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Dostoiévski, o imaginário cristão e a literatura

Escrito por Lucas Macedo da Silva, estudante do Programa de Tutoria Avançada 2022


Introdução

Cosmovisão é um termo utilizado no contexto acadêmico desde Kant em sua obra Crítica do Juízo (1790). Por ser uma palavra de cunho abstrato, desde seu primeiro uso grandes pensadores têm tentado definir o que é cosmovisão de fato. Como qualquer palavra abstrata, existe um desafio de dar significado ao termo, abarcando nuances para esclarecê-lo e buscando o seu não reducionismo. Com esses desafios, David K. Naugle faz uma pesquisa robusta do termo em seu livro Cosmovisão: A história de um conceito (2002).

O autor constrói em seu livro o que podemos chamar de genealogia da cosmovisão e demonstra como grandes autores definiram ou se apropriaram do conceito. O que podemos observar em seu trabalho é que a Weltanschauung foi vista de diversos modos em contextos diferentes e em diversas áreas do saber. Para fins práticos, utilizaremos da definição do próprio Naugle: 

Uma cosmovisão, então, é um sistema semiótico de sinais narrativos que cria o universo simbólico definitivo que é responsável principalmente pelo modelamento de uma variedade de práticas humanas determinantes da vida. Ele cria os canais em que as águas da razão fluem. Estabelece os horizontes do ponto de vista de um intérprete pelos quais textos de todos os tipos são compreendidos. É aquele meio mental pelo qual o mundo é conhecido. O coração humano é seu lar e ela fornece um lar para o coração humano. No final das contas, é difícil conceber uma realidade humana ou cultural mais importante, teorética ou praticamente, que o sistema semiótico de sinais narrativos que constituem uma cosmovisão. (NAUGLE, 2017, p. 415)

O que podemos notar em como o autor usa o termo é que ele tem a ver com sinais narrativos que podem ser linguísticos ou não e moldam as práticas humanas. Por isso influenciam como interpretamos e nos relacionamos com o mundo e com a comunidade. Em outras palavras, a cosmovisão dá uma visão geral do mundo ao ser humano.

O problema é que toda teoria geral do mundo é reducionista, por isso cada autor enfatiza sua própria proposta de significado do termo. Por essa razão, Naugle explica que Dooyeweerd retrata a cosmovisão como um compromisso do coração, resgatando uma ideia agostiniana de que todo ser humano é um ser religioso (NAUGLE, 2017, p. 55). Por isso, as cosmovisões podem ser divididas em redimidas por Deus ou em antítese a Deus.

Por essa perspectiva, um coração que se submete ao Criador passa a ser moldado por Ele e passa a mudar sua relação com o mundo, com a cultura e com as pessoas. Uma das maneiras de observarmos como as cosmovisões se manifestam no imaginário humano é ouvindo ou lendo as suas histórias. Elas revelam como pensamos sem muitas vezes termos a capacidade de explicar esses pensamentos de maneira objetiva.

Autores como Hegel, Dilthey, Francis Schaeffer notaram que a arte e a Weltanschauung estão em uma relação profunda, onde a arte expressa a cosmovisão do artista. Por isso, este artigo busca mostrar pontualmente como a cosmovisão cristã se apresentou na obra Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski.

Dostoiévski e os Irmãos Karamázov

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) foi um escritor russo conhecido como um dos maiores romancistas da história. Ele alcançou esse status por ser considerado um explorador da psique humana e por isso criar personagens marcantes. Os Irmãos Karamázov, é conhecida como sua obra mais importante e foi considerada por Freud “a maior obra da história”. O filósofo Luiz Felipe Pondé explica a importância da novela dizendo que “a pergunta de Dostoiévski, que dobra tanta gente importante como Freud e outros, é a pergunta pela existência ou não de uma referência absoluta na moral” (PONDÉ, 2019 n.p.). Neste romance, o autor lida especialmente com o problema da bondade de Deus e a maldade no mundo e explora esse problema em uma contraposição de dois personagens, os irmãos Ivan e Aliocha Karamázov.

O noviço Aliocha é considerado pelo autor o herói de sua história e possui um caráter muito bom, tenta sempre ajudar a todos e quer o bem de todos, mas ao contrário do comum, ele não é um herói forte e desejável. Muitas vezes ele é ingênuo, manipulável e as indagações do seu irmão quanto a Deus são difíceis demais para ele e em nenhum momento consegue rebatê-las intelectualmente. Já Ivan, seu antagonista, é belo, intelectual, as pessoas o admiram e o respeitam. Ele está sempre confrontando o seu irmão mais novo com perguntas que seu irmão não seria capaz de responder.

O psicanalista e filósofo canadense Jordan Peterson explica que Dostoiévski, ao criar um vilão ou, como neste caso, um antagonista, faz com que ele seja o mais forte, atrativo e inteligente que ele possa ser. Aliocha é intelectualmente incapaz de ir contra seu irmão e suas questões, porém ele continua a agir de acordo com seus princípios e, mesmo que às vezes fique abalado pelos questionamentos de Ivan, ele está comprometido a ser alguém bom assim como enxergava a bondade de seu mentor, o mestre Zózimo.

Dostoiévski trabalha no irmão mais velho com duas premissas importantes. A primeira é: o mundo é mal, isso impossibilita que exista um Deus que seja bom. Ivan evidencia este ponto em diversos confrontos com seu irmão, especialmente quando ele começa a lembrar o caçula a respeito das crianças que sofrem. Ele diz: 

Digo e repito: muitas pessoas adoram torturar as crianças; somente as crianças; nada mais do que as crianças. Com outros adultos, mostram-se afáveis e ternas, como bons europeus bem instruídos e muito humanos, mas só conseguem ter prazer torturando as crianças: é sua forma de amá-las. A angelical confiança dessas criaturas indefesas seduz os seres cruéis. Elas não sabem para onde ir, a quem se dirigir, e isso excita os instintos perversos. Todo homem tem um demônio dentro de si. (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 275)

Ele explica para o irmão que é impossível que um Deus bondoso exista e não se compadeça nem mesmo do sofrimento das frágeis crianças. A segunda é a célebre ideia de que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Dostoiévski expande a questão do niilismo ao seu extremo. Segundo Ivan Karamázov, a partir do momento em que os seres humanos deixarem de acreditar na imortalidade da alma, o amor cessaria e que a própria lei moral da natureza deveria se tornar o inverso absoluto da lei religiosa anterior tornando até a maldade uma saída razoável ou até nobre (DOSTOIÉVSKI, 2019, p. 88).

O imaginário cristão e a cultura

Dostoiévski é um autor de seu tempo,e por isso responde às questões do seu tempo. Com o crescimento do niilismo e com a aparente vitória da razão contra a religião, o autor usa o seu imaginário cristão para tocar a ferida de sua época. Com o assassinato de seu pai Fiódor Pavlovitch, o meio irmão Dmitri é o maior suspeito. Devido às brigas com o pai, a disputa pela Gruchénka e ainda brigas financeiras, ele é um alvo fácil das acusações. Entretanto, o que descobrimos ao fim da história é que o culpado é outro meio irmão, Smerdiakov, um filho bastardo que em toda a história pouco fez ligação com o resto da família.

Contudo, para a surpresa de Ivan, seu irmão o acusa de ser o principal assassino do pai, pois ele era quem dizia que era tudo permitido, até mesmo aquilo que fosse mal. Dostoiévski põe a prova o niilismo e mostra, por meio de seu imaginário cristão, as últimas consequências de onde essa ideia pode levar. Jordan Peterson observa que “você só consegue descobrir no que de fato acredita (em vez do que pensa que acredita) ao observar suas ações. Você simplesmente não sabe no que acredita antes disso. Você é complexo demais para entender a si mesmo” (PETERSON, 2018, p. 106).

Isso significa que cosmovisão é muito mais do que um termo abstrato, ela é, como proposto por Dooyeweerd, um compromisso do coração. Isso é demonstrado em nossas atitudes e relações. Ivan não pôde suportar as consequências de sua intelectualidade, enquanto Aliocha não soube responder os questionamentos de seu irmão, mas seus atos demonstravam os seus compromissos últimos.

Conclusão

Dostoiévski e Nietzsche tentaram responder ao problema do niilismo na mesma época, porém enquanto o russo usou seu imaginário cristão, o alemão usou seu imaginário humanista. Nietzsche acreditava que o ser humano poderia superar o niilismo e com isso criar o Übermensch. Dostoiévski acreditava que a única maneira possível seria por meio do cristianismo verdadeiro e do caráter moldado pelo amor cristão.

O filósofo existencialista Sean Kelly argumenta que Dostoiévski, apesar de nunca ter argumentado desta maneira, estava mostrando que sim, se Deus não existisse, tudo seria permitido, porém, se observarmos a nossa vida, percebemos que isso não é uma verdade. Então, se nem tudo é permitido, Deus existe. O que podemos concluir é que o imaginário cristão do autor russo é peça fundamental em sua obra e em sua maneira de se relacionar com o mundo. Sua Weltanschauung, mais do que uma abstração, foi moldada por um relacionamento com Deus.


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Referências bibliográficas

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. Tradução Herculano Villas-Boas. São Paulo: Martin Claret, 2019.

FIÓDOR Dostoiévski. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. São Francisco, CA: Fundação Wikimedia, 2017. Disponível em: Fiódor Dostoiévski – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org). Acesso em 6 mar. 2022.

KELLY, Sean. Dostoevsky’s Brothers Karamazov: Best novel of the 19th century, Sean Kelly and Lex Fridman. 1 vídeo (6:00). Disponível em: Dostoevsky’s Brothers Karamazov: Best novel of the 19th century | Sean Kelly and Lex Fridman

NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Tradução Marcelo Herberts. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.

PETERSON, Jordan B. 12 Regras para a vida: um antídoto para o caos. Tradução Wendy Campos, Aberto G. Streicher. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

PETERSON, Jordan B. Nietzsche, Dostoevsky, and The Brothers Karamazov,  Jordan B. Peterson. 1 vídeo (4:17). Disponível em: Nietzsche, Dostoevsky, and The Brothers Karamazov | Jordan B Peterson

PONDÉ, Luiz Felipe. Os Irmãos Karamazov, Dostoiévski em Como Ler os Clássicos, Luiz Felipe Pondé. 2019. 1  vídeo (1:51). Disponível em: Os Irmãos Karamazov, Dostoiévski em Como Ler os Clássicos | Luiz Felipe Pondé