Escrito por Danilo Neves de Almeida Bueno, estudante do Programa de Tutoria Filosófica 2022
O sentido da vida na pós-modernidade1 é objeto de reflexão em diferentes áreas de conhecimento. Na filosofia, teologia, artes, história, sociologia e psicologia as investigações sobre a condição do ser humano buscam avaliar se há ou não o que o filósofo e crítico literário marxista Terry Eagleton denomina “existência humana contingente”. Comparando os pensamentos pré e pós-moderno em sua introdução ao tema, Eagleton diz:
“A crença de que a existência humana é contingente, de que ela não tem fundamento, objetivo, direção ou necessidade, e de que nossa espécie poderia muito bem nunca ter existido neste planeta, perpassa o pensamento modernista de uma ponta a outra. Essa possibilidade esvazia nossa presença de fato e lança sobre ela uma sombra de perda e morte… Esse ponto de vista não seria respaldado pelos filósofos do século XII para os quais a existência humana tinha um sólido fundamento, chamado Deus… No… capitalismo pós-moderno mais avançado, de ceticismo em relação a grandes narrativas e sínteses abrangentes, de desencanto com tudo o que é metafísico, a vida é mais uma dentre tantas totalidades que perderam o crédito.” (EAGLETON, 2021, p. 28-32)
Ao longo desse recorte histórico, a “vida” foi se secularizando enquanto o termo “sentido” se tornava cada vez mais suspeito no Ocidente. Portanto, “o sentido da vida” transformou-se em expressão esvaziada de transcendência metafísica e subjetivada ao ser-no-mundo. Frente a esse desenvolvimento do tema, o autor ainda afirma que grandes questões emergem dos tempos de crise macrocultural como a que foi experimentada, por exemplo, após o fim da Segunda Guerra.
Assim, no momento civilizatório corrente de intensificadas perturbações ontológicas, uma pergunta se impõe: Diante da crise do sentido da vida na pós-modernidade em relação direta com a alegada contingência da existência humana, qual a relevância da antiga sabedoria hebraica – sobretudo Eclesiastes (Ec) – para o niilismo² em sua maioridade?
A tese resume-se nisto: Qohélet3 faz a correção epistemológica e existencial no pensamento pós-moderno e oferece a base consistente para uma vida significativa.
Em diálogo e antítese com autores pós-modernos, incluindo Eagleton, o teólogo reformado Timothy Keller assume a sabedoria de Eclesiastes como o fim da falta de sentido: “A tese do autor é de que a vida ‘debaixo do sol’ (1.2,3; 2.11,17, 20, 22) não faz sentido. Ele conduz um elaborado teste de raciocínio — como avaliar a vida na Terra sem a existência do sobrenatural, de Deus ou da eternidade?” (KELLER, 2018, p. 104). Essa expressão-chave do texto hebraico, “debaixo do sol”, significa “vida considerada por uma perspectiva secular, horizontal, que não leva Deus em conta.” (GREIDANUS, 2017, p. 68).
Nesse quadro da realidade eminentemente contemporâneo, o antigo livro de sabedoria mostra o absurdo da existência humana sem teorreferência em diversas áreas da vida (Ec 1.12-2.23) para então apresentar o resultado final (2.24-26) desse teste de raciocínio-experimental4: é vapor/ilusão/absurdo/vazio5 buscar o sentido da vida na própria filosofia e em seus benefícios, no trabalho, nos prazeres, em grandes projetos pessoais, na autorrealização, no capital… Encontre a alegria nas dádivas diárias de Deus como comer, beber e trabalhar6.
Tal reflexão não é do tipo de argumento conhecido como “o deus das lacunas” ou a aparente solução pelo deus ex machina e nem se propõe a ser uma espécie de felicidade barata consumida nos templos ou apelo ao fideísmo. Qohélet explicita aqui um pressuposto epistemológico fundamental para a pós-modernidade niilista: o saber pístico precede o sentido ôntico. Isso significa dizer que sem a transcendência divina toda imanência é absurda. A secularização da cultura Ocidental, nessa perspectiva e em sua práxis coerente, foi o ocaso da negação do sentido, o cerramento do horizonte psicológico positivo, a derrocada da vida com propósito.
Em consonância com a necessidade dessa virada existencial hebraica (Ec 2.24-26), o filósofo reformado James Sire resume bem o profundo drama epistêmico do sentido do homem deste século:
“O naturalismo nos coloca como seres humanos presos numa caixa. Porém, para termos qualquer confiança sobre a veracidade do nosso conhecimento de que estamos numa caixa, precisamos ficar fora da caixa ou ter algum outro ser fora da caixa que nos forneça essa informação (os teólogos chamam isso de ‘revelação’). Mas não há nada ou ninguém fora da caixa para nos dar a revelação, e não podemos por nós mesmos transcender a caixa. Portanto, niilismo epistemológico.” (SIRE, 2004, p. 106).
Em outras palavras, o niilismo é implicação necessária de uma das principais biocosmovisões do Ocidente, o naturalismo. O ponto central do argumento de Sire reside na ideia de que sem um Ser racional externo ao mundo não é possível à pessoa conhecedora distinguir a ilusão da realidade, uma vez que dentro da própria caixa, no mundo, apenas há autorreferência e, assim, é impossível garantir confiabilidade aos pensamentos e, por extensão, aos sentimentos ligados à completude, preenchimento e sentido. Isso é como tentar identificar uma cédula falsa de dinheiro sem uma autoridade externa (referência) ao próprio mercado. Quem poderá, satisfeito, dizer: “À esta cédula é garantida sua veracidade”?
Por isso, se faz necessária a revelação, particularmente, no livro canônico Eclesiastes. Qohélet afirma que buscar o sentido da vida na existência sem Deus, sem o Ser racional externo, sem teorrefência, vivendo a vida “debaixo do sol”, retira a base epistemológica para a própria busca do sentido e desfaz a direção psicológica positiva para a mente humana aprisionada na realidade, na existência em si, na caixa. Os sentimentos de desespero, ansiedade e tédio estão inevitavelmente em toda apreensão do existir. A absurdidade do viver não pode ser autotranscendida pelo homem pós-moderno. A caixa epistemológica é o caixão existencial.
Corroborando a tese, o historiador e teólogo Alister McGrath descreve dois grandes grupos e suas sínteses avaliativas sobre as principais visões de mundo seculares de nosso tempo, o marxismo e o darwinismo. No segundo grupo, conforme toda a argumentação presente, está o drama do pecador (Ec 2.26b):
“Alguns têm preocupações com essas cosmovisões ou quadros completos, argumentando que elas são intelectualmente muito ambiciosas e que precisamos nos contentar com percepções parciais sobre a vida. Outros vão além e sugerem que, em primeiro lugar, não há significado a ser encontrado. Se aceitarmos uma visão de mundo naturalista, parece que não podemos encontrar nenhuma justificativa para nossas crenças fundamentais sobre significado e valores a partir da natureza do mundo. E isso significa que temos de criar ou inventar um significado que não seja intrínseco ao mundo.” (McGRATH, 2020, p. 13).
Portanto, a falta de sentido na pós-modernidade, o niilismo, é um corolário da epistemologia secular consistente. Todavia, a existência humana é não contingente, dependente de um Ser revelado àa ela para que a vida possa ter de fato sentido psicológico positivo. Eclesiastes revela e constata esse drama secular, “debaixo do sol”, mas aponta para uma vida com significado e real alegria7,8 tendo a sua base em Deus.
A sabedoria canônica em crise do Qohélet diz à pós-modernidade que o fim da falta de sentido na vida humana começa com o Deus doador cuja mão se move para o homem que o teme (Ec 2.26a; 12.13,14) – com o teísmo-epistemológico-existencial – fundamentando a vida ordinariamente vivida dentro da caixa, reordenando a realidade.
No ensaio o Mito de Sísifo, escrito no início da Segunda Guerra Mundial, Albert Camus disse expressamente: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia” (CAMUS, 2014, p. 19)9. Ao que Qohélet sabiamente responde: “… quem comerá e quem beberá, se isso não vier de Deus?” (Ec 2.25)10. Eis a verdadeira questão sobre o sentido da vida.
Uma vida que vale a pena é a Vida “acima do sol.”11
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1 McGrath (2008), em sua notável obra Apologética cristã no século XXI, chama a atenção para o conceito de pós-modernidade ser bastante amplo e incompleto. No entanto, é possível destacar algumas características gerais sobre o movimento que tem suas continuidades e descontinuidades com a era propriamente moderna inaugurada no Iluminismo. De acordo com Volf (2021) e Wright (2021), tais marcas se interagem e vão de um pensamento autônomo-racional e controle social para a desconstrução de metanarrativas, desafio à noção de verdade e problematização da identidade pessoal. “Walter Truett Anderson nos oferece uma bem-humorada visão disso em seu livro Reality isn`t what it used to be [A realidade não é mais o que costumava ser]. Ele reflete sobre esse nosso grave dilema apresentando uma analogia com o beisebol. O juiz de beisebol pré-moderno diria algo como: ‘Existem as bolas e os arremessos, e eu os denomino pelo que são’. O modernista diria: ‘Existem as bolas e os arremessos, e eu os denomino pelo que vejo’. E o pós-modernista diria: ‘Não existe nada lá até que eu os denomine’. Em resumo, toda a realidade depende do sujeito. O pós-modernista estrutura a realidade nominando aspectos segundo seu bel-prazer.” (CARSON et al., 2015, p. 22).
2 Apesar do reducionismo e humanismo de Victor E. Frankl, toda a sua escola de psicoterapia – a Logoterapia – se desenvolve como resposta ao niilismo: “Cada época tem sua própria neurose coletiva, e cada época necessita de sua própria psicoterapia para enfrentá-la O vazio existencial, que é a neurose em massa da atualidade, pode ser descrito como forma privada e pessoal de niilismo; o niilismo, por sua vez, pode ser definido como a posição que diz não ter sentido o ser.” (FRANKL, 2015, p. 151).
3 O termo se refere ao autor do livro de Eclesiastes e significa o Pregador. Sua identificação é tema de debate entre os intérpretes, sendo Qohélet tradicionalmente compreendido como o rei Salomão.
4 Ou “teste de prazer”, como o renomado psicólogo social Jonathan Haidt, um judeu ateu, o chama.
5 Hebel é uma palavra hebraica de amplo campo semântico e altamente significativa no livro de Eclesiastes e em toda a Bíblia hebraica. Sua tradução está em conformidade com as suas possibilidades de sentido. Ver, por exemplo, Sabedoria e sábios em Israel, p. 173-174.
6 Digno de nota é o significado aplicado de Ec 2.11: “‘Todos os termos-chave do Pregador se combinam neste ponto: trabalho, vaidade, correr atrás do vento, sem proveito, debaixo do sol. O ajuntamento de termos comunica amarga desilusão… Está sendo mostrado ao homem secular o fracasso de seu estilo de vida, sob suas próprias premissas’. O materialismo e o consumismo não conseguem dar sentido à vida humana.” (GREIDANUS, 2017, p. 81).
7 “A modernidade tem sido para muitos modernos um lugar singularmente privado de alegria. O retrato weberiano da modernidade como uma ‘jaula de ferro’ sufocantemente racionalizada e tecnológica é unilateral, mas expressa uma experiência comum da modernidade. E não espanta: se o fardo de reduzir o mundo à ordem caiu sobre ti; se recebeste a tarefa de construir uma teoria de tudo e então escreveste a equação; se tinhas de estar em patrulha constante nas fronteiras vazias e extremamente estreitas entre religião e política, arte e vida, teologia e filosofia, natureza e sociedade, nós e eles; se tivesse de assegurar que a trindade de controle, liberdade e progresso perdurasse pelas eras – se tinhas tudo isso a fazer, poderias não exatamente estares esfuziantemente contente, com sorriso pueril. Ao desmascarar as pretensões da modernidade, a pós-modernidade liberou-nos do fardo de controlar a realidade. Que alívio – exceto que a maior parte dos pós-modernos imediatamente solapa nosso alívio dizendo que ninguém está no controle. É por isso que pós-modernos podem ser um bando tão sombrio quanto os modernos. Mas Salomão mostra um caminho à real alegria… Quando Salomão nos exorta a comer, beber e desfrutar da vida, assim como Moisés [Dt 14.26], chama-nos a adorar. Como coloca Jeff Meyers, Eclesiastes não é só sobre a névoa; é sobre uma mesa na névoa.” (LEITHART, 2021, p. 177-178).
8 “Portanto, o dilema do homem moderno é realmente terrível. A cosmovisão ateísta é insuficiente para proporcionar uma vida feliz e coerente. O ser humano não pode viver de modo coerente e feliz como se a vida no fim das contas não tivesse sentido, valor ou propósito. Se tentarmos viver de modo coerente dentro da cosmovisão ateísta, acabaremos profundamente infelizes. Se, porém, conseguirmos viver feliz, será apenas contradizendo nossa cosmovisão.” (CRAIG, 2012, p. 79).
9 William James, como um profeta secular/pagão, já havia atingido as consciências pós-modernas para a tragédia do século XX e XXI que haveria de vir: “Pertence à natureza humana que uma pessoa viver e morrer em virtude de uma espécie de fé que prescinda de dogmas e definições. Basta-lhe como única certeza e garantia que o mundo natural seja passageiro, um sinal apenas, uma imagem, um aspecto externo de um universo complexo, no qual as forças espirituais têm a última palavra e são eternas. Graças a esta única certeza, a vida lhe parece valiosa, a despeito de todas as circunstâncias contrárias. Destrua-se, porém, esta certeza interior, por mais indeterminada que pareça, e aquela pessoa, antes tão segura e convicta, vê sua existência perder toda a luz e brilho. Muitas vezes, com o olhar assustado, pensará então na possibilidade do suicídio” (JAMES, 2018, p. 62).
10 “Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (1Coríntios 15.32b).
11 Quem me ensinou essa expressão foi o rev. Emílio Garofalo Neto em suas benditas exposições no Eclesiastes que, recentemente, se transformaram no livro “Isto é filtro solar: Eclesiastes e a vida debaixo do sol”, pela editora Monergismo. Foi ele quem me ensinou a amar essa Palavra do Deus do Sentido. Obrigado, de coração, pastor Emílio!
Referências Bibliográficas
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução: Ari Roitman e Paulina Watch. 4.ed. Rio de Janeiro, RJ: BestBolso, 2014.
CARSON, D. A. et al. A verdade: como comunicar o evangelho a um mundo pós-moderno. Tradução: Jurandy Bravo. 1.ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 2015. 448 p.
CRAIG, William Lane. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. Tradução: A. G. Mendes, Hans Udo Fuchs, e Valdemar Kroker. 2.ed. São Paulo, SP: Vida Nova, 2012.
EAGLETON, Terry. O sentido da vida: uma brevíssima introdução. Tradução: Pedro Paulo Pimenta. São Paulo, SP: Editora Unesp, 2021.
FRANKL, Victor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução: Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 38. ed. São Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. 184 p.
GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir de Eclesiastes. Tradução: Vagner Barbosa. 1.ed. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2017. 352 p.
HAIDT, Jonathan. Uma vida que vale a pena: ela está mais perto do que você imagina. Tradução: Ana Beatriz Rodrigues. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2006.
JAMES, William. Vale a pena viver? Tradução: Gabriel Perissé. São Paulo: Editora Nós, 2018. 80 p.
KELLER, Timothy. Deus na era secular: como os críticos podem encontrar sentido no cristianismo. Tradução: Jurandy Bravo. São Paulo, SP: Vida Nova, 2018. 320 p.
LEITHART, Peter. J. Salomão entre os pós-modernos. Tradução: Leandro Guimarães Faria Corcete Dutra. 1.ed. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2021. 180 p.
LÍNDEZ, José Vílchez. Sabedoria e sábios em Israel. Tradução: José Benedito Alves. 3.ed. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2014.
McGRATH, Alister. C. S. Lewis, Richard Dawkins e o sentido da vida. Tradução: Francisco Nunes. 1.ed. Viçosa, MG: Ultimato, 2020. 96 p.
McGRATH, Alister. Apologética cristã no século XXI: ciência e arte com integridade. Tradução: Emirson Justino e Antivan Guimarães. 1.ed. São Paulo, SP: Editora Vida, 2008.
SIRE, James W. O Universo ao lado. Tradução: Paulo Zacharias. 1.ed. São Paulo, SP: Editora Hagnos, 2004.
VOLF, Miroslav. Exclusão e abraço: uma reflexão teológica sobre identidade, alteridade e reconciliação. Tradução: Almiro Pisetta. 1.ed. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2021.
WRIGHT, N. T. As Escrituras e a autoridade de Deus: como ler a Bíblia hoje. Tradução: Maurício Bezerra. 1.ed. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2021. 256 p.