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Filosofia da tecnologia e educação: uma perspectiva reformacional

Escrito por Waldo Messias, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2021

O ato de ensinar é um grande desafio. Exige muito mais do que meramente comunicar conteúdos da parte de quem “conhece mais” para quem “sabe menos”. É necessário conhecimento, empatia, compaixão, criatividade, adequação da linguagem e mais uma infinidade de atributos e estratégias. A fim de alcançar o objetivo do ensino, as tecnologias são indispensáveis. Fazer uso ou não delas em contextos educacionais não é o questionamento central. Afinal, é difícil acompanhar a velocidade com que as inovações invadem as “salas de aulas”. Mas torna-se necessário estabelecer fundamentos para analisarmos como a tecnologia se encaixa no contexto educacional.

O intuito deste artigo é apresentar a filosofia da tecnologia como uma metodologia não reducionista, que possibilita estabelecermos os fundamentos adequados para a definição e utilização das tecnologias.

O coração antes do intelecto e de todo o resto

Antes de qualquer reflexão, é necessário um olhar atencioso para os pressupostos que fundamentam o pensamento teórico, pois nenhuma filosofia ou didática são feitas a partir de uma razão autônoma. Antes, são formuladas a partir dos compromissos religiosos sustentados pelo coração. As Escrituras explicitam o fato de que ao coração está associado às noções de sabedoria1, emoção2, espiritualidade3 e intelecto4. De acordo com Sire (2012, p. 181) “o coração é o centro definidor da pessoa humana”.

Embora uma determinada filosofia arrogue para si não possuir compromissos religiosos, tal fato é impossível, pois o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus e, como tal, não pode fugir da relação entre o eu humano e sua Origem verdadeira. Como sustenta Dooyeweerd:

“[…] É somente desta relação religiosa que o pensamento filosófico, em sua atitude teórica, pode adquirir a direção concêntrica sobre o ego. Pois está além de toda dúvida que o pensamento teórico, visto à parte do ego central, não pode dar a si mesmo essa direção.”5

Fica estabelecido, então, que nenhum empreendimento teórico, o uso de uma tecnologia ou uma práxis educacional podem assumir neutralidade. Se, como afirma Dooyeweerd no trecho supracitado, o ser humano não pode pensar sem estar guiado por um compromisso fundamental, há então apenas duas disposições possíveis para a produção de conhecimento: a primeira, que encontra em Deus o seu motivo básico religioso. A segunda, que, suprimindo a verdade pela injustiça (cf. Romanos 1.18), busca na criação sua relação com a Origem, incorrendo, assim, em idolatria e reducionismo. Neste sentido, Dooyeweerd mais uma vez nos auxilia afirmando que:

“O impulso religioso inato do ego em que sua relação central com a Origem divina encontra expressão toma seu conteúdo de um motivo básico religioso como o poder espiritual central de nosso pensamento e ação. Se esse motivo básico é de caráter apóstata, ele distanciará o ego de sua Origem verdadeira e direcionará seu impulso religioso para o nosso horizonte temporal de experiência, buscando dentro deste tanto a si mesmo quanto a sua Origem. Isto dará origem a ídolos provenientes da absolutização daquilo que só tem significado relativo.”6

Contudo, a filosofia da tecnologia, em uma perspectiva reformacional, leva em conta que o motivo básico bíblico religioso triádico (criação-queda-redenção) é o que faz justiça ao modo correto de analisar, criticar e direcionar o uso da tecnologia. Isso devido ao fato de que toda jornada, seja prática ou teórica, está fundamentada em Deus como Criador de todas as coisas, em nós, como seres feitos à imagem e semelhança de Deus que quebraram o pacto, e em Cristo como Redentor da criação.

Funções da filosofia

Maarten J. Verkerk, em sua obra intitulada A Filosofia da Tecnologia (escrita em colaboração com Jan Hoogland, Jan van der Stoep e Marc J. de Vries), aponta três funções da filosofia.

A primeira função é a analítica. A filosofia auxilia no desenvolvimento dos quadros conceituais7. De acordo com Verkerk, “comumente, discussões são inúteis porque não há um consenso apropriado sobre o significado dos termos”8. Sem clareza de conceitos, é improvável que haja um bom aproveitamento nas discussões, pois cada parte defende o conceito a partir de pressupostos distintos.

A segunda função da filosofia é olhar criticamente para a realidade9. Verkerk afirma que:

“O tema central é se a tecnologia constitui uma ameaça aos seres humanos ou se, na verdade, ela contribui para o bem-estar deles. A função crítica está conectada aà sua função analítica. Se estruturada de forma efetiva, a visão crítica se utiliza do quadro conceitual desenvolvido por meio da função analítica”.10

Diante de tamanha diversidade de artefatos tecnológicos que chegam diariamente ao nosso domínio, é importante ponderar como cada um destes poderiam afetar os usuários, o meio ambiente ou qualquer outro contexto no qual será implementado.

Por fim, a terceira função da filosofia é de cunho direcional. Para Verkerk:

“Uma análise crítica da cultura e da sociedade automaticamente leva à pergunta: ‘Bem, então como…’ (esta deveria ser vista)? A função direcional da filosofia é de grande significância para a tecnologia. Ela diz respeito a questões como ‘O que é um bom mecanismo?’ ‘Qual é a influência da tecnologia nos seres humanos e na sociedade?’, ‘Quando podemos aplicar certa técnica e quando não?’ e ‘Em qual extensão pode a tecnologia resolver problemas em nossa sociedade?’. Todos esses tipos de questões são encontrados na ética da tecnologia”11

As novidades tecnológicas são alvo fácil para uma utilização em massa de forma acrítica. Estas, costumeiramente, carregam expectativas de resolução de problemas e facilitadores ante qualquer dilema cotidiano. O que não é possível, dado que nenhuma tecnologia dá conta de toda a complexidade do horizonte de experiências. Por definição, são criações de criaturas e, portanto, não podem realizar nada além daquilo para o qual foi programada para fazer. Desta forma, a filosofia da tecnologia ajuda a direcionar a situação mais conveniente em que cada tecnologia deveria ser aplicada.

Educação e fé nas tecnologias digitais

Ministrar conteúdos é desafiador independente do público alvo. Ante essas dificuldades, surgem ídolos, pois constantemente, deposita-se em artefatos, metodologias ou didáticas a expectativa de que, sozinhos, “darão conta” de toda a sístase de sentido da realidade. Com isso, surgem equívocos na tentativa de encontrar esse “todo-poderoso” que permite alcançar alto índice de aproveitamento na apreensão do conteúdo.

O primeiro equívoco é de caráter conceitual. Quando se fala em tecnologia na educação, é comum vir à imaginação salas de aula com tablets etc., ou seja, uma conceitualização da tecnologia restrita a artefatos digitais. O problema é que, assim, a própria educação deixa de ser considerada uma tecnologia. Quando criados, homem e mulher foram dotados da capacidade de serem co-criadores. Deus os colocou como responsáveis em cultivar a terra, por meio do trabalho, (mandato cultural). Essa criatividade permite que a humanidade desenvolva, desde o princípio, meios para exercer a missão dada pelo Criador. Sendo assim, toda técnica criada com o objetivo de viabilizar o mandato cultural é uma tecnologia. Arar a terra, por exemplo, é uma tecnologia que viabiliza o plantio, assim como a educação, uma tecnologia que possibilita o ensino. Compreendê-la dessa forma, permite que as outras tecnologias sejam colaboradoras da educação na formação de pessoas. É da vontade de Deus que suas verdades sustentadoras e que determinam a criação sejam ensinadas. Essa é a forma que Deus determinou para a formação dos seres humanos. Portanto, a função analítica da filosofia é importante para que os conceitos sejam definidos a partir de pressupostos cristãos e, também, para denunciar os reducionismos das definições que negam uma visão de mundo genuinamente cristã.

O segundo equívoco é o esnobismo cronológico na educação. O termo, cunhado por C. S. Lewis, diz respeito a tratar com desdém aquilo que é considerado antigo, retrógrado. O contexto educacional é constantemente bombardeado por “inovismos” que colocam o que está em uso sob o rótulo de “ensino tradicionalista”. “Quadro e giz? Coisa do passado!”. Nisto estão implícitos pressupostos que depositam sua fé em novas tecnologias que, de forma implícita, capturam o coração que anseia em fechar todas as lacunas que o método atual é incapaz de fazer. Nesse sentido, há certa expectativa no universo digital, como o mediador absoluto entre o ego e a realidade. O fato é que o contato com o mundo envolve a pessoa na sua totalidade, e não somente alguns de seus sentidos. Essa é uma clara situação de criação de ídolos, pois coloca a inovação tecnológica como elemento que irá julgar todos os outros entes do contexto educacional. O resultado é uma guerra entre ídolos, como afirma Dooyeweerd: 

“[…] A absolutização religiosa de aspectos particulares sempre invocará seus correlatos, os quais, na consciência religiosa, começam a reivindicar a ‘absolutidade’ em oposição aos aspectos deificados. Em outras palavras, qualquer ídolo que tenha sido criado pela absolutização de um aspecto modal evocará seu contraídolo”12

Em suma, a compreensão de que a educação é uma tecnologia e que o seu sucesso não está diretamente relacionado com às inovações do mundo cibernético, nos permite caminhar para uma conclusão importante. Os pressupostos do educador ditarão a maneira pela qual as tecnologias serão inseridas no ensino. Contudo, somente uma cosmovisão cristã permite que as tecnologias estejam a serviço do Criador. Egbert Schuurman afirma que

“Uma visão cultural cristã, porém, deve ser rotulada “teocêntrica”; quer dizer, não a autonomia, mas a teonomia determina a direção da cultura. As pessoas, como seres feitos à imagem de Deus, são chamadas por Deus a exercer seu trabalho cultural por amor a ele e por amor ao seu próximo e a prestar contas deste trabalho a Deus. Também dizemos que as pessoas devem exercer seu trabalho cultural como administradoras e representantes de Deus.”13 

Somente assim, o cenário educacional deixará de sediar guerras, e se tornará palco onde homens e mulheres, biblicamente orientados, utilizam de técnicas como em um caixa de ferramentas, visando a formação do discente para a glória de Deus.


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1. Provérbios 2.10.

2. João 4.1.

3. Atos 8.21.

4. Romanos 1.21.

5. DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia da razão humana”. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018, p. 73.

6. Ibid., p.75.

7. VERKERK, Maarten J. et al. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Tradução de Rodolfo Amorim Carlos de Souza. Viçosa-MG: Ultimato. p.20, 2018., p. 20.

8. Ibid., p. 20.

9. Ibid., p. 22.

10. Ibid., p. 22.

11. Ibid., p. 23.

12. DOOYEWEERD, op. cit., p. 80.

13. SCHUURMAN, Egbert. Fé, Esperança e Tecnologia: Ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Tradução de Thaís Semionato. Viçosa/MG: Ultimato, 2016, p. 20.


Referências Bibliográficas

DOOYEWEERD, Herman No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Tradução de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

SCHUURMAN, Egbert. Fé, Esperança e Tecnologia: ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Tradução de Thaís Semionato. Viçosa/MG: Ultimato, 2016.

SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Tradução de Paulo Zacharias e Marcelo Herberts — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2012.

VERKERK, Maarten J. et al. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Tradução. de Rodolfo Amorim Carlos de Souza. Viçosa-MG: Ultimato. 2018.