a mesma metáfora que utilizamos desde o início, o Ponto Arquimediano. Sobre ele deve repousar a certeza indubitável. Olhando para o mundo ao redor, contudo, só é possível encontrar incertezas, nada indubitável. Ele diz: “o que, então, poderá ser estimado como verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que no mundo nada há de certo”8.

Na sequência, ao se perguntar sobre Deus estar imputando alguma espécie de conhecimento em seu ato de pensar, Descartes diz: “Não há necessidade disso, pois talvez eu esteja capacitado a produzi-los por mim mesmo”9. Ao duvidar de tudo, e excluir Deus do início da jornada, resta-nos apenas o eu. “Não me persuadi, portanto, de que eu não era?10 Decerto que não. Não há dúvida de que eu era”11.

Descartes fundamenta sobre o eu o conhecimento da realidade. Esta é a única existência indubitável. Lembrando que definimos a filosofia como a ciência do todo, que une coerentemente as partes — das quais se pode duvidar, no sentido cartesiano — diríamos que o ponto arquimediano de Descartes, e de toda a filosofia subsequente, é o eu. E não qualquer eu, mas o eu que pensa, que existe de fato.

Mas como definir o eu? O próprio Descartes percebe o problema. Na sequência das meditações encontramos: 

“mas não conheço ainda com suficiente clareza o que sou, eu que estou certo de que sou, de modo que doravante é necessário que tome um extremo cuidado para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e assim me enganar nesse conhecimento”12

Aqui temos duas questões que nos importam. Ainda que se discuta como se dá a ação do eu pensante no conhecimento, é sobre ele que repousa o edifício da verdade e da existência. Visto que está dado como princípio, ele se torna o ponto arquimediano da existência. Além disso, separado de Deus e atuando autonomamente a Ele, ainda que se reconheça sua existência, faz dele um produto do próprio eu que pensa, ou, ego racional. Reconhecemos aqui um problema de fundamento. Descartes não excluiu Deus, como se Ele não existisse, mas concedeu autonomia à razão para produzir conhecimento verdadeiro da realidade, e ao final chamou Deus de volta, para validar sua obra. Onde está, portanto, o fundamento?

João Calvino (1509 – 1564) percebe a dificuldade filosófica da fundamentação do conhecimento, e antes de Descartes, tratou dessa questão em sua Opus Magna, As Institutas da Religião Cristã. Lemos logo no início do texto:

“Quase toda a suma de nossa sabedoria, que deve ser considerada a sabedoria verdadeira e sólida, compõe-se de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como são unidas entre si por muitos laços, não é fácil discernir qual precede e gera a outra. Pois, em primeiro lugar, ninguém pode olhar para si sem que volte imediatamente seus sentidos para Deus, no qual se vive e se move, porque não há muita dúvida acerca de que não provenham de nós as qualidades pelas quais nos sobressaímos. Pelo contrário, é certo que não sejamos senão subsistência no Deus uno”13.

Enquanto Descartes deu ao eu autônomo as capacidades para sustentar o conhecimento verdadeiro da realidade, uma longa tradição que passa por Calvino, Kuyper e Dooyeweerd, até os nossos dias, reconhece que apesar de a autorreflexão crítica ser tarefa do eu pensante, este, jamais atua autonomamente. O caráter do eu, que foi uma preocupação no sistema de Descartes, só pode ser compreendido se vinculado à sua Origem mais fundamental. Essa origem é, portanto, de caráter religioso, não analítico. Não pode ser o eu que pensa justamente porque este faz parte da realidade criada, e carece igualmente de um ponto de apoio, anterior a ele mesmo. O adjetivo religioso, portanto, não se refere a uma confissão religiosa particular, mas a algo muito mais fundamental, que está na origem da nossa existência, e direciona todas as nossas atividades, inclusive a do pensamento teórico.

O que Calvino nos ensina é que o conhecimento não existe à parte do autoconhecimento, portanto, de sua origem no Deus Criador. Por isso autores como Dooyeweerd dirão que é uma origem religiosa que orienta o pensamento. Ela pode não ser cristã, bíblica, mas é religiosa, visto que eleva ao status religioso fundante aquilo que é criado e experienciado na realidade, como Descartes fez com a razão filosófica. Mas, se consideramos a Origem da existência, a Arché, como disseram os antigos gregos, sendo o próprio Deus revelado, o ponto arquimediano que sustenta toda a filosofia, e que a capacita para conferir coerência à toda a realidade, deverá ser a própria revelação em Jesus Cristo, a raiz religiosa do coração humano. 

O coração, então, é essa unidade integral de funções do homem, que participa da origem religiosa em Deus. Nas palavras de Herman Dooyeweerd, “O pensamento teórico não pode fornecer, a partir de si mesmo, essa direção concêntrica. Somente o ego central pode fazê-lo, desde um ponto de partida suprateórico”14. Não se trata de ser racional ou irracional, como a modernidade descreveu o problema, e sim de um ponto fixo além da teorização analítica, visto que esta é parte do processo, e não pode servir de fundamento para a experiência.

Conclusão

O fracasso da filosofia, que podemos chamar imanentista — dado que possui seu fundamento na realidade —, se dá por sua incapacidade de justificar a si própria. Toda a história da filosofia e do conhecimento está amarrada à realidade criada, tornando-se apóstata em relação ao Deus que se revelou especialmente em Jesus Cristo. Se a filosofia é a ciência das totalidades, sendo ela própria parte da totalidade, não pode existir sem uma fundamentação que considere o Deus das Escrituras como fonte absoluta de toda a experiência. Eis a necessidade de uma filosofia genuinamente cristã, robusta, capaz de atuar no plano teórico com fidelidade a Cristo, o ponto arquimediano da existência. Ele é a pedra que os construtores rejeitaram, mas que foi posta por Deus como pedra angular15.


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1. Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Trad. de José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017, p. 309-312.

2. DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental. Trad. de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, p. 264. Vale salientar que para a filosofia de Herman Dooyeweerd o conceito de ponto arquimediano é bastante caro e singular.

3. SPIER, J.M. O Que É a Filosofia Calvinista? Trad. de Felipe Sabino de Araújo Neto. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019, p. 22.

4. Ibid., p. 28.

5. Ibid., p. 28.

6. PANNENBERG, Wolfhart. Filosofia e Teologia: tensões e convergências de uma busca comum. Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 133.

7. Ibid., p. 134.

8. DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução e notas de Edson Bibi; apresentação de Fábio Abreu. São Paulo: Edipro, 2016, p. 40.

9. Ibid., p. 40.

10. Era no sentido de existência ontológica, aqui e no final da citação.

11. DESCARTES, op. cit., p. 40-41.

12. Ibid., p. 41.

13. CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Tomo I, Livros I e II. Trad. de Carlos Eduardo de Oliveira, et. al. São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 37.

14. DOOYEWEERD, op. cit., p. 68.

15. Cf. Salmos 118: 22.


Referências Bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA: Almeida Corrigida Fiel.

CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Tomo I, Livros I e II. Trad. de Carlos Eduardo de Oliveira, et. al. São Paulo: Editora Unesp, 2008.

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução e notas de Edson Bibi; apresentação de Fábio Abreu. São Paulo: Edipro, 2016.

DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental. Trad. de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1. Trad. de José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017.

SPIER, J.M. O Que É a Filosofia Calvinista? Trad. de Felipe Sabino de Araújo Neto. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

PANNENBERG, Wolfhart. Filosofia e Teologia: tensões e convergências de uma busca comum. Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Paulinas, 2008.